26 de junho de 2015 - 14h32
Pesquisas vão além dos aspectos testemunhais da obra de Carolina Maria de Jesus e buscam definir seu estilo e seus parentescos culturais.
Por Márcio Ferrari, na Revista Pesquisa Fapesp
Reprodução
Carolina Maria de Jesus completou 100 anos de nascimento em 2014 e sua obra permanece dialogando com a sociedade atual
Cinquenta e cinco anos depois de Quarto de despejo, estreia em livro da escritora Carolina Maria de Jesus, o interesse por sua obra continua se desdobrando e tomou impulso em 2014, ano de seu centenário de nascimento – presumido, porque a própria Carolina não tinha certeza sobre a data e há discrepâncias de dados entre sua certidão de nascimento e a de batismo. Definida como “favelada” no subtítulo do livro (Diário de uma favelada), Carolina hoje é revisitada sob diversos ângulos, dada a riqueza de sua produção inédita, ou quase, e de sua vida de altos e baixos.
“Escritora, lavradora, catadora de papel, compositora, sambista, poetisa, dramaturga, cantora, atriz circense, raizeira [quem usa raízes em tratamento médico]”, assim a descreve a historiadora Elena Pajaro Peres em sua tese de doutorado Exuberância e invisibilidade. Populações moventes e cultura em São Paulo, 1942 ao início dos anos 70, defendida em 2007 no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Elena desenvolve agora no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, pesquisa de pós-doutorado sobre a diáspora africana nos manuscritos de Carolina. A presença de Carolina (1914-1977) em círculos acadêmicos no Brasil e no exterior contrasta com o quase total desconhecimento de seu nome pelo público leitor.
A sua época, entretanto, Quarto de despejo foi um fenômeno de vendas. A primeira tiragem, de 10 mil exemplares, se esgotou em três dias, outros 90 mil foram vendidos em seis meses. No exterior, ganhou tradução em 14 idiomas. A publicação do livro aconteceu depois de uma reportagem do jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, uma das primeiras de São Paulo.
Um encontro casual com Carolina o levou a conhecer os escritos – contidos em cerca de 20 cadernos – que selecionou e editou, alterando a pontuação, mas mantendo a ortografia e a gramática originais. Carolina, que estudou apenas até o 2º ano do então chamado curso primário em sua cidade natal, Sacramento (MG), sempre havia confiado no potencial de publicação do que escrevia. Trechos de seus cadernos já tinham saído em reportagens de jornais, entre elas a de Audálio Dantas, publicada em 1958 na Folha da Noite. Dois anos depois sairia Quarto de despejo, já com expectativa de público.
Carolina publicaria ainda três livros em vida, com repercussão incomparavelmente menor do que a obra que a celebrizou, e deixou guardados “mais de 5 mil páginas manuscritas, totalizando 58 cadernos que contêm sete romances, mais de 60 textos com características de crônicas, fábulas, autobiografia e contos, mais de 100 poemas, quatro peças de teatro e 12 marchinhas de Carnaval”, segundo levantamento feito pela doutoranda Raffaella Fernandez, que atualmente trabalha na pesquisa Narrativas de Carolina Maria de Jesus: Processo de criação de uma poética de resíduos, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Todo esse material se encontra espalhado, e novos manuscritos podem aparecer. “Sempre que se trabalha com pessoas em movimento, tem-se que lidar com a dispersão dos documentos”, diz Elena. “Carolina entregou muitos escritos a outras pessoas, na esperança de publicá-los, e, em suas constantes mudanças, foi obrigada a deixar para trás alguns livros que colecionava com carinho.” Mesmo suas obras publicadas são difíceis de encontrar. Elena Peres pôde consultar os microfilmes de seus manuscritos na Biblioteca do Congresso em Washington, que guarda também uma cópia de todos os livros de Carolina, inclusive o romance Pedaços da fome, de 1963, e seu único disco, gravado pela RCA Victor. Os mesmos microfilmes também estão disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas no catálogo da BN não constam todos os seus livros.
Foi nos livros Provérbios e Diário de Bitita – memórias de infância da escritora, publicadas inicialmente na França, em 1982, e quatro anos depois no Brasil – que a pesquisadora tem encontrado os principais vínculos entre Carolina e a cultura da diáspora africana no continente americano. “Consegue-se perceber conexões com tradições africanas que davam muita importância à palavra escrita”, diz Elena.
A historiadora identifica em particular um elo com a cultura de Cabinda, hoje província de Angola, que liga a escritora à África Central. Seu avô, a quem ouvia com devoção quando criança, era ex-escravo e seus pais vinham dessa região de cultura banto, onde o exercício da formação moral e da busca do caminho reto era feito por meio de diálogos e provérbios, muitas vezes pictografados em tecidos e cerâmicas.
Elena, que esteve por 12 meses em estágio de pós-doutorado no African American Studies da Boston University e que vem dialogando com africanistas e estudiosos das diásporas africanas, relaciona essa preocupação quanto à firmeza de caráter com a tradição musical afro-norte-americana do spirituals. “Como os provérbios, os spirituals comunicam o caminho a ser seguido e lamentam os seus desvios, recriando uma ética religiosa e política que foi constantemente retomada nos discursos em prol dos direitos civis, especialmente nas décadas de 1950 e 1960”, explica Elena. O avô de Carolina era cristão e comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe conferia autoridade moral e proeminência na comunidade.
