terça-feira, 8 de abril de 2025

Alexandra Lucas Coelho - A vossa vala comum: carta aos governantes do país e da Europa onde nasci

  Opinião

Ao longo deste ano e meio quis esperar que algo ainda acontecesse dentro dos líderes europeus. Algo revelado por este Apocalipse. Tarde, insuficiente, mas algo. Já não o espero agora.

* Alexandra Lucas Coelho
8 de Abril de 2025, 16:16

O primeiro livro da Europa — que é também a sua primeira guerra — começa com a palavra “Mēnin”: Cólera. Vinte e oito séculos depois, as piras dos mortos continuam a arder sem parar. Mas não só as dos mortos: as dos vivos, também. Vivos queimados vivos (um jornalista na sua tenda de deslocado ontem à noite). Talvez ainda vivos sepultados como mortos (quantos dos paramédicos que ouvimos rezar anteontem, quando já eram só vozes resgatadas das cinzas, gravando-se a si mesmas ao morrer?).

A cólera canta: vinte e oito séculos depois da Ilíada, as piras são dos mortos e dos vivos por toda a Palestina. Ardem no instante em que escrevo, 7 de Abril de 2025. E agora é a vós que me dirijo, governantes do país e da Europa onde nasci.

Esta noite mesmo, num palácio neoclássico, um presidente da Europa recebe uma presidente da Ásia, ambos com uma história ancestral de 500 anos em que representam colonizador e colonizada. O meu nome estava na lista de convidados por eu ter feito uma viagem para escrever um livro sobre essa Ásia, com as suas próprias piras de mortos, multicoloniais e pós-coloniais (um dos livros que Gaza adiou). Quando li o email do convite, imaginei que podia ser um ritual interessante de observar, a parte palaciana do terreiro em que os mortos falam vivamente aos vivos, se os ouvirmos. E ao mesmo tempo pensei que Gaza estava ali como está em toda a parte. Então, eu iria à cerimónia: levando ao pescoço uma meia-lua com as cores da Palestina e uma carta para o anfitrião. Uma pequena carta manuscrita, porque desde o 7 de Outubro publiquei dezenas de textos sobre este genocídio e a cumplicidade da Europa onde o presidente já foi visado, não seria necessário alongar-me. Sendo ele o chefe de Estado do país onde nasci, agora tratava-se só de 1) dizer que pela primeira vez me passara pela cabeça renunciar à cidadania portuguesa, e portanto europeia, a única que tenho 2) pedir um gesto imediato para a História, que está a ser escrita todos os dias.

A meia-lua que eu ia levar ao pescoço é uma fatia de melancia, símbolo alternativo da Palestina, feita de missangas. Por acaso, no mesmo lugar africano em que há 500 anos um piloto asiático embarcou na nau de Vasco da Gama para o guiar até à Ásia. O acaso é um deus em que acredito. Temi, porém, que o significado da melancia pudesse não ser claro para alguns dos presentes no palácio, nomeadamente os chefes de Estado. Por isso comecei a desdobrar a Palestina pelo suporte em movimento que seria eu própria. Vestiria uma roupa preta, um casaco verde e o fio da melancia seria branco. Levaria um keffiyeh como cachecol, que ficaria no bengaleiro, chamejando no meio dos abafos. E finalmente: ia bordar uma bandeira para pôr na lapela. Nunca bordei mas tenho bordados da Palestina talvez desde a primeira vez que fui lá, faz este Abril 23 anos. O bordado são os vestidos, as almofadas, as casas da Palestina. As mãos de pessoas que estarão onde agora?

