domingo, 18 de dezembro de 2022

Jorge Figueiredo - A Biblioteca de Estaline, por Geoffrey Roberts

* Jorge Figueiredo

Stalin's Library foi escrito por um professor de história irlandês da Universidade de Cork, Geoffrey Roberts. Trata-se de um homem de formação conservadora que julgou conveniente acrescentar-lhe um subtítulo: “A Dictator and his books”. A sua ambição é fazer uma biografia (intelectual) daquele dirigente soviético através dos livros por ele lidos. A abordagem é pelo menos original e o autor tem credenciais como perito em história soviética. Anteriormente publicara uma biografia do general Jukov (Stalin's General) e uma obra com mais fôlego: Stalin's Wars: From World War do Cold War.

Os viéses da sua abordagem são evidentes logo na primeira linha da introdução, em que classifica Estaline como “um dos mais sangrentos ditadores da história” (sic). A afirmação é factualmente errada pois houve muitos outros chefes de Estado que o superaram. Poderia ter-se referido a Churchill, por exemplo, que foi responsável por muitíssimo mais mortes do que Estaline; ou pelo rei dos belgas que com a tecnologia do século XIX conseguiu matar mais de dois milhões de habitantes do Congo; ou por Napoleão Bonaparte que dizimou exércitos inteiros. E isso sem remontar à história mais antiga como os massacres de Gengis Khan (século XIII) e de Tamerlão (ou Timur) no século XV (diga-se de passagem que hoje Timur é considerado o herói nacional do Uzbequistão, com direito a uma enorme estátua na praça principal de Tashkent e a um mausoléu em Samarcanda).

Naturalmente, nos meios em que se move autor, diabolizar Estaline é obrigatório pois dá garantias de “respeitabilidade académica” & carreira. Entretanto, abstraindo esse parti pris, merece exame o aspecto principal da sua investigação. O autor teve acesso a muita documentação e entrevistou numerosas pessoas em Moscovo, beneficiando-se de trabalhos anteriores já feitos. A sua estimativa é de que a biblioteca de Estaline continha ao todo cerca de 25 mil livros. Note-se que “biblioteca” neste caso é mais um conceito do que uma realidade física pois estava espalhada por vários locais.

Um dos pontos com interesse é que grande parte dos seus livros continham anotações (pometki, em russo) do próprio Estaline, o que é uma indicação espontânea dos seus graus de interesse nas obras que lia. Elas podiam ser simples sublinhados, sinais de exclamação, de riso (“ah, ah”), de desprezo (“tagarelice”, “absurdo”, “lixo”, “asqueroso”, “patife”), efusivas (“sim, sim”, “concordo”, “bom”, “acertou em cheio”, “certo”), dubitativas (“m da”, que numa tradução livre poderia ser “realmente?”, “tem certeza?) ou organizativas (numeração de tópicos). Uma anotação frequente era o “NB”, do latim nota bene (atenção), mas muitas vezes havia frases inteiras com juízos mais elaborados. Verificava-se também que a leitura de certas obras foi abandonada, talvez com menosprezo, pois as anotações foram só nas primeiras páginas e nas conclusões.

A parte principal da biblioteca ficava na casa de campo (dacha) de Estaline próxima do Kremlin, a 10 minutos de viagem. Durante a II Guerra, quando a tropa nazi se aproximava de Moscovo, toda a biblioteca foi encaixotada e despachada para Samara (a 1000 km) – mas o próprio Estaline permaneceu o tempo todo em Moscovo. Após a sua morte o PCUS considerou transformar aquela dacha num museu dedicado a Estaline, mas a ideia foi posteriormente vetada por Krushov. Em consequência, e lamentavelmente, a biblioteca foi parcialmente dispersa por vários organismos estatais.

Estaline era um leitor voraz e, como diz Roberts, “raramente lia para confirmar o que já sabia ou acreditava. Ele lia para aprender algo novo”. A gama dos seus interesses era vasta. Além dos clássicos do marxismo, tinha especial interesse por história russa e de outros países, história e estratégia militar, biografias, memórias, diplomacia, filosofia, economia política, finanças, agricultura, indústria, a questão nacional, estatísticas, etc. A pedido da sua bibliotecária chegou a fazer um sistema de classificação/arrumação da sua biblioteca, com cerca de 30 tópicos (p. 66 do livro).

