Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
domingo, 26 de dezembro de 2021
Um texto natalício de Santos Maria de Fátima
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
Carlos Coutinho - Libações
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
António Galopim de Carvalho - AÇORDA DE MÃO NO BOLSO
sábado, 18 de dezembro de 2021
José Gameiro - Natal sem pandemia
terça-feira, 23 de novembro de 2021
Mário de Carvalho - «Interessa-me prosseguir este caminho de uma literatura que já tem oito séculos»
AbrilAbril
21 DE NOVEMBRO DE 2021
Os primeiros contos ficaram na gaveta, porque os amigos o
desencorajaram, mas, ao fim de 40 anos de carreira literária, Mário de Carvalho
tornou-se uma voz maior da literatura portuguesa.
São assinalados 40 anos de carreira literária de Mário de
Carvalho na próxima segunda-feira. Créditos/ Lusa
Desde que publicou os primeiros textos, Contos da
sétima esfera (1981), nunca mais precisou de tomar a iniciativa de
levar os textos a qualquer lado, porque passou a ser sempre solicitado, até
hoje, 40 anos depois de iniciada uma carreira literária em que experimentou
todos os géneros, menos a poesia, que considera «demasiado nobre para [o seu]
alcance».
Para assinalar este percurso literário, Mário de Carvalho
vai ser homenageado na segunda-feira, na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
Recuando quatro décadas nas suas memórias, o escritor
recorda, em entrevista à agência Lusa, o início desta caminhada,
fortemente alimentada pela banda desenhada, pela biblioteca do pai e pelos
amigos, mas também por estes desencorajada.
«Fui escrevendo uns contos, já desde há algum tempo que
escrevia, desde os anos [19]60/70. Escrevi algumas coisas que mostrei a amigos
meus que me desencorajaram: ‘Os surrealistas já fizeram isto há muitos anos,
deixa-te disto’. E eu deixei».
Mas a necessidade de escrever foi-se impondo, como um
«impulso difícil de contrariar», o de lançar no papel as ideias, as situações,
as personagens que lhe ocorriam.
Mário de Carvalho, hoje com 77 anos, acredita que isso teve
que ver com o seu «mundo de leituras«, porque em jovem foi «um voraz leitor de
toda a espécie de livros».
Assim, foram-se somando os contos até que os levou à editora
Vega, na altura dirigida pelo escritor João de Melo, que gostou dos textos.
«A partir daí, foram editados e passei a ser solicitado, ou
seja, tenho ideia de que nunca tomei a iniciativa de levar os meus textos a
qualquer lado, porque houve sempre alguém que mos pediu até hoje, livro após
livro, editora após editora», contou.
Na altura já exercia advocacia, a área em que se licenciou e
para a qual tinha a vida orientada.
«Os contos foram surgindo a pouco e pouco e, na altura, de
um advogado que escrevia livros, passei a ser um escritor que também era
advogado», até que finalmente deixou a advocacia.
A escrita ficcional impôs-se-lhe por gosto e sente que a
certa altura adquiriu facilidade em criar situações e personagens,
confrontando-as sempre com o que já conhecia, quer da literatura, quer da Banda
Desenhada.
«Fui um leitor fiel e constante de uma revista que se
chamava Cavaleiro Andante e de outra que circulava muito entre
miúdos que era o Mundo de Aventuras. Isto fornecia-me um manancial
de personagens, de situações complicadas, de avanços e recuos», recorda.
Para o então jovem Mário de Carvalho, era «muito
interessante essa consulta semanal do Cavaleiro Andante, a troca de
impressões com os colegas que liam a mesma revista», e isso deu-lhe «alguma
agilidade na conceção de personagens e de situações dramáticas».
Mas também havia as «leituras sérias», e cedo começou a ler
Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro.
«O meu pai tinha uma biblioteca grande, boa, e deixava-me
mexer nos livros à vontade, a não ser em alguns livros que depois percebi que
tinham um caráter erótico, que estavam numa estante lá em cima, num ponto onde
não conseguia chegar. De resto facultava-me os livros e eu andava com eles,
levava-os para o liceu e para onde quisesse, e ia lendo sempre».
Mais tarde foi apresentado a Jorge Luis Borges, que o deixou
«absolutamente fascinado», e a outros autores latino-americanos, mas sempre foi
um leitor muito variado.
