Opinião
* Christiana Martins
Brasil: esta cova é a parte que te cabe deste latifúndio
Acabou. Não vai começar nada, não dá tempo, aquele chavão de
“brasileiro, profissão esperança” é coisa do passado. Acabou mesmo. Não me
venham falar do amor, do sorriso e da flor. O barquinho já não está no mar.
Afundou. E eu cansei. Não há mais essa conversa do país do futuro, dos jovens,
nem da alegria, nem do futebol ou do samba. Esqueçam isso, tirem a maquilhagem.
Dispam a fantasia. O Carnaval acabou.
Que conversa é essa? Temos de nos confrontar: 46 milhões de
brasileiros vestiram-se com a bandeira nacional, apropriando-se do símbolo
identitário do país, e votaram num candidato antidemocrático, racista,
misógino, violento. Têm todo o direito de o fazer e exerceram este direito em
plenitude, não se coibiram. Não lhes vou dar os parabéns, não me peçam. Mas
também não lhes recuso o direito a expressar livremente a sua vontade. O que é
preciso é arrancar a máscara, olhar com olhos de ver as consequências desta
decisão. E este Brasil é feio de se ver.
Sinais: um compositor e professor de capoeira de 63 anos
terá sido morto num bar em Salvador, estado da Bahia, depois de ter dito que
votara no PT. Um dos responsáveis por partir ao meio uma placa em homenagem à
vereadora Marielle Franco, assassinada em março deste ano, foi o eleito com o
maior número de votos para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
É preciso sublinhar que os eleitores brasileiros não são
inimputáveis, não são crianças, não são diminuídos mentais. Quem votou fez o
que quis. Como quis. Não é porque o sotaque é mais doce, o sorriso mais aberto,
o balanço do corpo mais fluido que eles não são seres racionais. São. Foram. E
porque são adultos, têm de ser responsabilizados. Eu aceito o resultados, eles
terão de prestar contas. E nós teremos de aprender a cobrar a dura fatura que
já se antevê. Estamos todos avisados.
Os eleitores de Jair Bolsonaro não são analfabetos,
iliterados, nem têm défice cognitivo. A “Folha de São Paulo” já analisou os
resultados e constatou que “nos 25% dos municípios com o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) mais alto, Bolsonaro teve média de 58% dos votos”.
Sabem ler e souberam escrever, embora nem fosse necessário, bastava digitar
alguns botões.
Não repitam, portanto, a ideia de que estes votantes são
apenas pessoas de bem que querem a ordem e o progresso do país e que, se não
for o capitão reformado, o caos será o destino do Brasil. Essas pessoas não
foram ao engano, não podem invocar a banalidade do mal. Sérgio Rodrigues,
escritor premiado em Portugal com “O drible” - um romance sobre o
desporto-pátrio -, deixou o alerta na nova praça pública que são as redes
sociais, dias antes da votação: “A vitória de Bolsonaro só se torna um evento
provável porque pessoas bem intencionadas, pacíficas, civilizadas, muito
distantes do estereótipo boçal de seus apoiadores iniciais, estão aderindo a
ele. É o que chamo, citando a filósofa Hannah Arendt, BANALIDADE do mal. A
banalidade do mal à brasileira”.
O escritor, profundo conhecedor da língua portuguesa, já
entrevistado para o Expresso, continua a fundamentar o seu raciocínio:
“Guardadas as devidas proporções, num processo semelhante ao que tornou a
monstruosidade nazista viável porque implementada por gente comum, não
monstruosa, estamos vendo que os fartos sinais de covardia, despreparo,
ignorância, fanfarronice, falta de ética, de humanidade e de programa emitidos
pelo candidato do PSL, em vez de desmoralizá-lo, são vistos como qualidades por
pessoas que julgávamos insuspeitas. Sinais trocados: toda a crise política é
também uma crise cognitiva. Por que ocorre essa distorção? Porque do outro lado
temos um partido autocentrado e arrogante que nunca reconheceu seus graves
erros. O PT subestima grosseiramente a potência do antipetismo. Talvez tente
corrigir isso no segundo turno, quem sabe dá tempo. O problema é que pode não
haver segundo turno.” Vai haver segundo turno, sim. Mas para quê?
Alguém consegue acreditar que em três semanas o PT consiga
alterar o seu código genético, que as forças vivas do Brasil se unam, ganhem
juízo e carisma e falem às pessoas de forma a serem audíveis? Mas mais, estarão
as pessoas disponíveis para os ouvir? Haverá uma evolução civilizacional e um
reforço da crença nas instituições suficiente para reverter a situação? Os
quase 30 milhões de pessoas que desobedeceram à lei e se recusaram a votar
far-se-ão ao caminho? Quem votou num sentido vai alterar a sua opção? Não vamos
mais embalar as nossas expectativas com o balançar da rede, pendurada na
esperança. É preciso cair na real, tombar na realidade, estatelar-se nela.
Não valeu de nada recusar-lhe o nome. Chamá-lo inominável,
coiso. Ele tem nome: Jair Bolsonaro. Ele tem filhos, eleitos, com recordes de
votação, Eduardo foi o deputado federal mais votado da história, Flávio fez-se
senador. O Rio de Janeiro, a cidade que apesar de todos os problemas crónicos
insiste em autodenominar-se maravilhosa, poderá ser governada por alguém a quem
os cariocas nem sabem nomear.
Wilson Witzel, ex-juiz federal, que surfou a onda da Lava
Jato e defende que a polícia possa “abater bandidos armados”, poderá ser o novo
responsável pelo estado do Rio de Janeiro. Um apoiante declarado dos
Bolsonaros. Janaína Paschoal, que tem imagens vexatórias na internet e autora
do impeachment de Dilma Rousseff, foi eleita a deputada federal com a maior votação
já conquistada por um qualquer deputado (quase dois milhões) na história do
país. E o congresso brasileiro nunca foi tão conservador, constituído por
políticos que não precisam de um segundo turno - já lá estão garantidos.