Ele também lia cuidadosamente o que escreviam os seus inimigos: as obras de Trotsky constavam na sua biblioteca. Os três volumes da auto-biografia de Bismarck, o grande mestre da realpolitik, foram por ele lidos e anotados minuciosamente. As quatro obras de Genrik Leer, estratega do século XIX considerado como o Clausewitz russo, foi por ele estudado. Mas o seu teórico de estratégia favorito parece ter sido Boris Shaposhnikov, um antigo oficial czarista que aderiu ao Exército Vermelho em 1918. O que mais apreciava em Shaposhnikov era a combinação da grande estratégia com pormenores organizacionais críticos. Por outro lado, Estaline tinha consciência das suas limitações pois chegou a pedir a um professor de filosofia especialista em Hegel que lhe desse explicações acerca da dialética hegeliana (fica-se a pensar se algum dos nossos governantes contemporâneos se atreveria a uma tal proeza).

No campo da literatura propriamente dita, Estaline também lia por prazer. Tinha um vasto conhecimento da literatura clássica russa (Gogol, Pushkin, Dostoievsky, Turgeniev, ...) e estrangeira: Shakespeare, Heine, Balzac, V.Hugo, Guy de Maupassant e outros escritores da Europa ocidental. Entretanto, não apreciava o vanguardismo pois considerava-o como pouco acessível à massa dos leitores. O romance A Mãe, de Gorki, estava todo anotado por Estaline, mas o que realmente o excitou foi a frase de um personagem, ex-camponês tornado operário:   “Ajude-me! Deixe-me ter livros – livros que quando um homem os ler já não seja capaz de descansar. Que coloquem um ouriço espinhento nos seus cérebros. Diga às pessoa da cidade que escrevem para escreverem também para os aldeões. Que escrevam uma verdade tão candente que faça ferver a aldeia, que o povo até corra para a morte” (p. 94).

Estaline considerava que se podia aprender de reacionários e que não se deveria confundir um escritor com a sua obra artística. Deu como exemplo o Almas mortas, romance de Gogol cujo título refere-se aos servos da sociedade czarista:   “Gogol foi sem dúvida um reacionário. Ele era um místico. Era contra a abolição da servidão... Mas... a verdade artística das Almas mortas de Gogol teve um enorme impacto sobre várias gerações da intelligentzia revolucionária... As visões de mundo dos escritores não deveriam ser confundidas com o impacto das suas obras sobre os leitores” (p. 179). Esta visão nuançada é plasmada na sua tese acerca da autonomia relativa da super-estrutura social em relação à sua base económica – uma contribuição positiva para a filosofia marxista, pois demarca-a do determinismo económico bruto.

Um capítulo do livro de Roberts é dedicado ao papel de Estaline como editor. Ele editava textos com clareza e precisão. Muitas obras escritas por comissões de especialistas na verdade foram tão fortemente editadas por ele que poderia ser considerado como co-autor das mesmas. É o caso da Breve história do Partido Comunista da União Soviética (1938), o volume dois da História diplomática (1941); a 2ª edição da sua breve biografia (1947); o folheto Falsificadores da história (1948) e o manual soviético Economia política (1954). Se fosse preciso resumir, os seus critérios de edição talvez pudessem ser:   1) Manter as coisas tão simples quanto possível; 2) Evitar palavras desnecessárias num manual didático; 3) Ter em atenção o público-alvo a que se destina a obra; 4) Concentrar-se no assunto tratado; 5) Considerar que são as ideias que importam, não os indivíduos – ideias num contexto teórico.


Em resumo: Mesmo com os preconceitos deste sovietólogo irlandês, Stalin's Library é um livro que se pode ler com interesse e proveito. Apesar da vontade permanente de denegrir a figura de Estaline, não se pode deixar de observar que Roberts tem um fascínio pelo objeto do seu estudo. Transparece no livro que a bagagem de leitura ciclópica de Estaline, a seriedade com que estudava os assuntos e a sua capacidade de trabalho gigantesca em tantas e tão diversas frentes do conhecimento humano suscitaram a sua admiração.

18/Dezembro/2022

Esta resenha encontra-se em resistir.info

18/Dez/22

https://resistir.info/jf/resenha_bibl_est.html

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