«Era capaz de ler Sob a bandeira da coragem, de
Stephen Crane, ao mesmo tempo tentar ler O Malhadinhas, do Aquilino
– e digo tentar porque não era nada fácil -, mas também ia avançando para o Eça
e algum Camilo Castelo Branco».
Mário de Carvalho reconhece que havia um contexto que
facilitava tudo, o facto de os seus amigos também serem bons leitores, o que
proporcionava que trocassem e comentassem livros.
«Encontrávamo-nos todos os dias e, entre as muitas coisas sobre que se conversava, nomeadamente política, também se conversava sobre livros, e os livros circulavam».
Ao longo da sua vida literária, o escritor já passou por vários géneros, diz que tem «o gosto de borboletear», varia muito e muda de registo, o que, confessa, lhe dá algum prazer.
Tem andado pelo conto, pelo romance e por várias épocas,
conforme o que se lhe apresenta, mas nunca escreveu poesia, nunca teve «esse
atrevimento».
«Não sei quem foi que disse, que isto da poesia é mais da
arte da magia do que outra coisa. Não é propriamente literatura, é magia e eu
de mago não tenho nada, por isso não, nunca, a não ser, talvez, na adolescência
tenha feito um poema ou outro, como os outros faziam, mas nunca me atrevi a ir
para esse terreno, que me parece demasiado nobre para o meu alcance».
A escrita de Mário de Carvalho também é feita de obsessões,
de certos temas que se impõem e que não o deixam descansar enquanto não estão
prontos.
Foi o caso de um livro que o «obcecou durante anos» e
que seria publicado mais tarde com o título O livro grande de Tebas,
Navio e Mariana, e que teve que ver com uma reminiscência que tinha desde
miúdo: estava a ver uma revista policial e havia uma referência à cidade de
Tebas, e esse nome ficou-lhe «a ressoar durante anos».
A mudança de registo literário em Mário de Carvalho
relaciona-se sempre com o tema que escolhe tratar, e o autor afirma ter muito
cuidado em manter uma linguagem adequada ao assunto e à época, estudando
previamente para isso, se for o caso: «Tenho cuidado na seleção de vocábulos,
mas também o próprio ritmo das frases é diferente».
«Temos que ter cuidado com isso e procurar encontrar um tom,
o ritmo, ler coisas de época e procurar cumprir o pacto com o leitor, o célebre
pacto com o leitor, ou seja, se eu estou a escrever sobre o século XVIII,
estamos no século XVIII e não há frases, nem realidades posteriores. Se estou a
escrever sobre os anos 20, estamos no mundo dos anos 20 e penso que o leitor
espera isso, que o autor se informe e não entre pela inverosimilhança».
Sobre uma apreciação que por vezes é feita às palavras que
utiliza, como sendo difíceis, Mário de Carvalho considera não ser muito
correta, pois limita-se a utilizar as palavras que lhe parecem adequadas à
situação que está a ser tratada, para «acentuar mais matizes e procurar certos
efeitos».
«Não tenho nenhuma pretensão de deslumbrar com palavras
difíceis, de forma nenhuma. As palavras que utilizo não são difíceis para mim
nem para outras pessoas da minha geração e, portanto, se alguém não as conhece,
o problema não é meu, o problema é que as pessoas estão muito ligadas ao
vocabulário básico elementar das televisões e das rádios, quando o nosso
vocabulário atual é muitíssimo mais versátil e muitíssimo mais rico e está lá
para ser empregado, não está para ser omitido».
Se isso significa vender menos livros, é algo que não o
aflige, porque não é essa a razão por que escreve: «Interessa-me prosseguir
este caminho de uma literatura que já tem oito séculos, que não é de agora, e
de vez em quando não é mau darmos uma espreitadela para aquilo que está lá para
trás e que nos formou».
Os trovadores, os homens do renascimento, escritores
«perfeitamente fascinantes, como Gil Vicente», ou o «espantoso mestre da língua
e da clareza» Padre António Vieira são alguns dos autores que de vez em
quando revisita.
Olhando para trás, não tem razões de queixa: «Nunca fui um
chamado best seller, mas os meus livros têm-me corrido
razoavelmente e tanto que, ao fim de 40 anos, eu ainda estou para aqui», já com
«uma certa tranquilidade», sem essa «efervescência e emoção de outros tempos».