E os que ainda não saíram - o congresso-Temer - terão até
janeiro para votarem uma “agenda de retrocessos”, como classifica o jornal
digital “The Intercept”. A reforma da Segurança Social, a privatização das
distribuidoras de energia elétrica, a aprovação do uso de agrotóxicos antes da
conclusão de estudos de instituições ambientais e da saúde, a demarcação das
terras indígenas, o leilão de blocos de exploração petrolífera, o aumento da
permissão de capital estrangeiro na indústria da aviação são exemplos citados.
Dá tempo.
O que aconteceu foi fruto do ódio ao PT? Foi. Foi um sonho
de que o candidato mais violento pode acabar com a violência urbana? Foi. Foi a
negação das evidências dos processos sobre o próprio Bolsonaro e o desejo de
que a corrupção acabe? Foi. Foi a influência de um deus evangélico e mandante
nas decisões individuais? Foi. Mas há que dizer mais, foram também os ecos da
casa grande e senzala, transferida para o quarto sem janela das empregadas
domésticas e das babás nos edifícios das grandes cidades brasileiras. Aquelas
que limpam as sujeiras e criam os filhos de algumas mulheres brasileiras,
enquanto estas recorrem a outras mulheres dos subúrbios para fazer a manicure
ou tirar os pelos do corpo.
O que espanta é que houve mulheres - aquelas que ele diz que
podem trabalhar o mesmo que os homens e ganhar menos do que eles, aquelas que,
horror, engravidam e por isso perdem valor de mercado, aquelas que são
resultado de uma fraquejada dos espermatozoides e aquelas que se só merecem ser
violadas se forem bonitas - que votaram nele. Gritaram o nome dele nas ruas.
Houve pobres e minorias étnicas que votaram nele. Porque 46 milhões de
eleitores é muita gente. Não é só a classe média, educada em colégios e que
nasce em hospitais privados e quer manter exclusivos os seus privilégios
históricos. E esta é a mais triste parte desta realidade brasileira, a enorme
fatia da população que, sem conhecer mas aplicando na prática o mito do senhor
e do escravo, prova que só ganha identidade própria na existência de um patrão.
O sul branco não negou a sua raça. O sudeste apoiado no
subemprego não negou a sua opção económica. O norte, esquecido, surpreendeu. E
o nordeste redimiu-se. Mas já está a apanhar, para ver se aprende, para ver se
se encolhe, se cala. As ameaças são explícitas: “Nordestino vota no PT mas vem
para o sul procurar emprego”. Xingamentos e pedidos para separar o nordeste do
resto do país não se fizeram esperar.
No Brasil, a minha terra - será sempre minha e não permita
deus que eu morra sem que eu volte para lá, para ver as palmeiras onde canta o
sabiá - diz-se que quando cheira mal, “cheira a pobre”. E a favela não é, como
pensam alguns europeus, entre os quais alguns portugueses, a vista mais
privilegiada da cidade, é zona de guerra, tiroteio, tráfico e falta de
propriedade. Há, por isso, que acabar com os eufemismos, com as tinturas
turísticas, com as canções de ninar. A mulata não é a maior invenção do
português, é uma mulher, espécie humana, a maioria da população brasileira. A
maior parte delas é pobre, mãe de família, sustento dos filhos. E era bom que
se assumisse como tal e que nós a víssemos nesta sua integridade.
Descobriram agora que o país está dividido? Há muitas
décadas que o Brasil está rachado. Que o morro e os asfalto se repelem. E por
isso, quando as quotas começaram a sentar o filho da empregada na universidade,
lado a lado com o filho da patroa, quando a manicure apanhou um avião para
visitar a Disney, a campainha soou. E nada melhor do que um supercapitão para
repor a ordem.
Nesta história, nada cómica, quem fica com as mãos sujas é a
justiça. Interventiva no processo eleitoral, seletiva nos comentários,
partidária na atuação, perdeu o rumo de um processo essencial de combate à
corrupção endémica que assola o país, transformando-se em agente político. De
tal forma que, no discurso de vitória, Bolsonaro invocou o Moro nome. E não foi
em vão.
O silêncio de muitos amigos, calados pelo choque e pelo
medo, foi mais ruidoso do que a festa dos apoiantes de Bolsonaro. Tenho amigos
com medo, posso vos garantir. Com receio de se expressarem. E ainda nem
começou. Uma amiga, mestiça, vestida com uma tshirt da vereadora assassinada
Marielle Franco, foi acossada na fila da votação este domingo. E a ameaça não
foi singela: “Quando o Bolsonaro ganhar, vocês vão ver! Isso vai acabar, senão
vai haver porrada!”.
É verdade que a mensagem de reivindicação de um espaço
social ativo e sonoro “deixou semente”, como disseram outros amigos, e que
outras mulheres negras, pobres e algumas homossexuais conseguiram eleger-se.
Mas serão suficientes? É justo pedir-lhes tanto?
“Tudo isso é paz, tudo isso traz uma calma de verão e então
o barquinho vai, a tardinha cai, o barquinho vai”. Meus amigos, acordem, o
barquinho afundou, João Gilberto perdeu o tino e a autonomia. A música agora é
outra, é do velho Chico: “Esta cova em que estás, com palmos medida, é a conta
menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo, nem fundo. É a parte
que te cabe deste latifúndio.” Lamento, Brasil.
https://leitor.expresso.pt/diario/08-10-2018/html/caderno-1/temas-principais/brasil-esta-cova-e-a-parte-que-te-cabe-deste-latifundio