Quando foram lançados Quarto de despejo, Casa de alvenaria (memórias de sua vida depois do sucesso do primeiro livro) ou Antologia pessoal (reunião de poemas organizada pelo historiador José Carlos Bom Meihy, publicada em 1996), costumava-se criticar a escritora por não refletir sobre sua condição de mulher e negra. No entanto, textos sobre esses assuntos encontram-se espalhados pelos inéditos e mesmo em passagens publicadas que não foram suficientemente levadas em conta na época. A doutoranda Raffaella destaca poemas e outras passagens dos escritos de Carolina que formam um conjunto ambíguo sobre essas questões – ora a autora incorpora preconceitos, ora reivindica a emancipação de negros e mulheres. Na vida, a escritora sempre se manteve tão independente quanto pôde. Preferiu ser catadora de papel a empregada doméstica e nunca quis se casar – teve três filhos de pais diferentes.
Para Elena, a noção de pertencimento à cultura negra se alimentou também do abolicionismo dos poetas românticos brasileiros e das ideias de intelectuais como Rui Barbosa e José do Patrocínio, aos quais Carolina teve acesso por influência de um oficial de Justiça mulato de Sacramento, que lia trechos de jornais para os negros da cidade que não sabiam ler. Nos exíguos dois anos em que estudou numa escola espírita, Carolina tomou gosto pela leitura, e o primeiro livro que leu inteiro, emprestado por uma vizinha, foi A escrava Isaura, do romântico Bernardo Guimarães. Dali para frente, continuou lendo tudo o que lhe caía nas mãos, entre livros achados ou recebidos em doação, o que formou um repertório de referência muito particular. “Os escritos de Carolina têm trechos poéticos de um grande refinamento e que não correspondem exatamente à literatura do período em que foram produzidos”, diz Elena.
Quando se mudou para São Paulo, em 1937, sozinha, deixando para trás família e livros, Carolina passou a escrever furiosamente. Pelos relatos que deixou, sabe-se que sua cabeça era inundada por “pensamentos poéticos”. Uma de suas anotações diz: “Sentia ideias que eu desconhecia”. Para Elena, esse despertar inesperado dá continuidade a uma espécie de missão de procura da sabedoria incutida por seu avô e impregnada de uma cultura ancestral. “Talvez ela não houvesse vindo para São Paulo se não sentisse essa necessidade”, diz a pesquisadora. “Na cidade grande, Carolina se isolou e encontrou a literatura.” Com isso, conjugou uma voz própria com a vivência que trazia do entorno. De acordo com Elena, a expressão “quarto de despejo”, numa metáfora da escritora, refere-se à favela como um lugar em que a sociedade “guarda” o que não quer mostrar na sala de visitas.
O livro de estreia da autora foi recebido como um relato testemunhal da vida na favela e, segundo Elena, no exterior continua residindo aí o interesse principal despertado pela escritora. O impacto e o incômodo imediatos causados pelo livro foi tanto que logo a prefeitura de São Paulo, na gestão do prefeito Prestes Maia (1961-65), começou uma campanha bem-sucedida de derrubada da favela do Canindé, o que resultou na remoção forçada dos moradores. Essa ação da prefeitura incentivou um grupo de estudantes a criar o Movimento Universitário do Desfavelamento (MUD), que, com a ajuda de grandes empresas, atuou na remoção de outras favelas.
A doutoranda Raffaella defende um deslocamento de abordagem que se detenha nos aspectos propriamente literários da obra de Carolina – um terreno em que mesmo o aspecto informativo dos escritos pode ser relativizado. “O universo ficcional está sempre muito presente”, diz, por sua vez, Elena Peres. “Há memória na ficção e ficção no testemunho, como também ocorre em outros autores.” A pesquisadora defende também a superação dos limites da literatura “de periferia, marginal” a que Carolina é frequentemente circunscrita. “Isso é importante, mas ficaríamos apenas com a visão do lugar e da época em que viveu após deixar sua família”, diz, ao se referir às redes transnacionais que vem traçando a partir da obra da autora.
“Como escritora, Carolina está além das determinações imediatas”, ressalta Raffaella, que organizou e promoveu a publicação do livro Onde estaes felicidade?, com dois contos inéditos da autora, em 2014 (disponível aqui), e agora prepara a edição de um livro infantil e outro infantojuvenil. Em seu trabalho acadêmico, ela define a produção de Carolina como uma “poética de resíduos”, na qual se misturam discursos e gêneros literários e não literários, dos poemas românticos aos textos jornalísticos, das letras de sambas à radionovela e da norma culta à oralidade, à qual se incorpora um sotaque mineiro. Esse grande amálgama leva Raffaella a aproximar a atividade de catadora de papel à de escritora. “A literatura de Carolina também sobrevive de uma catação de discursos”, conclui.
Projeto - Escrita proibida. Expressão romântica e diáspora africana nos manuscritos de Carolina Maria de Jesus (nº 2012/10784-6); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Elena Pajaro Peres (IEB-USP).
http://www.vermelho.org.br/noticia/266341-11
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