sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Carlos Coutinho - Libações

* Carlos Coutinho  

   AFINAL, não vai haver cabrito assado logo à noite na consoada, como chegou a estar planeado. Mas, uma vez mais, dentro de algumas horas, ninguém sabe quantas, uma judia universalmente consagrada como a Virgem vai dar à luz, nas palhas ásperas de uma manjedoura de último recurso, um bebé que há-de abrir uma nova era na história do mundo. 

   Por acaso, a Igreja Católica, através do Papa Júlio I, só no século IV acabou por descobrir que foi a 25 de Dezembro que o Messias nasceu, facto que os ortodoxos situavam e ainda situam entre 6 e 7 de Janeiro. O que é certo é que o futuro rabino, ou “meu mestre” na semântica bíblica, teve a aquecê-lo o bafo de um burro e de uma vaca, ambos muito religiosos, e uma semana depois, conduzidos por uma estrela móvel, três monarcas absolutos, como todos eram então, foram a Belém oferecer aos pais do menino potes de ouro, de incenso e de mirra. 

   Aconteceu tudo isto há 2 021 anos e, por razões insondáveis, não vai haver cabrito assado nesta consoada, mas as rabanadas não vão faltar, apesar de estarmos na Margem Sul, com as luzes de Lisboa a insinuarem-se na escuridão aquosa da longínqua Lisboa inverniça.

   Que eu saiba, não desceu ainda pela chaminé o Pai Natal com as suas prendas de sapatinho, todas, aliás, já compradas e embaladas, mas a mãe Natália vai participar no multifamiliar repasto, o que acontece pela primeira vez na minha longa e atribulada vida. 

   Devo frisar que esta senhora é mãe do anfitrião, possuindo ele o nome de Ramiro, um rei visigodo que deixou muitos Ramires ilustres na descendência. Um deles chegou mesmo a acolher em sua casa à beira-Douro o poveiro e melífluo Eça de Queirós. 

   Esse remoto rei ibérico teria agora a idade do Menino que está para de novo nascer em Belém, calcule-se.

   Estou mais que preparado para a comezaina e não me esqueço de que foi igualmente num dia 24 de Dezembro, como o de hoje, mas há 287 anos, que o grande iluminista Voltaire, pai das melhores dúvidas e metáforas panglossianas, publicou as suas “Cartas Filosóficas”, escancarando a porta à conquista de quase todas as certezas que valem a pena. 

   Também Alves Barbosa, o lendário ciclista do Sangalhos que marcou pontos na Volta à França de 1956, nasceu hoje em Vila Verde, perto da Figueira da Foz, só que em 1931. 

   Além do bacalhau e da troncha cozidos com batatas, não são escassos, como se vê, os pretextos que tenho para uma boa libação, esta noite, com a persistente chuva, lá fora, a dar de beber à agricultura sedenta de 2021.

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