domingo, 3 de abril de 2022

Fernando Pessoa - Anti-Gazetilha

* Fernando Pessoa

 

José Afonso - "No comboio descendente" do disco "Eu vou ser como a toupeira" (1972)

No comboio descendente
Vinha tudo á gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz á Cruz Quebrada…

No comboio descendente
Vinham todos á janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes tréla —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela…

No comboio descendente
Mas que grande reinação:
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão…

sábado, 2 de abril de 2022

Bruno Amaral de Carvalho - Os pássaros não cantam em Lugansk


REPORTAGEM -  Os pássaros não cantam em Lugansk, por Bruno Amaral de Carvalho
(texto e fotos) em Lugansk (Donbass)  31 de Março de 2022

Na Ucrânia, prosseguem os combates no Donbass pelo controlo territorial desta região mineira. Há oito anos debaixo de fogo, as forças separatistas apoiadas pela Rússia tentam avançar na autoproclamada República Popular de Lugansk ante a resistência ucraniana.

Uma antiga igreja ortodoxa aparece no caminho e o motorista benze-se. Depois, acelera. "Bistra, bistra", diz entredentes. "Fast, fast", repete em inglês. O ambientador, pendurado no espelho retrovisor, dança ao ritmo das crateras no asfalto. Em vez do típico pinho perfumado, há a fotografia de Vladimir Putin. No pára-brisas, um “Z” branco a fita adesiva.

O homem que tem o Presidente russo como ídolo chama-se Konstantin e explica que estamos demasiado perto da linha da frente. O “inimigo” está à espreita e pode haver snipers. A poucos quilómetros de Trehizbenka, na autoproclamada República Popular de Lugansk, o carro vai abrandando à medida que as lagartas de vários tanques com a marca “Z” se cruzam no caminho. Sente-se a proximidade das forças ucranianas enquanto se sucedem os postos de controlo. Uma ponte destruída e um autocarro carbonizado são postais de uma guerra que começou em 2014 e que nunca deixou de fazer vítimas. Segundo as Nações Unidas, cerca de três mil civis morreram no conflito que dura há oito anos.

Trehizbenka, sob controlo da Ucrânia desde 2014, passou para as mãos das autoridades separatistas de Lugansk. À entrada desta localidade de cerca de três mil habitantes, vários militares aceitam mostrar as trincheiras e as casas de civis usadas pelo exército ucraniano para proteger as suas posições.

Em frente à primeira casa, pé ante pé, pedem que não toquemos em nada porque há lugares que não foram devidamente verificados e pode haver minas por desactivar. São spetnaz, jovens soldados das forças especiais de Lugansk, e afirmam que este lugar estava ocupado por combatentes do movimento neonazi Pravii Sektor.

Há livros espalhados pelo chão, comida podre na cozinha ao lado de uma garrafa vazia de Jagermeister, cartazes nas paredes e um autocolante de uma emissora militar ucraniana. Numa divisão, junto ao corredor, uma caixa militar com explosivos. O episódio repete-se num pequeno barracão no exterior com centenas de granadas de morteiro, detonadores, um blusão do exército ucraniano e uma bandeira vermelha e preta do Exército Insurgente Ucraniano, liderado por Stepan Bandera, que colaborou com as forças nazis na Segunda Guerra Mundial.

Durante a visita, aparece uma idosa que prefere não responder a perguntas. Os soldados alegam que tem medo que regressem “os fascistas” e fica gorada a primeira entrevista a um civil na localidade.

De súbito, soam ao longe explosões de granadas de morteiro numa cadência que iria durar praticamente toda a visita enquanto um militar revela que foi descoberto ali perto o cadáver de um soldado ucraniano. Junto a uma trincheira, pouco resta de um corpo putrefacto com várias semanas dentro de um uniforme ucraniano desfeito. Vítima do esquecimento, é provável que tenha sido também vítima da matilha de cães esfaimados que povoam Trehizbenka. Quem seria este soldado? Ninguém sabe dizer.

É só na saída da aldeia que encontramos duas civis dispostas a falar sem terem sido escolhidas pelos soldados desta região separatista. Vera Alekseevna, uma das moradoras, acusa militares ucranianos de a terem sequestrado e ameaçado. “Foi o Batalhão Aidar. Diziam que me queriam cortar em pedaços e eu não sabia porquê. Ocuparam casas e terrenos da população. Há meses que não temos gás e electricidade. Imagine o que significa isso no Inverno”, denuncia. Por sua vez, Alexandra Fedorovna mostra alívio pela chegada das forças separatistas. Questionadas sobre as vítimas civis das bombas russas fora de Donbass, lamentam “a morte de qualquer civil”, mas aplaudem a intervenção de Moscovo.

Refugiado em Lugansk
Pela noite, o recolher obrigatório marca o compasso e são poucos os candeeiros acesos. É uma cidade fantasma. Quando amanhece, caem os primeiros mísseis Tochka-U nos arredores de Lugansk. Mesmo assim, as principais avenidas respiram vida e os comércios abrem na capital da autoproclamada República Popular de Lugansk. É uma cidade habituada à guerra desde 2014. Foi nesse ano que Alexei Albu abandonou Odessa rumo a esta região mineira.

