DIÁRIO DE
UM PSIQUIATRA
José Gameiro
Apesar de há um ano a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos ficar sozinhos
“Se calhar o que eu lhe vou dizer vai chocá-lo. Não me leve a mal, isto é apenas um desabafo e um pedido de absolvição.” Pensei, será que ao fim de tantos anos desta profissão já me olham como se fosse um padre? Reconheço que alguns que são bem mais eficazes do que nós. Compreendem, fazem pensar, discutem alternativas e absolvem, ou pelo menos as pessoas sentem-se menos culpadas depois de conversarem. Não precisei de a esclarecer, era obviamente uma metáfora.
— Confesso, desculpe retiro o confesso, mas não consigo encontrar outra palavra. Os Natais para mim nunca foram grande coisa. Na infância eram bons, a excitação dos presentes, a família toda reunida, a noite em quase não se dormia. Depois vieram as confusões. Mãe para um lado, pai para outro. Lembro-me perfeitamente de pensar que não queria crescer, depois claro que compreendi, mas dizia aos meus pais que mais valia terem estado quietos, porque é que casaram? Mas pela boca morre o peixe e casei-me. Não me venho queixar do meu marido, mas quando o conheci vinha com brindes. Sabe o que é?
Acenei com a cabeça e um sorriso, mas não lhe disse que atualmente uma parte significativa do trabalho com famílias e casais tem a ver com “os meus, os teus e os nossos” e as confusões inerentes a estas dinâmicas.
— Nem sempre foi fácil a relação com as minhas enteadas, ainda por cima sempre viveram mais connosco do que a mãe e o padrasto. Mas quando começou a pandemia a situação inverteu-se. A mãe vive fora da cidade, numa casa grande, cheia de espaço, foi mais fácil estarem lá e terem aulas virtuais. Ficámos os dois sozinhos, nunca tivemos filhos e não estou arrependida, pelo que vejo à minha volta, só dão chatices. Essa coisa do instinto maternal é uma grande treta.
Penso que a senhora não se apercebeu, mas qualquer coisa me incomodou na frase dela, apesar de nunca se falar do instinto paternal. Já é tempo de os homens terem algum instinto, além do sexual...
— Mas onde é quero chegar é ao Natal. Nunca consegui convencer o meu marido a irmos embora, só os dois para qualquer lado quentinho. Já não tenho pais, ele também não, mas sempre me disse que não conseguia estar sem as filhas. Eu até posso perceber, mas sempre foi uma grande seca. Ir levar as meninas, ir buscar as meninas, fazer centenas de quilómetros em dois dias, só para comemorar um dia do ano... Não lhe sei explicar, mas nunca consegui ter uma ligação forte com as minhas enteadas. Deve ser a falta de laços biológicos, vocês é que sabem explicar.
Não respondi a esta afirmação/pergunta, mas sei que nem sempre é assim, algumas destas famílias até criam laços fortes, mas não podem ter o progenitor que está do outro lado a dificultar-lhes a vida.
— Com a pandemia, e apesar de no último Natal a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos que era mais prudente ficarmos sozinhos. Ajudou muito o ter feito uma surpresa. Um dos poucos países que continuava aberto era o México. Uns dias de sonho, uma verdadeira lua de mel, só os dois. O meu maior desejo era que voltasse a haver confinamento. Não desejo mal a ninguém, mas foi tão bom.
Estava na altura de voltar a falar na absolvição.
— O meu papel não é culpar as pessoas, bem basta a culpa que carregam, tantas vezes injusta. Penso que é mais tentar compatibilizar os seus desejos com a realidade, com o menor sofrimento possível.
Enganei-me na “deixa” que lhe dei.
— Bem me parecia que me iria ajudar. Qual é a sugestão que me faz para ter uma boa desculpa para convencer o meu marido a ir para o calor?
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2564/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/natal-sem-pandemia
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