Amanhã vou trepar pelas paredes por causa do que esqueci. Muito obrigada a
quem fez este jornal.
ALEXANDRA LUCAS COELHO
27 de Março
de 2017, 7:33
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1. Este
será o último texto que escrevo aqui. Põe fim a 20 anos e quero agradecê-los. O
PÚBLICO foi um grande jornal do mundo graças a milhares de pessoas. Que bom ter
feito parte dessa aventura.
2.
Entrei para os quadros deste jornal em Março de 1998. Antes, escrevera nele por
um ano, paga à peça, entre 1990 e 1991. A soma dos meus 20 anos remonta, pois,
ao arranque do PÚBLICO. Como centenas de jovens de todo o país, tentei entrar
para o primeiro grupo de estagiários quando o projecto foi anunciado. Já era
jornalista com carteira mas ainda não terminara o curso (Comunicação, na FCSH
da Nova). Quem estava a norte fez a prova no Porto. Quem estava a sul, como eu,
fez em Lisboa. Lembro-me de uma plateia de cabeças no Fórum Picoas, num sábado
de manhã, por certo demasiado cedo. Era 1989, eu tinha 21 anos, fazia noites na
rádio, ainda havia estações piratas, escrevíamos à mão. Tempos antes, a TSF
abrira candidaturas e as inscrições tinham de ser manuscritas. Chumbei logo
nessa etapa (nunca soube o que revela a minha letra). E voltei a chumbar na
prova do PÚBLICO: não me chamaram para o grupo dos que iam ser treinados por
jornalistas lendários, como Adelino Gomes. Mas recebi uma carta a dizer que
poderia propôr textos quando o jornal chegasse às bancas. Agarrei-me a isso,
começando pelo Local, editado por Francisco Neves, onde muito aprendi. Ia
saltando de secretária consoante quem folgasse. Até que a Paula Torres de
Carvalho entrou em licença de parto e por uns meses atribuíram-me o lugar dela
na Sociedade. Aquilo era um antro de craques da escrita, desde Rui Cardoso
Martins (saído da faculdade) aos veteranos José Amaro Dionísio (poeta que eu
lia) ou Rogério Rodrigues (pai de um Tiago então com 13 anos que hoje está no
Rossio). O ciclone Vicente Jorge Silva soprava de uma ponta a outra na Quinta
do Lambert. Escrevíamos em ecrãs a preto e branco. Os computadores eram umas
caixinhas com uma ranhura para as disquetes. As disquetes serviam para
transportar textos. As notícias chegavam à sala dos telexes, que jorravam rolos
de papel com furinhos. A palavra Internet estava no ovo do futuro. Quando
precisávamos de comunicar com o estrangeiro, íamos às máquinas enviar um fax,
ou falávamos uma fortuna no telefone fixo. Os primeiros telemóveis de que me
lembro são do ano seguinte, uns tijolos que as rádios usavam. Porque, em Março
de 1991, quando Francisco Sena Santos se mudou da TSF para as manhãs da Antena
1, fui integrar a equipa dele, com salário fixo.
3. Mas
fiz uma perninha no PÚBLICO logo depois, em Agosto, no golpe que levou ao fim
da URSS. Eu estava de férias em Moscovo e a rádio ficara com o número de
telefone da família que me alojava. Às cinco da manhã, Sena Sentos acordou-me a
dizer que Gorbatchov fora sequestrado. Passei a enviada especial da rádio nesse
momento. E, como era Agosto, e o correspondente do PÚBLICO, José Milhazes,
estava de férias em Portugal, comecei a escrever para o jornal também, até
Teresa de Sousa chegar, dias depois. Foi a minha primeira reportagem
internacional, sem gravador, computador ou telemóvel. Entrava em directo por
aquele telefone fixo do tempo de Brejnev, sendo que aquilo ainda era a URSS.
Não podia ligar directamente para o estrangeiro, tinha de agendar com a telefonista.
E, para o jornal, escrevia à mão e ditava.
4.
Passaram sete anos. Vicente Jorge Silva e Jorge Wemans deixaram o PÚBLICO. O
começo de 1998 foi uma fase de transição no jornal, gente a sair, a entrar. Um
dia ligou-me a Isabel Salema, que fizera parte daquele
primeiro grupo de estagiários (como o Rui e a Alexandra Prado Coelho, que tinham sido da minha
turma na faculdade, o Paulo Moura, o Pedro Rosa Mendes, a Bárbara Simões, o Vasco
Câmara, tantos outros). Encontrei-me com a Isabel num café das
Amoreiras e ela perguntou se eu queria ir para o jornal. Havia duas hipóteses
na mesa: ser jornalista do Internacional ou ir editar o suplemento “Leituras”,
até aí feito por Tereza Coelho, que acabava de sair. Ambas aconteceram, por
essa ordem.
5. O
Internacional era uma jóia do PÚBLICO. Ali estavam Teresa
de Sousae Jorge Almeida Fernandes, enciclopédias vivas,
mais a enciclopédia de Médio Oriente que era a editora Margarida Santos Lopes.