«As coisas seguem o seu ritmo e penso que, sem falsas
modéstias, há um lugar marcado na nossa literatura que não é minha, não fui eu
que inventei, são oito séculos, e eu sinto-me a trabalhar nessa base, sou uma
voz que se soma a oito séculos de experiência literária e de avanços e recuos
neste campo da literatura».
Nascido em Lisboa, em 1944, combatente da ditadura, que o
levou à prisão, Mário de Carvalho estreou-se na literatura aos 37 anos,
com Contos da sétima esfera, publicados em 1981.
Desde então, entre romance, novela, conto, ensaio, crónica,
teatro e literatura para a infância, soma mais de 30 títulos, entre os quais se
encontram Um deus passeando pela brisa da tarde, A inaudita
guerra da avenida Gago Coutinho, Os alferes, Era bom
que trocássemos umas ideias sobre o assunto, Apuros de um
pessimista em fuga, Fantasia para dois coronéis e uma piscina e Se
perguntarem por mim, não estou seguido de Haja harmonia.
Os prémios chegaram desde logo com as primeiras obras, como
o Prémio Cidade de Lisboa e o Prémio D. Dinis, atribuídos ainda durante a
década de 1980.
Entre outros, recebeu os Grandes Prémios de Romance e
Novela, Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), o prémio
do PEN Clube Português, de narrativa e de ensaio, o prémio internacional Pégaso
de Literatura, o Prémio Fernando Namora, por duas vezes, o Grande Prémio de
Literatura dst e o Prémio Vergílio Ferreira, de carreira, da Universidade de
Évora.
Em 2020, recebeu, pela quarta vez, um grande prémio da APE,
este de Crónica e Dispersos Literários, pelo livro O que eu ouvi na
barrica das maçãs.
No ano passado publicou igualmente Epítome de
pecados e tentações, uma nova coletânea de contos e novelas.
Lusa
https://www.abrilabril.pt/cultura/interessa-me-prosseguir-este-caminho-de-uma-literatura-que-ja-tem-oito-seculos
segunda-feira, 22 de novembro de 2021
Poemas de Filipe Chinita
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
Ricardo Reis - Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
* Ricardo Reis
Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.
Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.
Vê como Ceres e a mesma sempre
E como os louros campos entumece
E os cala pràs avenas
Dos agrados de Pã.
Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.
E como as hemadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã
Na atenção à sua flauta.
Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.
Quer troe Júpiter nos céus toldados,
Quer apedreje com as suas ondas
Neptuno as planas praias
E os erguidos rochedos.
Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
Por isso as esqueçamos
Como se não houvessem.
Colhendo flores ou ouvindo as fontes
A vida passa como se temêssemos.
Não nos vale pensarmos
No futuro sabido
Que aos nossos olhos tirará Apolo
E nos porá longe de Ceres e onde
Nenhum Pã cace à flauta
Nenhuma branca ninfa.
Só as horas serenas reservando
Por nossas, companheiros na malícia
De ir imitando os deuses
Até sentir-lhe a calma.
Venha depois com as suas cãs caídas
A velhice, que os deuses concederam
Que esta hora por ser sua
Não sofra de Saturno
Mas seja o templo onde sejamos deuses
Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios
Nem precisam de crentes
Os que de si o foram.
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 162.
quarta-feira, 3 de novembro de 2021
Daniel Faria - Homens que são como lugares mal situados
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
António Gedeão - Dez reis de esperança
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
Teresa Beleza. «Há decisões judiciais indignas de um país democrático»
Entrevista -, AbrilAbril POR NUNO RAMOS DE ALMEIDA
17 DE OUTUBRO DE 2021
Feminista e jurista de renome, conversou com o AbrilAbril sobre
violência contra as mulheres e aquilo que é necessário fazer para haver uma
sociedade em que a opressão das mulheres fique na pré-história do nosso tempo.
Teresa Pizarro Beleza foi a primeira mulher a dirigir a
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Criou a disciplina de
Direito das Mulheres e da Igualdade Social, introduzida no elenco das cadeiras
de opção da licenciatura em Direito. Foi vogal do Conselho Superior do
Ministério Público, por designação do Ministro da Justiça. Eleita, por
referência de Portugal, para o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT
do Conselho da Europa) por um mandato de quatro anos, entre 1999 e 2003, levou
a cabo missões de fiscalização das condições de detenção sob autoridade pública
em vários países, nos termos da Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura
e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes.
