* Eugénia Cunhal
FAMÍLIAS
Estava sentado. Olhos pregados num livro cujas folhas ia passando devagar. As mãos, ligeiramente trémulas, dificultavam a leitura. Estavam assim, desde a crise que o tinha atirado, primeiro para a cama. O médico abanara a cabeça: esse coração não está nada bem.
Conhecia de cor todos os cantos da sala semi obscura da cave aonde vivia. As parcas economias que ia conseguindo amealhar desde o dia da reforma e da morte da companheira tinham um único destino. Livros. Que já não cabiam nas estantes e se amontoavam pelo chão. Através deles, ia partilhando outras vidas, outras histórias. Revoltado, oprimido com as personagens de umas, com outros peito aberto para a vida, mãos estendidas em feitos imaginários negados ao seu corpo cansado e doente. E, além do mais ofereciam-lhe a companhia que o compensava da ausência daqueles de quem seria óbvio esperar uma presença, um telefonema. Ao menos.
As filhas abriram a porta da rua, entraram e disseram: o pai não pode viver aqui sozinho. Não chegou ao fim da frase que estava a ler. Fingiu que não
ouviu, de tal forma eram inesperadas aquelas palavras que pareciam revestir-se de uma preocupação e de um súbito carinho. Claro, o pai não pode viver aqui sozinho - repetiram.
Será que ... pensou, sabendo que uma das filhas morava num andar amplo e construído há pouco. Será que ...
Durante as próximas semanas entregou-se ao sonho. Que bom, estar dia a dia com o neto mais pequeno. Um menino certamente inteligente, curioso. Às vezes, as gerações mais novas estão mais receptivas. Mais generosas. Saibamos nós, os mais velhos, chegar-lhes ao coração.
Vamos, pai. Como sabe, não o podemos deixar a viver aqui. Juntámo-nos todos e arranjámos-lhe um Lar. Não se preocupe. A comida é boa, o quarto é só para si, tem uma grande janela e muita luz. Verá que não lhe vai faltar nada.
Levaram-no. Na mala apenas a roupa e os medicamentos. Nem uma única vez o foram visitar. E assim, ia definhando naquele quarto silencioso donde saía apenas para tomar as refeições.
Uma manhã, estranhando-lhe a ausência ao pequeno-almoço, uma empregada foi encontrá-lo deitado de olhos fechados. Então, Sr. Armindo, que preguiça é essa. Mas os olhos não voltariam a abrir-se.
Os filhos compraram-lhe um caixão feito de uma madeira boa e cara, encomendaram uma grande coroa de flores, com uma fita roxa que tinha escrito em letras douradas a palavra SAUDADE.
Acompanharam-no com lágrimas ao sítio que chamaram de última morada. E as pessoas comentavam como era bonito saber como aquele homem tinha sido bem cuidado. Até ao fim.
Os livros foram vendidos a peso. Nunca se soube o destino que levaram.
in Escrita de esferográfica