Estava o impassível João Carlos Silva, que parecia nascido para editar, fosse o
Internacional ou a revista Pública, durante anos. Estavam jovens grandes
repórteres como a Alexandra, o Paulo, o Pedro, jornalistas especialistas em
cada parte do mundo, dezenas de correspondentes internacionais. Aquele era o
jornal que tinha arrancado na Guerra do Golfo de 1990, com Adelino Gomes e
tantos outros como enviados. E continuava a ser. A minha primeira pasta foi
Europa de Leste e Rússia (onde eu continuara ir, para a rádio). Assim me achei
em Iasnaia Poliana, a terra dos Tolstoi, pelo Verão de 98.
6. Mas a
Cultura ia montar uma equipa nova, e meses depois mudei-me para lá. Fui editar
a secção, com a Isabel Salema, e o suplemento “Leituras” (que entretanto fora
assegurado por Mário Santos, leitor raro, vastíssimo). A Cultura era outra jóia
do PÚBLICO, outro antro de craques, todo um histórico desde a fundação,
passando pelas barbas do ex-editor Torcato Sepúlveda. Ali moravam críticos de
teatro como Manuel João Gomes! O luxo de o ouvir contar dos surrealistas, de
Luiza Neto Jorge ou da vantagem de comer sopa logo pela manhã. Ou críticos de
música como Fernando Magalhães, um génio que escrevia sobre musas celtas
enrolado no cachecol do seu clube. Ali estava o Jaime Rocha dos poemas e das
peças, que para nós será sempre Rui Ferreira e Sousa, o cabelo branco mais
bonito das redacções. E grandes jovens jornalistas e/ou críticos, que se
matavam a trabalhar: Kathleen Gomes, Lucinda
Canelas, Joana Gorjão Henriques, Tiago
Luz Pedro, Rui Catalão, Pedro Ribeiro. Isto era na Quinta do Lambert,
já noutro edifício, mas meio mundo ainda fumava. O Vasco fumava à minha frente,
a Isabel fumava à minha esquerda, e eu fumava no meio das torres de livros do
“Leituras”, que se acumulavam entre o meu computador e a parede. Mesmo com
parede, havia desmoronamentos. E ministros da Cultura que caíam, e ofertas de
pancada. A guerra diária tinha muitas frentes, várias páginas conquistadas na
reunião de editores da manhã, e ainda havia a guerra semanal dos suplementos.
Aquela secção era um reboliço de gente a chegar com discos, a sair com livros,
a ir para a rua, várias gerações cruzadas, um caldo de memória do século XX,
património e contra-cultura, colectivos e solitários. A gente fechava páginas
às tantas da noite, e podia continuar a escrever até chegarem as empregadas da
limpeza, e então ia tomar o pequeno-almoço, para voltar à guerra, outra vez.
7. A
Cultura teve vários suplementos desde o começo do PÚBLICO. Antes de o milénio
virar, passou a ter dois, novos. Um para livros, música clássica, artes e arquitectura,
o “Mil Folhas”, de que eu era editora. Outro para cinema, música pop, dança e
teatro, o “Y”, de que o Vasco era editor. Foi o Eduardo Prado Coelho que
sugeriu Mil Folhas, e eu abandonei logo a minha lista de maus nomes. Foi também
o Eduardo que sugeriu jovens estudantes de Letras, como Clara Rowland e
Francisco Frazão, para juntar aos muitos críticos já ligados ao jornal. Além de
assinar uma página no “Mil Folhas”, o Eduardo foi sempre um conselheiro. Morreu
há dez anos, e a falta que nos faz, em humor e inteligência, cultura e argúcia.
Ninguém em Portugal ocupou o seu papel, os seus vários papéis. De resto,
gostava de ter aqui espaço para agradecer a todos os críticos com quem
trabalhei semanalmente, e me aturaram inexperiências, tantas. Além do Eduardo,
havia vários colunistas regulares. O Jorge Silva Melo foi um deles, e não há
dia em que eu receba aqueles mails dos Artistas Unidos sem lhe tirar o chapéu
pela persistência, por tudo o que deu e dá a este país capaz de abandonar os
melhores. Um dia, no meio de um descampado, discuti com o Jorge ao telefone,
sei lá eu já porquê. Que parvoíce. Que saudades de o ler. Que sorte ter feito
parte do meu trabalho ler gente assim, ter feito o “Mil Folhas” quando havia
tantas editoras independentes, tê-lo feito com a Ivone Ralha a paginar, e o
Jorge Silva como director de arte, sempre a brigar por mais ilustração. Ser
possível fazer números especiais quando o Manuel Hermínio Monteiro morreu, a
Sophia morreu, o Cesariny morreu (tantos desenhos, fotografias, manuscritos que
ficaram algures no PÚBLICO). Poder ter Vítor Silva Tavares a escrever sobre
Almada, e bater no computador a “cartinha” dele, que era o texto. Convidar
Ernesto Sampaio a escrever crítica de teatro, recebê-lo na redacção, publicar
os seus textos. Tantos textos do caraças.