Há mais assédio sexual hoje do que havia nos seus tempos
de faculdade?
Se «…os meus tempos de faculdade…» significa quando eu era
estudante universitária, a resposta é: não sei. Não tenho dados objectivos
fiáveis, estatisticamente significativos, para dar uma resposta séria. Mas, em
termos de intuição e experiência, diria que é provável que a variação
quantitativa não seja muita. A percepção e sobretudo a publicitação de
um fenómeno que todas ou quase todas as mulheres conhecem é que certamente
terão mudado. E muito.
Por que razão é que só agora as questões do assédio
sexual parecem ter-se tornado visíveis?
Não se tornaram visíveis só agora. Mas na
verdade o grau de visibilidade acentuou-se muito com um certo renascer recente
do feminismo. Simplificando, porque «feminismo» é tudo menos coisa simples
ou unitária. Há múltiplas e muito diversas correntes que cabem nesta designação
genérica. Sendo na verdade coisa antiga, o feminismo (ou os feminismos, talvez
melhor dizendo) nem sempre se centrou na atenção à violência e ainda menos ao
assédio sexual, que por vezes se fala, e bem, em outro(s), incluindo na
legislação do trabalho, por exemplo. Quando John Stuart Mill denunciava no
parlamento britânico a violência conjugal mortífera que se abatia sobre as
mulheres, ou declarava solenemente que não exerceria sobre a sua mulher os poderes
que a lei lhe concedia, caso Harriet Taylor aceitasse casar com ele, era uma
voz solitária e rara. Não por acaso autor do magnífico ensaio «The Subjection
of Women» (1869), Stuart Mill ainda é hoje – em meu entender – muito pouco
conhecido nesta sua faceta, mesmo por parte dos teóricos da Ciência Política,
quantas vezes distraídos, ou simplesmente ignorantes, em matéria de relações
de género. A União Europeia começou a tentar publicitar e combater o
problema do assédio nos locais de trabalho há muitos anos e encarregou um
investigador, cujo nome não recordo com exactidão, Michael Rubinstein, creio,
de andar pelos vários países da União Europeia antes de esta o ser,
incluindo Portugal – passa-se no final dos anos 80, se não erro –, a explicar
que o assédio existia (coisa que muitas mulheres, como as operárias, que ouvi
pessoalmente depor nessas sessões, estavam fartas de saber). A afirmar
sobretudo que era coisa ruim, não aceitável. Nós também sabíamos, mas por
timidez, vergonha ou experiência de indiferença ou desconsideração de
quem pudesse ouvir, não tínhamos o hábito de nos queixar, muitas vezes
nem de simplesmente contar.
Eu fui vítima, em jovem, quando andava muito pelas ruas, ou
nos transportes públicos (metro, autocarros), de vários actos de atentado
ao pudor (seria a designação oficial segundo a Lei Penal então
vigente) e nunca apresentei queixa, nem sequer me ocorreu. Acontece que, com
todas as variações no espaço e no tempo, as mulheres sempre foram educadas para
a submissão e simultaneamente para a sedução ma non troppo, e os
homens para o domínio e para verem as mulheres como propriedade sua, em casa,
na cama ou na rua. E por isso, as agressões verbais ou físicas que quase todas
as raparigas sofreram na rua ou no trabalho foram suportadas ou ignoradas,
tantas vezes com vergonha das próprias, porque tudo apontava para a sua culpa,
provocação. Até o Código Penal, em 1982, nas disposições sobre crime de
violação, insinuava que a probabilidade era de provocação por parte da vítima,
constituindo uma circunstância atenuante específica desse crime, um dos mais
graves e humilhantes para qualquer mulher (ou homem, aliás), alterado em 1995.
