* Jorge Figueiredo
Stalin's Library foi escrito por um professor
de história irlandês da Universidade de Cork, Geoffrey Roberts. Trata-se de um
homem de formação conservadora que julgou conveniente acrescentar-lhe um
subtítulo: “A Dictator and his books”. A sua ambição é fazer
uma biografia (intelectual) daquele dirigente soviético através dos livros por
ele lidos. A abordagem é pelo menos original e o autor tem credenciais como
perito em história soviética. Anteriormente publicara uma biografia do general Jukov (Stalin's General) e uma obra com mais
fôlego: Stalin's Wars: From World War do Cold War.
Os viéses da sua abordagem são
evidentes logo na primeira linha da introdução, em que classifica Estaline como
“um dos mais sangrentos ditadores da história” (sic). A afirmação é
factualmente errada pois houve muitos outros chefes de Estado que o superaram.
Poderia ter-se referido a Churchill, por exemplo, que foi responsável por
muitíssimo mais mortes do que Estaline; ou pelo rei dos belgas que com a
tecnologia do século XIX conseguiu matar mais de dois milhões de habitantes do
Congo; ou por Napoleão Bonaparte que dizimou exércitos inteiros. E isso sem
remontar à história mais antiga como os massacres de Gengis Khan (século XIII)
e de Tamerlão (ou Timur) no século XV (diga-se de passagem que hoje Timur é
considerado o herói nacional do Uzbequistão, com direito a uma enorme estátua
na praça principal de Tashkent e a um mausoléu em Samarcanda).
Naturalmente, nos meios em que se
move autor, diabolizar Estaline é obrigatório pois dá garantias de
“respeitabilidade académica” & carreira. Entretanto, abstraindo esse parti
pris, merece exame o aspecto principal da sua investigação. O autor
teve acesso a muita documentação e entrevistou numerosas pessoas em Moscovo,
beneficiando-se de trabalhos anteriores já feitos. A sua estimativa é de que a
biblioteca de Estaline continha ao todo cerca de 25 mil livros. Note-se que
“biblioteca” neste caso é mais um conceito do que uma realidade física pois estava
espalhada por vários locais.
Um dos pontos com interesse é que
grande parte dos seus livros continham anotações (pometki, em
russo) do próprio Estaline, o que é uma indicação espontânea dos seus graus de
interesse nas obras que lia. Elas podiam ser simples sublinhados, sinais de
exclamação, de riso (“ah, ah”), de desprezo (“tagarelice”,
“absurdo”, “lixo”, “asqueroso”, “patife”), efusivas (“sim,
sim”, “concordo”, “bom”, “acertou em cheio”, “certo”), dubitativas (“m
da”, que numa tradução livre poderia ser “realmente?”, “tem certeza?)
ou organizativas (numeração de tópicos). Uma anotação frequente era o “NB”, do
latim nota bene (atenção), mas muitas vezes havia frases
inteiras com juízos mais elaborados. Verificava-se também que a leitura de
certas obras foi abandonada, talvez com menosprezo, pois as anotações foram só
nas primeiras páginas e nas conclusões.
A parte principal da biblioteca
ficava na casa de campo (dacha) de Estaline próxima do
Kremlin, a 10 minutos de viagem. Durante a II Guerra, quando a tropa nazi se
aproximava de Moscovo, toda a biblioteca foi encaixotada e despachada para
Samara (a 1000 km) – mas o próprio Estaline permaneceu o tempo todo em Moscovo.
Após a sua morte o PCUS considerou transformar aquela dacha num
museu dedicado a Estaline, mas a ideia foi posteriormente vetada por Krushov.
Em consequência, e lamentavelmente, a biblioteca foi parcialmente dispersa por
vários organismos estatais.
Estaline era um leitor voraz e,
como diz Roberts, “raramente lia para confirmar o que já sabia ou acreditava.
Ele lia para aprender algo novo”. A gama dos seus interesses era vasta. Além
dos clássicos do marxismo, tinha especial interesse por história russa e de
outros países, história e estratégia militar, biografias, memórias, diplomacia,
filosofia, economia política, finanças, agricultura, indústria, a questão
nacional, estatísticas, etc. A pedido da sua bibliotecária chegou a fazer um
sistema de classificação/arrumação da sua biblioteca, com cerca de 30 tópicos
(p. 66 do livro).