Membro do partido da esquerda ucraniana Borotba, estava dentro da Casa dos Sindicatos em Odessa, em 2014, no dia em que centenas de apoiantes dos protestos que levaram à queda do governo de Viktor Yanukovich cercaram a improvisada sede dos que consideravam ser um golpe de Estado e pegaram fogo ao edifício com pelo menos uma centena de pessoas dentro. Alexei Albu escapou das chamas, mas não do ódio. Sentado num café de Lugansk, descreve como o espancaram e aponta para uma cicatriz na cabeça. Nesse dia, morreram 48 pessoas, muitas delas queimadas.

“Poucos dias depois, recebi a informação de uma fonte dentro dos corpos policiais de que o meu nome estava numa lista de pessoas a serem presas”, recorda. Deputado regional no Conselho Regional de Odessa como Alexei, Viacheslav Markin acabou assassinado pouco depois dos acontecimentos na cidade costeira no Mar Negro. Foi então que decidiu fugir para a zona controlada pelos rebeldes em Lugansk.

Hoje, com 36 anos, e apesar das divisões internas no Borotba, mantém-se no partido e apoia a intervenção russa. Quando vê a morte de civis, vítimas de ataques russos, afirma que sente dor, mas ele diz que sabe “quem é o culpado”. Acusa os batalhões de extrema-direita, como o Aidar ou Azov. Na óptica de Alexei, estes grupos “não querem combater em campo aberto” e “escondem-se entre a população em zonas residenciais”.

Oito anos de bombas
A poucos quilómetros da linha da frente, em Donbass, a presidente do município de Kirovsk, Viktoria Ivanovna Sergueeva, mostra uma das casas bombardeadas pelas forças ucranianas numa aldeia dos arredores na última semana. Depois de alguns quilómetros de tanques, carros blindados e camiões, um caminho de terra batida conduz a uma pequena povoação com habitações térreas. É diante desta casa destruída que denuncia o que diz ter sido um ataque das forças ucranianas.

“O bombardeamento aconteceu ao fim do dia quando a família que aqui vivia se preparava para dormir. Felizmente, não morreu ninguém”, afirma. Ao mesmo tempo que responde à pergunta com a ajuda de um intérprete, ouvem-se disparos de morteiros e rockets seguidos de rajadas de metralhadora. Imperturbável, não interrompe a resposta e prossegue o raciocínio como se a guerra fosse parte da sua vida desde sempre.

Numa aldeia com tanto campo à volta, o que mais nos perturba é a ausência de pássaros. Como se a sua falta na paisagem nos alertasse para a ameaça da guerra como os canários mostravam pela sua prostração o perigo das minas.

Serviço especial para o PÚBLICO

https://www.publico.pt/2022/03/31/mundo/reportagem/passaros-nao-cantam-lugansk-2000819

José Pacheco Pereira - Portugal: o país que os portugueses estavam proibidos de conhecer

* José Pacheco Pereira 

2 de Abril de 2022,

“Ah! Se os homens pudessem somente persuadir-se que a força não está na força, mas na verdade! “ (Tolstoi) – Cortado pela Censura  

A Censura durou ininterruptamente 48 anos da ditadura. A PIDE e a polícia atacavam os corpos, a Censura atacava as cabeças. “Fazer” as cabeças necessita de tempo, poder, proibições, ameaças, violências diversas, matilhas de vigilância, medo e autocensura, mas “desfazê-las” é muito mais difícil. Isso significa que a “obra” da Censura ainda está connosco, sem reconhecermos a sua assinatura sinistra, o que a torna mais poderosa. A essa marca inconsciente de 48 anos, que os quase 50 anos de democracia não conseguiram eliminar, somam-se agora novos impulsos censórios vindos também das instituições, mas também “de baixo”, do activismo político à esquerda e à direita, e das redes sociais. É por isso mesmo que falar e mostrar a Censura (na verdade um complexo de censuras para os livros, os periódicos, para a música, o teatro, os filmes, a publicidade, tudo o que podia mexer com as cabeças) é a melhor pedagogia cívica nos nossos dias.

A essa marca inconsciente que os quase 50 anos de democracia não conseguiram eliminar, somam-se agora novos impulsos censórios vindos também das instituições, mas também “de baixo”, do activismo político à esquerda e à direita e das redes sociais

Na verdade, sendo a Censura poderosa pelo rastro de interditos e “inconveniências” que deixou – um exemplo recente é falar das crises estudantis dos anos 60-70 como se fossem apenas movimentos espontâneos de revolta, minimizando o papel decisivo das organizações políticas clandestinas, o PCP e os grupos esquerdistas, acabando por as “despartidarizar” como se o papel dos partidos “manchasse” o valor dos eventos –, é também a mais fácil de denunciar, quando se vai à sua realidade. E isso significa ir muito para além da acção contra o explícito político, e ter uma concepção holística da Censura.

