quinta-feira, 30 de março de 2017

A Vermelha, de Iúri Amador



  • Domingos Lobo 


A cultura como modo de resistir aos muros de nojo do fascismo
A Cultura Resistente
A Vermelha, de Iúri Amador


Uma das mais profícuas formas de resistência aos fascismos de Salazar e Caetano foi, entre nós, protagonizada pela Cultura, ou seja, a partir de corajosos actos de intervenção cultural, tendo como espaço privilegiado de acção as colectividades populares de desporto, cultura e recreio.


geração neo-realista conhecia estes espaços e neles desenvolvia diversas funções, desde as de dirigente associativo, de organização de bibliotecas, passando por questões ligadas ao ensino, desde a alfabetização, até aulas de francês, matemática e história, suprindo, desta forma, nos meios rurais e operários, a quase inexistência de uma rede da escola pública acessível ao proletariado.


Foi assim, em Vila Franca de Xira, apodada a vermelha pelos esbirros do fascismo, que o grupo neo-realista, Alves Redol, Dias Lourenço, Bona da Silva, Garcez da Silva, Soeiro Pereira Gomes, Arquimedes da Silva Santos, Rodrigues Faria, Carlos Pato e Jorge Reis, tendo em conta os números avassaladores de analfabetismo no concelho, com uma média de 67 por cento nos anos 1930, atingindo nas freguesias rurais (S. João dos Montes e Calhandriz) os 90 por cento, assumiram o desenvolvimento cultural das populações como tarefa prioritária, espaço onde sobrevivia a esperança, a liberdade e, sobretudo, a lucidez que era necessário manter no meio do caos social imposto pelo salazarismo, tendo a cultura como espaço de batalha que os intelectuais travaram contra o fascismo. E quando a liberdade política faltou, esses intelectuais, afastados do espaço público, foram mais longe e entenderam a cultura como a própria batalha,dado que só havia uma razão válida e apaixonante: o amor pela humanidade e o fortalecimento de uma sensibilidade colectiva ético-moral como modo de resistir e inventar o futuro. 


Um percurso e um tempo


O Grupo Neo-Realista de Vila Franca foi pioneiro dessa desordem cultural contra o fascismo e as várias repressões que o constituíam. Dos primeiros textos publicados no Mensageiro do Ribatejo, onde saiu o poema Turbilhão (1936)de Dias Lourenço que transportava já a temática, o ambiente metafórico do neo-realismo, até à famosa conferência de Redol sobre Arte, realizada em 36, no Grémio Artístico Vilafranquence, à criação e dinamização de bibliotecas no Ateneu, no Sport Lisboa e Vila Franca, no Ginásio onde, segundo António Redol, se formou uma biblioteca que foi a mais importante das existentes em Vila Franca, na qual nem sequer faltavam livros de Eça e de outros autores da Geração de 70, de Gladkov, Bukharine, Plekhanov, Gorki, Zola, Barbusse, Romain Rolland. A biblioteca organizada por Soeiro na Euterpe Alhandrense, os colóquios, os recitais, palestras de Redol sobre a música das gentes da bord’ água, de Soeiro sobre a evolução do universo, de Agostinho da Silva sobre petróleo, etc. A cultura como modo de resistir aos muros de nojo do fascismo, que juntava em seu torno um largo punhado de jovens intelectuais, pescadores, operários fabris e rurais, que tinham a consciência plena do país que habitavam e do meio em que a sua acção se desenvolvia e que tentaram, e em muitos aspectos conseguiram, modificar o estado das coisas, quer promovendo eventos culturais para além dos literários (teatro, cinema, artes plásticas), até à acção política, camuflada nos famosos passeios do Tejo e de acção directa nas fábricas de Alhandra, Vialonga, Alverca e Póvoa.


Além da particularidade dos aspectos culturais, éticos e políticos desenvolvidos pelos autores neo-realistas, o ensaio A Vermelha, de Iúri Amador, persegue de modo crítico e teórico a História da Resistência ao Estado Novo no Concelho de Vila Franca de Xira, entre 1926 e 1974; caracteriza de forma profunda e informada um concelho que reuniu, durante décadas, graças à sua privilegiada situação geográfica, condições singulares de desenvolvimento social, económico e cultural que marcaram, indelevelmente, um percurso e um tempo. Ali se deram os «primeiros passos» da resistência do PCP; a organização de importantes surtos grevistas (o 8 e 9 de Maio de 1944); a resistência do pós-guerra; os «anos do silêncio» (1950/57); a radicalização contra o Marcelismo, etc. De tudo isto nos fala o ensaio de Iúri Amador, livro que vem situar, de forma quase sempre correcta e lúcida, o lugar fundamental que a resistência dos comunistas, seus companheiros e aliados, tiveram no processo histórico, mesmo que condicionado à investigação de um pequeno núcleo, que conduziu ao 25 de Abril.


De salientar a proficiente tarefa da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo na publicação de livros que, para além da revitalização da memória dos anos do fascismo, nos trazem profunda análise desses dias, reconstroem e recolhem elementos históricos que andavam dispersos, através de um olhar contemporâneo, assertivo e livre. 


1 Iúri Amador, A Vermelha, p. 58, Edição Letras Parelas, Prior Velho, 2016

http://www.avante.pt/pt/2261/argumentos/144686/

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