Aliás, a violação era, na versão originária do Código Penal da democracia, o
tal que que toda a Assembleia da República considerou maravilhoso e excelente –
excepto quanto ao aborto e não pagamento de salários, cuja regulação ou falta
dela foram contestadas pelo Partido Comunista –, o furto qualificado (sem
violência) era mais grave que a violação, ou seja, que ofensas corporais
graves. Isto é, o furto de um relógio valioso era legalmente mais grave do que
cortar o braço de quem o ostentava. Cortar, mesmo, arrancar, a vítima ficar sem
o dito…
Fartei-me de refilar, por escrito e oralmente, mas só em
1995 o legislador percebeu, como quem faz uma grande descoberta, o rematado
disparate, obviamente inconstitucional, que tinham feito uns bons anos antes… E
os juízes, presumo, muito entretidos na sua elaborada dogmática tese
(?), aprendida nas faculdades de direito, aparentemente não deram por nada
anos a fio. Do assédio, o legislador nunca ouvira falar, não sabia o que era,
nem fazia ideia, presumo. Acharia talvez que se tratava de amáveis galanteios
que os homens faziam às mulheres e elas até gostavam. As raras e improváveis
queixas ou os eventuais protestos viriam certamente de feministas assanhadas,
por definição«“feias» (Mário Soares, in illo tempore) e
invejosas da atenção de que as suas rivais eram objecto.
Quais são as condições sociais, políticas, educativas e
jurídicas que podem erradicar práticas e comportamentos que considerem as
mulheres uma espécie de propriedade do homem?
Uma revolução civilizacional, que faça reverter hábitos,
convicções, teorias, tradições, costumes e leis de séculos, ou melhor, de
milénios. Coisa simples, como se vê. Michelle Rosaldo, uma brilhante
antropóloga, infelizmente morta num acidente de trabalho de campo, verificou
que em todo o mundo havia uma enorme variação do que era considerado atributo
masculino e feminino, mas que uma coisa era constante: a suposta superioridade
de tudo o que estava associado ao masculino, isto é, ao homem.
Há uma série de sentenças em tribunais portugueses, umas
mais antigas (a célebre coutada do macho latino) e umas mais recentes, que
mostram um posicionamento bastante machista da justiça (por exemplo no
livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação
Sexual, de Isabel Ventura.) Isso é verdade? Há algo que se deva mudar
na lei, ou apenas na formação dos magistrados?
Não era a «coutada do macho latino», mas a «coutada do macho
ibérico», se quer citar a expressão usada num Acórdão do Supremo Tribunal de
JustiçaSTJ sobre um caso de violação de duas turistas jugoslavas que pediam
boleia numa estrada do Algarve e foram vítimas de energúmenos locais. Tive
então a paciência de discutir esse caso, e semelhantes, num programa de
televisão que me granjeou o epíteto, de que muito me orgulho, de «Jurista Ás»
por parte do saudoso Mário Castrim, no seu papel de observador e crítico
televisivo. As raparigas seriam, naturalmente, culpadas da agressão brutal dos
moços, coitadinhos, que não resistiram aos seus naturais e desculpáveis
impulsos de machos de sangue quente, donos e senhores de qualquer fêmea que se
aventurasse na sua… coutada.
Sempre me interroguei sobre o que pensariam suas excelências
reverendíssimas, digo, meritíssimas, que assinaram tal dislate sob a forma de
acórdão do nosso mais alto tribunal, dos seus próprios filhos e filhas, se
acaso os tivessem. As leis portuguesas não estão mal de todo, mas podem e devem
ser melhoradas em muitos aspectos, designadamente no cumprimento das obrigações
assumidas quando da ratificação da Convenção de Istambul, de 2011. Em primeiro
lugar, uma muito diferente da actual compreensão da dignidade e liberdade de
todas as pessoas, seja qual for a cor, o sexo, o género, e por aí fora. Ainda
estamos bem longe disso, que parece tão evidente como no belo e tão esquecido
texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Jean-Michel Folon,
o genial artista belga que ilustrou uma das mais belas edições da DUDH, que
conheço (1988, ed. Fondation Folon, Bruxelas), com apoio da Amnistia
Internacional, escrevia: «Tout le monde en parle, personne ne la lit».
É altura de, a pretexto de aniversários redondos ou de
qualquer outra coisa, relê-la e celebrá-la. E, sobretudo, de a levar a sério, e
pô-la finalmente em prática.
Mas a formação dos magistrados é absolutamente essencial,
porque já se tornou por demais evidente que ainda hoje há decisões judiciais
absolutamente indignas de um país que se diz ser um Estado de direito
democrático e tem uma Constituição da República correspondente, que aliás
recebe expressamente no seu texto a Declaração Universal como ponto de
referência interpretativo privilegiado em matéria de direitos liberdades e
garantias.
