* Nelson Mandela
Discurso no Julgamento de Rivônia (1964), na Suprema Corte de Pretória, dois anos após ter sido preso.
“A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realizadas por africanos. Quando qualquer coisa precisa ser carregada ou limpada, o branco olha em volta, à procura de um africano que o faça por ele, quer o africano seja empregado por ele, quer não. Devido a esse tipo de atitude, os brancos tendem a enxergar os africanos como uma raça diferente.
Não os enxergam como pessoas que têm suas próprias famílias; não percebem que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar com nossas mulheres e nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar nossas famílias adequadamente, alimentá-las, vesti-las e fazê-las frequentar a escola. E que empregado doméstico, jardineiro ou lavrador braçal pode algum dia ter a esperança de fazer isso?
As leis do passe, que para os africanos estão entre as mais odiadas da África do Sul, tornam qualquer africano passível de ser barrado pela polícia a qualquer momento. Duvido que exista um único africano do sexo masculino na África do Sul que não tenha em algum momento tido um desentendimento com a polícia em torno de seu passe. Centenas e milhares de africanos são colocados na cadeia todos os anos devido às leis do passe. Ainda pior que isso é o fato que as leis do passe separam maridos e mulheres e levam à desintegração da vida familiar.
A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas ruas das “townships” porque não têm escolas a frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibilite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe, quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva. Isso leva a uma ruptura nos padrões morais, ao aumento alarmante da ilegitimidade e à violência crescente que explode não apenas politicamente, mas em toda parte. A vida nas “townships” é perigosa. Não se passa um dia sem que alguém seja apunhalado ou agredido. E a violência é levada para fora das “townships”, para as áreas residenciais brancas. As pessoas têm medo de andar sozinhas na rua à noite. Os assaltos e arrombamentos de casas vêm aumentando, apesar do fato de que tais crimes podem agora ser punidos com a sentença de morte. Sentenças de morte não podem curar a ferida aberta.
A única cura consiste em mudar as condições nas quais os africanos são forçados a viver, atendendo às suas reivindicações legítimas. Os africanos querem receber salários que possibilitem a sobrevivência. Os africanos querem fazer o trabalho do qual são capazes, e não o trabalho do qual o governo os declara capazes. Queremos poder viver onde obtemos trabalho, e não ser impedidos de viver numa área porque não nascemos ali.
Queremos ser autorizados e não obrigados a viver em casas alugadas que jamais poderão ser nossas. Queremos fazer parte da população geral, e não ser confinados em nossos guetos. Os homens africanos querem ter suas mulheres e seus filhos vivendo com eles onde eles trabalham; não querem ser forçados a viver de modo antinatural em albergues de homens. Nossas mulheres querem estar com seus companheiros, e não viver nas reservas como viúvas permanentes. Queremos o direito de estar fora de casa às 23h, e não sermos confinados em nossos quartos, como criancinhas. Queremos o direito de viajar em nosso próprio país e buscar trabalho onde quisermos, e não onde o Burô do Trabalho nos manda. Queremos uma participação justa na África do Sul como um todo; queremos segurança e uma participação na sociedade.
Sobretudo, Meritíssimo, queremos direitos políticos iguais, porque sem esses direitos nossas deficiências serão permanentes. Sei que isso soa revolucionário aos brancos deste país, porque a maioria dos eleitores será formada por africanos. Esse fato faz o homem branco temer a democracia.
Mas não se pode permitir que esse temor seja um obstáculo à única solução que vai garantir harmonia racial e liberdade para todos. Não é verdade que a extensão do direito de voto a todos resultará em dominação racial. A divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro. O CNA já passou meio século lutando contra o racismo. Quando triunfar, como certamente fará, não mudará essa política.
É isso, portanto, que o CNA combate. Nossa luta é uma luta verdadeiramente nacional. É uma luta do povo africano, inspirada por nosso próprio sofrimento e nossa própria experiência. É uma luta pelo direito de viver. [alguém tosse]
Dediquei toda minha vida a esta luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro. Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual eu espero viver e que espero ver realizado. Mas, Meritíssimo, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.”
Fonte: http://www1.folha.uol. com.br/mundo/2013/12/1381517- e-um-ideal-pelo-qual-estou- disposto-a-morrer-leia-1- parte-de-discurso.shtml
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