Ele também lia cuidadosamente o
que escreviam os seus inimigos: as obras de Trotsky constavam na sua
biblioteca. Os três volumes da auto-biografia de Bismarck, o grande mestre
da realpolitik, foram por ele lidos e anotados minuciosamente.
As quatro obras de Genrik Leer, estratega do século XIX considerado como o
Clausewitz russo, foi por ele estudado. Mas o seu teórico de estratégia
favorito parece ter sido Boris Shaposhnikov, um antigo oficial czarista que
aderiu ao Exército Vermelho em 1918. O que mais apreciava em Shaposhnikov era a
combinação da grande estratégia com pormenores organizacionais críticos. Por
outro lado, Estaline tinha consciência das suas limitações pois chegou a pedir
a um professor de filosofia especialista em Hegel que lhe desse explicações
acerca da dialética hegeliana (fica-se a pensar se algum dos nossos governantes
contemporâneos se atreveria a uma tal proeza).
No campo da literatura
propriamente dita, Estaline também lia por prazer. Tinha um vasto conhecimento
da literatura clássica russa (Gogol, Pushkin, Dostoievsky, Turgeniev, ...) e
estrangeira: Shakespeare, Heine, Balzac, V.Hugo, Guy de Maupassant e outros
escritores da Europa ocidental. Entretanto, não apreciava o vanguardismo pois
considerava-o como pouco acessível à massa dos leitores. O romance A
Mãe, de Gorki, estava todo anotado por Estaline, mas o que realmente o
excitou foi a frase de um personagem, ex-camponês tornado operário:
“Ajude-me! Deixe-me ter livros – livros que quando um homem os ler já não seja
capaz de descansar. Que coloquem um ouriço espinhento nos seus cérebros. Diga
às pessoa da cidade que escrevem para escreverem também para os aldeões. Que
escrevam uma verdade tão candente que faça ferver a aldeia, que o povo até
corra para a morte” (p. 94).
Estaline considerava que se podia
aprender de reacionários e que não se deveria confundir um escritor com a sua
obra artística. Deu como exemplo o Almas mortas, romance de
Gogol cujo título refere-se aos servos da sociedade czarista: “Gogol foi
sem dúvida um reacionário. Ele era um místico. Era contra a abolição da
servidão... Mas... a verdade artística das Almas mortas de
Gogol teve um enorme impacto sobre várias gerações da intelligentzia revolucionária...
As visões de mundo dos escritores não deveriam ser confundidas com o impacto
das suas obras sobre os leitores” (p. 179). Esta visão nuançada é plasmada na
sua tese acerca da autonomia relativa da super-estrutura social em relação à
sua base económica – uma contribuição positiva para a filosofia marxista, pois
demarca-a do determinismo económico bruto.
Um capítulo do livro de Roberts é
dedicado ao papel de Estaline como editor. Ele editava textos com clareza e
precisão. Muitas obras escritas por comissões de especialistas na verdade foram
tão fortemente editadas por ele que poderia ser considerado como co-autor das
mesmas. É o caso da Breve história do Partido Comunista da União
Soviética (1938), o volume dois da História diplomática (1941);
a 2ª edição da sua breve biografia (1947); o folheto Falsificadores da
história (1948) e o manual soviético Economia política (1954).
Se fosse preciso resumir, os seus critérios de edição talvez pudessem ser:
1) Manter as coisas tão simples quanto possível; 2) Evitar palavras
desnecessárias num manual didático; 3) Ter em atenção o público-alvo a que se
destina a obra; 4) Concentrar-se no assunto tratado; 5) Considerar que são as
ideias que importam, não os indivíduos – ideias num contexto teórico.
Em resumo: Mesmo com os
preconceitos deste sovietólogo irlandês, Stalin's Library é um
livro que se pode ler com interesse e proveito. Apesar da vontade permanente de
denegrir a figura de Estaline, não se pode deixar de observar que Roberts tem
um fascínio pelo objeto do seu estudo. Transparece no livro que a bagagem de
leitura ciclópica de Estaline, a seriedade com que estudava os assuntos e a sua
capacidade de trabalho gigantesca em tantas e tão diversas frentes do
conhecimento humano suscitaram a sua admiração.
18/Dezembro/2022
Esta resenha encontra-se
em resistir.info
18/Dez/22
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