Nos anos 60, as mulheres reivindicavam o seu direito a
ter a sexualidade que entendiam. Actualmente, há uma luta contra o abuso
sexual, sendo que uma reivindicação não é contraditória com a outra. Não se
verifica, no entanto, em algumas franjas do movimento feminista, uma certa
infantilização da mulher e de fazer dela sempre uma vítima? Não existe uma
séria deriva em considerar que toda a relação heterossexual se faz num quadro
de abuso estrutural?
Depende. Se com essa afirmação se quer dizer que as relações
heterossexuais existem num contexto geral de um sistema que ainda hoje se pode
descrever e caracterizar como patriarcado, então a afirmação é, obviamente,
verdadeira. Tal como se afirmar que uma relação entre um branco e
um negro nos EUA existe num contexto estrutural racista. Ou
entre um capitalista e um operário num contexto geral de classismo, isto é, de
diferenciação entre classes sociais (isto dito de forma simplista, claro, é
necessário fazer análises muito mais finas, mas não é este o lugar). Como não
reconhecer coisa tão óbvia!? Assunto diferente é o reconhecimento de que as
relações individuais – no plano micro, se quiser – podem sempre
escapar ao modelo hegemónico, em qualquer destes casos. Há quem o negue, pois
claro. Também há quem recuse as vacinas e jure que a Terra é plana, ou que
Darwin era doido, que Deus nos criou assim tal e qual, etc. Nem todos os relacionamentos
amorosos (ou outros) entre um homem e uma mulher são necessariamente violentos
e desiguais como, aliás, nem todos os casais do mesmo sexo são harmoniosos e
livres de domínio ou violência. Só quem for muito distraído, ou pouco
esclarecido sobre estas coisas, pensará que assim é. Digo eu, é claro, que não
me imagino particularmente iluminada, mas ando a estudar e a pensar nisto tudo
há muitos anos e tenho a veleidade de ter percebido algumas coisas.
Como conseguiremos criar condições para dar a palavra às
mulheres que são vítimas de assédio sexual e ao mesmo tempo garantir a
presunção de inocência dos acusados? Como é possível distinguir o quadro da
denúncia de uma «cultura de violação» com o quadro individual das
acusações concretas?
A palavra não se «dá» às mulheres. Nunca se deu, são as
mulheres que a tomam para si, como sempre fizeram, em geral, com os direitos
que lhes foram negados. Mesmo se em certos casos se pode falar numa espécie
de feminismo de Estado num país, como Portugal, em que a relativa
fraqueza dos movimentos feministas – dos movimentos sociais, em geral – se
aliou ao centramento da Revolução de 1974 na questão política, no sentido mais
estreito desta expressão, levando a que alguns avanços, na senda da igualdade
de género (como hoje tendemos a dizer), se tenham dado de cima para
baixo. O exemplo mais óbvio será certamente a Revisão do Código Civil, em
1977, aliás em obediência a um comando constitucional de igualdade e não
discriminação, sobretudo nas áreas das leis da família e sucessões.
As questões do abuso sexual e do assédio são resolvidas
por uma igualdade de poder entre homens e mulheres ou estão presas a
comportamentos biológicos e sociais que exigem mais do que uma, ainda assim
revolucionária, democratização do poder?
A «democratização do poder» é, como bem sabe, coisa
complexa. Desde logo a expressão pode soar oximorónica, porque na
democracia total não haveria poder de umas pessoas sobre as outras. Deixando de
lado a discussão de possíveis utopias ou distopias, a verdadeira «igualdade de
poder entre homens e mulheres» pressupõe que essa distinção deixe de fazer
sentido, isto é, que as pessoas deixem de ser identificadas pelo seu sexo - ou
mesmo género – como obviamente, para mim, é o caso da desacreditada raça.
Não é pelo facto de o conceito científico de raça ter sido posto em causa pela
ciência, e como tal abandonado com toda a sua lógica de superioridade e
inferioridade, que floresceu com o colonialismo e o imperialismo e perdura em
tantas sociedades e de tantas formas tão variadas e complexas que é impossível
analisar aqui, que deixou de existir racismo, com a intrínseca racialização de
grupos populacionais, como a ECRI (European Commission against Racism and
Intolerance, do Conselho da Europa) passa a vida a lembrar nos seus Relatórios
e Recomendações.
O problema é transversal a toda a sociedade ou tem pesos
diferentes nos mais cultos e menos cultos, nos mais ricos e menos ricos, nos de
esquerda ou de direita?