 
DR 

Foi assim que num dia de dilúvio fui a uma linda retrosaria de Lisboa, comprei um retalho de linho, esse tecido que já estava na Ilíada, um bastidor de madeira, uma caneta própria, agulhas de diferentes tamanhos e quatro mechas de fio para bordar com as cores da Palestina. Essas mechas têm uma cinta de papel escrita em japonês, vieram mesmo do Japão, disse a senhora que me atendeu. De volta a casa, quando as dispus na mesa, pensei: Hiroxima. Porque penso em Hiroxima quando penso no Japão, e porque na estante Israel/Palestina tenho Hannah Arendt junto a Günther Anders, o filósofo também judeu que com ela foi casado, autor de Nós, Filhos de Eichmann mas também de Hiroxima Está em Toda a Parte. E só no instante em que escrevo esta frase, hoje, 7 de Abril, já noite, me apercebo de que a primeira vez que escrevi “Gaza está em toda a parte” (num texto de 5 de Outubro de 2024), não pensei em Günther Anders. Estava muito longe de casa, naquela parte da Ásia de que falei acima, no meio de mil e quinhentos milhões de pessoas. Talvez a frase tenha vindo por causa delas. Mas por trás delas talvez estivesse a memória dessa lombada.

Quando o palestiniano Mahmoud Darwish escreveu sobre os seus dias em Beirute debaixo das bombas israelitas, também pensou em Hiroxima. Hiroxima estava em Beirute e agora Gaza está em Hiroxima. Ao voltar da retrosaria e de Lisboa, eu olhava a minha mesa e aqueles fios para bordar ligavam Gaza e Hiroxima: vermelho, verde, branco, preto. O que fazemos com as mãos fica na memória do corpo. Torna-se parte do que é cada corpo, e só ele é, até ser interrompido para sempre. Desde que comecei este texto, quantos em Gaza? A todo o momento. A todo o momento que pegamos no telefone, se quisermos.

E o que aconteceu anteontem, pouco antes de enfiar o primeiro fio na agulha, foi que peguei no telefone e vi aquelas gravações. Vi aquelas ambulâncias, aqueles símbolos de emergência, de socorro humano, todas aquelas luzes ligadas, faróis na noite de Gaza, avançando sem medo, apesar do Mal. E depois ouvi o Mal, ali, como se estivesse na minha cozinha, nitidamente captado pelo telefone do homem que rezava, o homem que via a sua própria morte, o homem que se despedia da mãe, que pedia desculpa por ter escolhido aquele caminho: salvar vidas. Ouvi as rajadas dos que metralhavam a torto e a direito, cérebros lavados ao longo de anos para fuzilar em série, para verem qualquer palestiniano como muito menos do que os belos animais que àquela hora talvez se passeassem por Telavive, a noctívaga, a necro-sexy. Por vezes, pela trela de humanos veganos incapazes de comer até um ovo, militantes contra o sofrimento dos animais.

Ouvi os paramédicos que iam morrer e os que já tinham morrido embora o telefone ainda estivesse a gravar. Sabemos que o Mal abriu uma vala comum, enterrou 15, alguns talvez ainda vivos, depois destruiu as ambulâncias e também as enterrou. Até que o socorro do socorro desenterrou tudo, apareceram as gravações. O Mal reconheceu que mentira, como há um ano e meio mente. Há 58 anos mente. Há 77 anos mente. A guerra de há mais de cem anos contra a Palestina. A vala comum dos paramédicos foi só aquele momento em que o ponteiro bate no zénite porque vem de antes há muito. Há muitos mortos. E de repente eu estava ali na cozinha com o telefone na mão e tinha deixado de ser possível, sequer, estar naquele palácio da Europa, mesmo que em protesto. Sentar-me entre eles, eleitos que continuam como se nada fosse, que contribuem para que nada seja. Foi depois disso que pensei nesta carta, extensível a todos os que desde 7 de Outubro foram ou são governantes na Europa, com muito poucas excepções, sobre as quais também escrevi.