8.
Estive na Cultura por anos, com um pé volta e meia no Internacional. No 11 de
Setembro, o PÚBLICO já estava no edifício de Picoas (terceira mudança), e
atulhámos-nos todos madrugada dentro, para fazer uma segunda edição. Voei para
o Paquistão logo a seguir, estive um mês a tentar passar a fronteira afegã,
depois esperei sete anos para viajar pelo Afeganistão. Mas pelo meio, aconteceu
o Médio Oriente: Israel/Palestina, Iraque, Jordânia, Líbano. E isso tem origem
na Cultura. Tudo porque a nova Biblioteca de Alexandria ia abrir na Primavera
de 2002, eu queria conhecer a cidade e a inauguração era um bom gancho. Propus
ir um mês, como se fosse de férias, mas o jornal dava-me esse tempo, e eu
escrevia para o jornal. Só que, quando aterrei no aeroporto do Cairo, a
Margarida Santos Lopes ligou-me, e esse telefonema mudou o meu destino. O
exército israelita estava a invadir as cidades palestinianas, na sequência de
uma série de atentados suicidas. A Margarida perguntava se eu não podia ir
cobrir aquilo. Eu não fazia bem ideia do que era aquilo, nem sequer onde era
Ramallah, mas fui. Em vez de apanhar um autocarro para Alexandria, apanhei um
avião para Jerusalém. Acabei por ir a Alexandria em finais desse ano porque a
inauguração da Biblioteca foi adiada, mas a paixão por Jerusalém e tudo em
volta dura até hoje, e devo-a à Margarida. Essa Primavera de 2002 teve cerco à
Basílica da Natividade, recolher obrigatório em Ramallah, massacre em Jenin, e
tiveram de me arrancar de Gaza ao fim de mês e meio a escrever todos os dias,
porque já ninguém aguentava mais textos sobre o assunto, nem esperar que eu os
enviasse às tantas da noite.
9.
Aproveito para agradecer a toda a gente que esperou in extremis por
textos meus sem arrancar cabelos, fosse de Gaza ou de Trás-os-Montes. E, a
propósito de Trás-os-Montes, este texto é centrado na redacção de Lisboa porque
era a minha, mas fui feliz um mês na redacção do Porto, correndo serras e
léguas com o Paulo Pimenta ou o Nelson
Garrido a fotografar. Tudo o que fizemos, dessa vez ou noutras,
da nascente do Sabor ao Padre Fontes, passando pela visita a Margarida
Cordeiro, e pelos territórios do cinema de António Reis, está entre as
reportagens de que mais gostei na vida.
10. Além
da Cultura e do Internacional, trabalhei vários anos na Pública, onde tive
outra grande editora, a Dulce Neto. A Joana Amado foi minha editora em
diferentes alturas, nomeadamente nos anos do Brasil. Gostaria de ter integrado
em algum momento a equipa de José Vítor Malheiros na Ciência. O anjo da guarda
da direcção e de todos nós era a Lucília Santos. Secretárias como Isabel
Anselmo e Paula Dias não perderam a paciência, idem para desks como Rita
Pimenta e Manuela Barreto, ou a telefonista São ou a Leonor
Sousa, no Centro de Documentação, que me ajudou tanto. Coadjuvado por Nuno
Pacheco, o director que tive por mais tempo foi José Manuel
Fernandes, com quem travei dicussões tão épicas como daquela vez em que o
relógio dele voou contra o vidro do gabinete. Essa foi por causa do Conselho de
Redacção. De resto, da invasão do Iraque ao conflito israelo-palestiniano,
estávamos em desacordo em quase tudo. Mas isto nunca se traduziu em qualquer
obstáculo a que eu fosse enviada ou escrevesse, que eu saiba. Foi JMF quem deu
luz verde a várias propostas minhas, como ir morar para Jerusalém como
correspondente improvisada. Também foi ele quem me convidou a escrever crónicas,
nem sei bem há quanto tempo, 18 anos? A primeira série chamava-se Erva-moira e
era uma tortura tão grande que ao fim de um tempo deixei um bilhete a JMF, a
dizer que era melhor esquecermos. Em Jerusalém, voltei a fazer crónicas,
chamavam-se Oriente Próximo. Mais tarde, Viagens com Bolso,
depois Atlântico-Sul. Optei por deixar os quadros em Dezembro de
2012, quando morava no Rio de Janeiro. Desde então, acordei com o jornal
algumas reportagens (primeiro mensais, depois anuais) e uma crónica semanal,
que desde a volta do Brasil se chama Não ficções. Esta é a última.
Amanhã vou trepar pelas paredes por causa do que esqueci. Muito obrigada a quem
fez este jornal, e a quem o leu. O PÚBLICO é desses muitos. Que inspirem quem
vier.
Jornalista
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