OPINIÃO
* Pedro Almeida Vieira
04/04/2025
Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma margem de erro reduzida, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela 'científica' da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.
E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade acadêmica. Com a vitória sinalizada da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a humanidade e hoje apenas funciona como um armazém de olhares burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.
Começamos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29% . Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusadas participaram na sondagem. Foram contatadas 4.177 pessoas, mas apenas 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de candidatos portugueses. Há aqui dois problemas graves que desviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:
1. Seleção automática dos questionados : quem responde não é uma amostra examinada pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra consultada de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os diretores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participem na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até a próxima fraude.
2. Distância entre método e realidade eleitoral : por mais que os 'produtores' destas 'sondagens' se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corresponder a uma visão de auto-selecção se não se conhecer sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.
Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha acadêmica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitam difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC ajude e abençoe esta prática de manipulação de massa num regime democrático é uma prova de sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que deve zelar pela integridade da informação divulgada, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.
Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento das previsões e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e invejadas.
Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.
Estamos perante um caso claro de abuso da substituição acadêmica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.
Se ainda há quem leve estas 'sondagens' a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.
Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados 'resultados' com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.
https://www.paginaum.pt/2025/04/04/sondagens-ou-palermices-no-pais-da-manipulacao-de-massas
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