quinta-feira, 4 de abril de 2013

Jean Genet - A Varanda

*Ípsilon*
 
A Varanda

Num bordel, no teatro como na vida

17.11.2011 - Tiago Bartolomeu Costa 
 

Luís Miguel Cintra encena esse monumento teatral que é A Varanda, de Jean Genet, peça ainda hoje indecifrável, de uma complexidade simbólica imbatível. A peça está em cena até 18 de Dezembro.

O Thèâtre du Gymnase, em Paris, onde Jean Genet viu estrear em 1960, pela mão de Peter Brook, uma versão de A Varanda que lhe desagradou profundamente, dedica-se hoje a espectáculos musicais e à apresentação sucedânea de peças com títulos como Os Homens Vêm de Marte e as Mulheres de Vénus, Como Casar com um Milionário e A Lésbica Invisível - One woman show. Longe, portanto, de peças de confronto e reflexão como as que Genet desejava, ao ataque de um público que se havia aburguesado e recusava ver, e estar, num teatro, como se estivesse em carne viva.

Escrevemos isto e olhamos para a fila que espera para entrar na sala de 800 lugares, sumptuosa nos seus dourados e vermelhos, em busca do riso fácil e premeditado. Talvez, numa irónica volta da História, a cama que Genet quis ver imaginada na plateia exista agora, materializada nas gargalhadas que reconhecem a normalização dos gostos, dos costumes e dos modos de se ser, afinal, espectador de teatro.

Então, dizia Genet, "era bem clara" a sua intenção ao escrever A Varanda: "A peça não é uma sátira a isto ou àquilo. Ela é - e será, portanto, representada como - a glorificação da Imagem e do Reflexo. O seu significado - satírico ou não - só assim poderá aparecer".

Trabalho inacabadoDir-se-ia, em jeito de descrição, que A Varanda se passa num bordel, aparentemente em Paris, onde nos seus diversos quadros e relações de poder se reflecte sobre a ideia de representação do poder e dos meios para o atingir, no caso, o prazer sexual. Os clientes solicitam a Irma, a dona do bordel (uma composição notável de Luísa Cruz), que os ajude a concretizar fantasias que possam, de certo modo, levá-los a acreditar que, de facto, são quem dizem querer ser. Mas para Luís Miguel Cintra, que com A Varanda volta a encontrar, pela terceira vez, Jean Genet (as outras duas peças foram Splendid"s, 1995 e Ela, 2011, e falta cumprir a promessa de encenar Os Negros, adiada para quando conseguir "que seja mesmo negra a nossa alma e para levarmos mais longe esse velho gosto de teatros dentro dos teatros", como escreveu no programa de Splendid"s), o seu prazer é mais humano do que aquilo a que, racionalmente, querem chegar".

Ao encenador interessa-lhe a "incompletude" inerente ao próprio jogo de representação: "Nunca se consegue chegar à forma definitiva e por isso será sempre um trabalho inacabado", diz-nos, indo ao encontro do que escreveu Genet: "A representação fictícia de uma acção, de uma experiência, dispensa-nos geralmente de as cumprir no plano real e em nós próprios".

Nesse sentido, A Varanda é, também, e sobretudo, um complexo jogo de actores, que a troupe do Teatro da Cornucópia, num gozo particular, se excede a executar. Uma das preocupações de Genet era, precisamente, dar a ver a dificuldade de materialização dos valores descritos na peça, nomeadamente na oposição entre forças de poder (prostituta/cliente, ordem/anarquia, paixão/ódio, família/isolamento, patrão/empregado, ladrão/polícia), através do jogo de actores, ao mesmo tempo actores de uma peça dentro de uma outra peça.

Numa carta datada de 1968 a Roger Blin, que seria o encenador de eleição de Genet, escrevia o dramaturgo: "Os actores têm sempre a tentação de "encontrar espontaneamente" os gestos que ajudam as palavras a saírem da boca. E isso dá então gestos e voz banais (no primeiro sentido de banal), uma espécie de redundância inútil".

Esta consciência levou Luís Miguel Cintra a um trabalho de profunda reflexão sobre o conflito entre o poder semiótico da palavra versus o poder simbólico da imagem. Já em Ela, onde o problema da representação da imagem do Papa - e um texto que emanou deste - era o centro do argumento, Cintra se havia visto confrontado "com discursos que pareciam incoerentes". A solução, diz, foi reconhecer "a incoerência da própria imagem com os gestos que estavam a ser feitos". A valorização dos dois aspectos vem desse dicotomia, dessa autonomia da imagem e da palavra, acredita. "Não há ninguém capaz de fazer esta personagem", diz o encenador, citando Roger (Vítor d"Andrade), o revolucionário que, de tanto acreditar no papel que está a representar, dá à peça a sua dimensão trágica.

O jogo de GenetA Varanda é uma das mais complexas peças de Genet e, ainda hoje, é difícil perceber de que falava o autor. Há uma dimensão contextual que se perdeu com o tempo, como as referências à Guerra Civil Espanhola, ou mesmo a dimensão religiosa, e que torna artificial - logo, teatral - a relação que se estabelece entre a palavra e a imagem. Deixou, com o tempo, de ser uma peça de teatro para ganhar, com a distância, uma caução de reflexão sobre a construção da própria imagem.

A importância da palavra, e das imagens criadas por e a partir delas, era para o próprio Genet fundamental. Com o desgosto causado pelas encenações que haviam sido feitas em Londres, em 1956, por Peter Zadek, ou em Berlim, Basileia e em Nova Iorque, deixou escrito como deveria ser representada a peça, caso não fosse feita por "um encenador inteligente" - o que manifestamente não é o caso de Luís Miguel Cintra, que constrói uma máquina teatral que de tão artificial se torna perigosamente irresistível (e o cenário de Cristina Reis, ecoando a ideia de caixas dentro de caixas imaginada por Genet, ecoa também o próprio teatro recente da Cornucópia, como A Cacatua Verde, de Schnitzler, apresentada no Teatro Nacional D. Maria II no início do ano, e um outro jogo dentro do teatro e da revolução).

Para Genet, as máscaras que as personagens deveriam usar, os coturnos sobre os quais se deviam empoleirar, as vestes que deveriam vestir para mais depressa, e mais perto, chegarem das figuras que deviam (desejar) representar, foram modos de pensar o próprio jogo teatral. E, por consequência, reflectirem sobre, e com, os espectadores.

O jogo de Genet, ao de certo modo impor um registo visual e cénico ao texto, dá à peça, acredita Cintra, "um carácter opaco" que não lhe interessou. Não o diz por oposição ao desejo do autor que se perguntava "como manter o equívoco até ao fim". Cintra está mais interessado naquilo que apelida de "pura metáfora" e, através dela, criar uma "cumplicidade" com o espectador que o leve a pensar onde está a verdade do jogo teatral e do próprio jogo social. E fala, por isso, da metáfora da vida e da morte, da representação e da imagem, da aproximação a um ideal e do confronto com esse mesmo ideal. Um jogo que certamente agradaria a Genet e que Cintra define como "uma multidão de metáforas, um sistema simbólico quase impenetrável, escrito na língua da ambiguidade e da ironia, monumental".

Até 18 de Dezembro (terça a sábado, às 20h30; domingos, às 16h)

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