É certamente transversal, o que não significa que se manifeste
sempre da mesma forma ou que não haja modos e maneiras mais típicos de meios
sociais mais ou menos diferenciados, exactamente como muitos outros, senão
todos, os fenómenos sociais.
Existem progressos nesta matéria e há razões para
optimismo?
Progressos? Sim. O reconhecimento público e a sua regulação
legal, retirando pelo menos alguma boa parte da legitimidade às indiscutidas ou
quase práticas tradicionais. Se há razões para optimismo? Depende dos dias…
Será melhor dizer: pensa como inteligente, céptico e realista, age e prega como
cheio de esperança e optimismo. É que, como num plano mais geral de direitos e
de democracia já se vem infelizmente tornando óbvio, nada é adquirido, nunca.
Até os famosos «acquis», com que a União Europeia gosta de encher a boca e os
discursos, se podem esfumar de um dia para o outro. Basta olhar para Leste e
mesmo para outras bandas. Mas, como escrevia Manuel Laranjeira (por acaso um
rapaz pessimista que se matou, como se sabe) em «Comigo»:
São estes os versos com que fechei a minha dissertação de
Mestrado em Criminologia, na Universidade de Cambridge, há muitos anos. Era
sobre outro assunto, A Lei Penal na Reforma Agrária em Portugal, mas as dúvidas
sobre optimismo tinham alguma semelhança.
Alternativa? Ir com outro Manuel, o Bandeira, para
Pasárgada. «Lá moro na casa do Rei…».
https://www.abrilabril.pt/nacional/teresa-beleza-ha-decisoes-judiciais-indignas-de-um-pais-democratico
terça-feira, 5 de outubro de 2021
Manuel Alegre - Portugal resiste
quinta-feira, 30 de setembro de 2021
Sérgio Godinho - Cantiga para pedir dois tostões
segunda-feira, 20 de setembro de 2021
José Mário Branco- Ronda do Soldadinho
segunda-feira, 13 de setembro de 2021
Ana Paula Dourado - A ausência das cidades, da paisagem e do território nos debates autárquicos
A ausência das cidades, da
paisagem e do território nos debates autárquicos
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Não é claro a quem os debates se dirigem. Aos eleitores em eleições autárquicas não será. Não é aceitável que os debates instrumentalizem as eleições autárquicas. Eles estão nos antípodas das discussões contemporâneas sobre as cidades inteligentes ou as cidades dos quinze minutos
13 SETEMBRO 2021 13:13
A ideia de cidade e de território adjacente, seja campo, paisagem ou natureza, transmitida nos debates televisivos sobre as autárquicas é muito pobre, insuficiente, fica muito aquém dos desejos e necessidades contemporâneos. As cidades que nos oferecem são tudo o que uma cidade não deve ser.
Nos debates, as grandes cidades em que vivemos ou trabalhamos são prisões ou postais turísticos onde só importa ter acesso a uma qualquer habitação, subsidiada de preferência, e transporte para o emprego. As cidades nas perguntas dos jornalistas e nas respostas dos candidatos são locais para dormir ou chegar e partir, ao serviço do trabalho e do consumo. Cidades fonte de escravatura, isentas de estímulos sensoriais, criativos e de socialização para a maior parte dos que aí trabalham. Cidades desligadas do restante território, umas vezes com espaço e tempo definidos, dotadas de início e fim, outras vezes, cidades contínuas, mas sempre amorfas.
Os debates fazem também lembrar algumas das Cidades Invisíveis mas não vivas, de Italo Calvino: Trude, Maurília, Zora(1972). Lisboa e Porto, apesar de tão diferentes entre si, correspondem, no discurso dos candidatos, à Trude de Calvino. Quem os ouve e não os conheça, não sabe se os candidatos estão a falar de Lisboa ou do Porto, nas suas bocas tornam-se cidades uniformes, não-lugares, com iguais letreiros, setas, alamedas, montras, sem tempo ou história para viver e criar, iguais a todas as outras, como Trude. Já as Praças do Município de Lisboa e do Porto, filmadas para os debates, são Maurílias, embelezadas para os turistas as visitarem aqui e agora, desfrutarem do presente, mas gabando a memória dos velhos edifícios. E estas Lisboa e Porto para turistas são também asZoras, artificiais, partituras musicais que estagnam até desaparecerem um dia.
