quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Chico Buarque - As Caravanas

* Chico Buarque
 


É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turqueza à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana

A caravana do Arará — do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o combio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá — é o bicho, é o buchicho é a charanga

Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
Diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré

Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão

E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará

domingo, 27 de agosto de 2017

Luís de Camões - Soneto XXIX

* Luís de Camões

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se não a tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora,
Para tão longo amor, tão curta a vida.

(Soneto XXIX. Luís de Camões, 1524-1580)

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Manuel António Pina - A poesia vai acabar

* Manuel António Pina 


A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não 
acabarem). esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive de voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
– Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –


Manuel António Pina, Poesia, saudade da prosa.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

em torno da des / informação




A informação que temos não é a que desejamos. A informação que desejamos não é a que precisamos. A informação que precisamos não está disponível” - John Peers.

Quando se descobriu que a informação era um negócio, a verdade deixou de ser importante - Ryszard Kapuscinski.

Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data - Luís F. Veríssimo. 

Uma opinião pública inquinada por falsidades ou meias verdades não está em condições de formar um juízo válido sobre as alternativas políticas que lhe são propostas.

Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma - Joseph Pulitzer ( 1847-1911)

"Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade" - Joseph Goebbels
- citado em "The Sack of Rome" - Page 14 - por Alexander Stille e também citado em "A World Without Walls: Freedom, Development, Free Trade and Global Governance" - Page 63 por Mike Moore - 2003

Politicamente só existe o que se sabe que existe, politicamente o que parece é. Oliveira Salazar  - Discursos (1940)

"Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado... quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente agora?! Agora testemunhe, está logo atrás da porta" - Georges Orwell - 1984

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

António Aleixo - Não Dês Esmola a Santinhos

* António Aleixo  

MOTE
Não dês esmola a santinhos,
Se queres ser bom cidadão; 
Dá antes aos pobrezinhos
Uma fatia de pão.
GLOSAS
Não dês, porque a padralhada
Pega nas tuas esmolinhas
E compra frangos e galinhas
Para comer de tomatada;
E os santos não provam nada,
Nem o cheiro, coitadinhos...
Os padres bebem bons vinhos
Por taças finas, bonitas...
Se elas são p'ra parasitas,
Não dês esmola a santinhos.
Missas não mandes dizer,
Nem lhes faças mais promessas
E nem mandes armar essas
Se um dia alguém te morrer.
Não dês nada que fazer
Ao padre e ao sacristão,
A ver para onde eles vão...
Trabalhar, não, com certeza.
Dá sempre esmola à pobreza
Se queres ser bom cidadão.
Tu não vês que aquela gente
Chega até a fingir que chora,
Afirmando o que ignora,
Assim descaradamente!?...
Arranjam voz comovente
Para jludir os parvinhos
E fazem-se muito mansinhos,
Que é o seu modo de mamar;
Portanto, o que lhe hás-de dar,
Dá antes aos pobrezinhos.
Lembra-te o que, à sexta-feira,
O sacristão — o mariola! —
Diz, quando pede a esmola:
«Isto é p'rà ajuda da cera»...
Já poucos caem na asneira,
Mas em tempos que lá vão,
Juntavam grande porção
De dinheiro, em prata e cobre,
E não davam a um pobre
Uma fatia de pão.
António Aleixo, in "Este Livro que Vos Deixo..."

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

António Aleixo - Não creio nesse Deus

* António Aleixo


Não sei se és parvo se és inteligente
Ao disfrutares vida de nababo
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

Não vês que o teu bem-estar faz d’outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p’ra ti o céu e a terra…
Não te achas egoísta ou exigente?

Não creio nesse Deus que, na igreja,
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P’ra o homem conseguir o que deseja.

Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?…
P’ra esses é o céu; porque o inferno
É p’ra quem vive a vida à custa alheia!

António Aleixo

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Francisco A. de Icaza - Dale limosna, mujer


Poema inscrito numa das torres da parte mais antiga do palácio de Alhambra, em Granada

Francisco A. de Icaza

Dale limosna, mujer, 
que no hay en la vida nada 
como la pena de ser ciego en Granada.
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Fais-lui l’aumône, ô femme, 
Car il n’y a plus grande peine 
Que d’être aveugle à Grenade.
~~~~~~~~~~
Dá-me uma esmola, mulher 
Que não há na vida nada
Como o castigo de ser cego em Granada.

do poeta mexicano Francisco A. de Icaza (1863/1925)