Ao longo deste ano e meio quis esperar que algo ainda acontecesse dentro dos líderes europeus. Algo revelado por este Apocalipse. Tarde, insuficiente, mas algo. Já não o espero agora. O carniceiro procurado pela justiça foi à Hungria, que lhe estendeu o tapete vermelho, pisou nas Nações Unidas, no Tribunal Penal Internacional. Continua a ser União Europeia lá. E, à cabeça da União Europeia, o novel chanceler já tem o seu tapete à espera do carniceiro. Que no dia em que escrevo estava de volta à Casa Branca, ao narcisopata que resume Gaza como “um incrível pedaço de imobiliário”.
Que Nações Unidas? Que Direitos Humanos?

Hoje, 7 de Abril, um ano e meio depois do 7 de Outubro, é a escravos de nazis que me dirijo. Não escravizados por outros, escravos por vontade própria. Vemos sobre-humanos na Palestina que continuamente nos dão provas de vida e do que a mata. Vemos o desfecho do sionismo, esse fruto monstruoso do monstruoso anti-semitismo europeu. E vemos os menos-que-humanos que sois vós, os untermensch: todos os eleitos que nada fizeram desde 7 de Outubro. Aqueles que perderam a Segunda Guerra Mundial em Gaza. Os que capitulam perante o triunfo dos porcos. Que atacam pró-palestinianos hoje como atacaram judeus ontem e continuam a atacá-los hoje. Que censuram, agridem, prendem, deportam. Os que se tornam nazis no meu tempo de vida. Enquanto os EUA, também usando judeus como arma, assistem à sua própria derrocada.

Tenho 57 anos. Nasci no ano em que Israel ocupou Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental. Tive a sorte de ainda ter visto a URSS, saber o Mal que era. Não ter dúvidas sobre o Mal que Putin é. Que a Arábia Saudita é. Que o Irão é. Não perdoarei quem enriquece com os tiranos a jeito e deixou a defesa da Palestina aos ayatollahs. O Irão ser o aliado da Palestina é a vergonha da Europa. A Europa é a vergonha da democracia, sua suposta mãe e sua coveira. O Mal está sempre por toda a parte, mas a diferença de Gaza, do ponto de vista de quem nasceu aqui, é que a Europa gerou este último resquício do colonialismo, o alimenta em contínuo, é a sua escrava e agora vemos tudo em directo. Nada, nunca, teve estas características. Tal como nunca a Europa desceu tão baixo, caiu tanto para o mundo. A vala comum dos 15 paramédicos é a vossa. A vala comum da Palestina é a vossa. Vós: os sem coluna e sem futuro.

Isto não é a mala diplomática. Não é um apelo, já. Talvez seja um presságio e ainda não uma maldição. Escrevo em plena campanha eleitoral para o que será o terceiro governo português desde o 7 de Outubro. Ainda vou votar. Ainda acredito na democracia. Ainda não passei à clandestinidade nem estou na guerrilha. Sou essa privilegiada, ainda. E se me passou pela cabeça renunciar a ser portuguesa, europeia, o que só será possível se adquirir outra nacionalidade, hoje, 7 de Abril fiquei mais longe disso, ao lembrar-me do pensamento ancestral do que se veio a chamar Brasil, a acumulação de outras cabeças. Ampliar e não subtrair. E porque haveremos nós, que vemos Gaza em toda a parte, deixar a Europa aos coveiros da Europa? Estou aqui com Homero, Arendt, Anders, Darwish, como estou com Dante guiado por Virgílio, Goya pintando os fuzilados, Pasolini contra o fascismo.

Vós, oposto de tudo isso, sois a negação do melhor que a Europa pode deixar às suas crianças. Não peço que olheis as de Gaza, muito menos aquela decapitada que ontem vi, porque ao vosso racismo, ou cobardia sem remédio, 18 mil crianças (ou sabemos lá quantas mais) não mudaram nada até hoje.
O presságio é só este: olhem nos olhos das vossas crianças.

Escritora e jornalista

https://www.publico.pt/2025/04/08/opiniao/opiniao/vossa-vala-comum-carta-governantes-pais-europa-onde-nasci-2129004  

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