A especulação imobiliária é sem dúvida o problema mais relevante nas grandes cidades europeias, de entre as quais, Lisboa e Porto. A habitação é a primeira condição para manter vivas as cidades portuguesa. E não há dúvida que o transporte está relacionado com as metas climáticas, de mobilidade e de conforto. Mas habitação e transporte, assim apresentados, sem debate sobre a vida e a qualidade de vida, são insuficientes para um conceito de cidade do século XXI. Não são essas as cidades que desejamos e merecemos, independentemente da nossa profissão.
Se os participantes no debate lessem Calvino, saberiam que o assalariado Marcovaldo, há sessenta anos (As Estações na Cidade, 1963), procurava incessantemente a liberdade na cidade, a presença da natureza na cidade, a complementaridade entre ambas através de sinais ou do ecrã gigante do cinema, idealizava e incutia essa idealização aos filhos.
Estamos em 2021, mais ou menos afetados pelos confinamentos sucessivos e cercas sanitárias. E todavia, para efeitos dos debates televisivos e dos programas autárquicos, esta pandemia foi a última e os constrangimentos vividos não se repetirão. O risco de escassez de bens que vivemos, como evitá-la no futuro, o papel da paisagem rural, não são mencionados; não se discute a produção local ou o compre local; ou a cidade dos 15 minutos. Não fazem parte do debate as cidades sem acesso ao campo e à paisagem limítrofe, por terem sido destruídos e excluídos, como se a cidade não os contemplasse e muito menos dependesse deles. E como se as eleições autárquicas não os abrangessem.
Tudo se passa como se o despovoamento ou as aglomerações urbanas, os incêndios, as inundações e a falta de água, a betonização das margens dos rios, o tratamento e tipo de ocupação dos leitos de água, as construções, o tipo de agricultura e a desertificação não fossem um problema de organização das autarquias.
Não é claro a quem os debates se dirigem. Aos eleitores em eleições autárquicas não será. Não é aceitável que os debates instrumentalizem as eleições autárquicas. Eles estão nos antípodas das discussões contemporâneas sobre as cidades inteligentes ou as cidades dos quinze minutos. Songdo, cidade inteligente construída de raiz em Singapura, onde tudo foi pensado: a eliminação do desperdício, a reciclagem automatizada sem sair de casa, máximo conforto aos seus habitantes, hortas incluídas na paisagem. E todavia, cidade invisível, sem gente, cidade morta. Paris, megacidade a ser transformada em múltiplos bairros, tudo ao alcance de quinze minutos, cidade visível.
Numa antologia sobre a Filosofia da Paisagem (2013), Adriana Veríssimo Serrão explica que as paisagens não são quadros de uma exposição, não são cortinas, não devem ser iguais a todas, são fatores de identidade para as suas populações: a ética da paisagem exige o respeito pelos seus aspetos físicos, morfológicos, culturais, históricos.
O mesmo é verdade para as cidades. Cidades estimulando os nossos sentidos e a imaginação, conservadas e pensadas para quem nelas trabalha e habita, inseridas na paisagem e relacionadas com ela e com a natureza, num contínuo. Paisagem e cidade. Gonçalo Ribeiro Telles explicou-nos isto tudo há muitas décadas, a ideia de paisagem global, ainda não tinham começado as catástrofes naturais aqui e lá fora. As suas ideias devem ser estudadas, explicadas, debatidas, contraditadas. Seriamente.
https://expresso.pt/opiniao/2021-09-13-A-ausencia-das-cidades-da-paisagem-e-do-territorio-nos-debates-autarquicos-44984c6b
domingo, 5 de setembro de 2021
António Gedeão - Poema para Galileu
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios).
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te?
A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno
às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita
num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileu,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar
(que disparate, Galileu!)
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa
ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileu,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos,
hirtos,
de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível
que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a civilização.
Tu, embaraçado e comprometido,
em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites
e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas
(parece-me que estou a vê-las),
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim,
que sim senhor,
que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado
e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite
louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo,
na própria intimidade do teu pensamento,
(livre e calma),
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileu!
Mal sabiam os teus doutos juízes,
grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo,
empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileu Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer,
homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso, estoicamente,
mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias,
a todos os contratempos,
enquanto eles,
do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.