 É o que, integrado nas comemorações de Abril da Câmara Municipal de Lisboa e com o seu apoio, a exposição que será inaugurada na próxima semana em Lisboa com materiais das censuras do Arquivo Ephemera vai tentar fazer. A exposição estará no Edifício do Diário de Notícias, por debaixo das grandes pinturas murais de Almada, incluindo a que ilustra este artigo. A sua citação titular é de Salazar, um activo mentor e legitimador da Censura, mas duas frases, entre milhares produzidas de 1926 a 1974, retratam a “obra” da Censura e pouco importa sobre que livros ou autores foram escritas:

“parece que o autor esteve em qualquer vila, ou aldeia, e escolheu para protagonista do seu romance a família mais asquerosa do povoado”

“as obras destes autores não devem ser consentidas em agremiações operárias, por razões óbvias”

As “razões óbvias” explicam tudo. Visitemos o arranque e a moldagem da Censura nos anos 30 que a fez como existiu até 1974. O conflito entre a Itália e a Etiópia não podia ser comentado, porque isso era “propaganda antifascista”, do mesmo modo que não se podiam fazer “referências menos respeitosas para com o Chefe do Governo Alemão”, Adolfo Hitler. Aliás, condenar a invasão da Etiópia era proibido por “antibelicismo”. Como “propaganda inconveniente” eram cortadas as referências a “António José da Silva (O Judeu)” queimado pela Inquisição. Duarte Nuno de Bragança não podia ser identificado como pretendente ao trono português, mas a restauração da monarquia na Grécia era cuidadosamente protegida de dichotes.

Corrupção não havia e as negociatas da Sociedade dos Açúcares eram “cortadas totalmente”. Em Espanha podia-se falar de “escândalos”, por cá não. Violências também não, o país tinha “brandos costumes”. Por exemplo, não se podia saber que em Peniche um “motim”, provocado por protestos contra a prisão de pescadores que pescavam com dinamite, teve dois mortos. Violência sobre as mulheres, infanticídio, aborto, pedofilia, violações – tudo cortado.~

A religião era intocável e a Censura escondia dezenas de conflitos anticlericais. A queixa de um missionário sobre as dificuldades de ensinar a doutrina cristã aos indígenas, porque estes consideravam que as histórias de “Criador que rege o céu a terra” eram da mesma natureza das suas histórias com “leões, hienas e chacais” – subversivo.

Falar do analfabetismo no exército era antimilitarismo. Falar da lepra em Portugal? Proibido, porque era “assunto fechado”. Um jornalista estivera preso num local com muitos ratos – corte total. A tuberculose como “doença social” era perigosíssima para os censores: não bastavam sanatórios, mas ter vida “sem fome” – corte total. Não podia haver queixas sobre o “caríssimo” serviço telefónico, sobre a falta de assistência aos pescadores do bacalhau na Terra Nova, etc.

Suicídios, como se sabe, não havia. Era um país propício a quedas em poços e a acidentes com armas de fogo. Uma “figura popular” teve um misterioso “desaparecimento” (expressão muito usada para os suicídios) – corte total “por se depreender que é suicídio”. Um tenente em Penacova fez um desfalque e matou-se – corte total. A Greta Garbo chinesa, a atriz Ruan Lingyu que se suicidara em 1935, era objecto de uma atenção detalhada da censura, que suprimia com vigor as “doentias sugestões”.





Pintura de Almada Negreiros no Edifício do Diário de Notícias, em Lisboa. Retrata a sequência da redacção, produção, impressão, e distribuição de um jornal. Tem uma omissão deliberada: falta o envio das provas à Censura para esta poder proibir, cortar ou permitir o que se podia ler DR

A moral e os bons costumes eram, junto com a subversão, real ou imaginada, e o desrespeito o núcleo duro da acção da Censura. E nisso os censores, muitas vezes tratados como pouco inteligentes e ainda menos cultos e “burros” no sentido popular do termo, eram mesmo bons.

Não se podia saber que em Évora uma rapariga tinha desaparecido da “casa da família”, coisa assaz inconveniente. Umas “quadras em que se canta o amor prostituído, totalmente cortadas por imorais”. Uma “versalhada para fadistas” cortada “por porca”…

Quarenta e oito anos assim. O Portugal que aparece nos cortes das censuras não era o Portugal que existia. Esse os portugueses não o podiam conhecer. Alguns saudosistas de Salazar e alguns neo-saudosistas actuais, que arranjam mil pretextos para legitimar a ditadura, lavando-a das suas violências para diminuir a democracia, têm nesta matéria um osso duro de roer. Eles sabem disso, eles sabem como foi, mas fazem de conta.

O autor é colunista do PÚBLICO

 https://www.publico.pt/2022/04/02/opiniao/opiniao/portugal-pais-portugueses-proibidos-conhecer-2001084