domingo, 2 de setembro de 2007

Elegias de Londres - Alberto de Lacerda (1987)

* Hugo Santos

2007

O termo «elegia» não tinha entre os antigos o sentido vagamente melancólico, fúnebre, mesmo, que hoje lhe atribuímos – resultado de um longo percurso que afastou a designação do seu original sentido. Entre os Gregos da época arcaica, correspondia a uma composição escrita em dísticos elegíacos. «Baseado no hexâmetro homérico-hesiódico, era composta em dialecto homérico (iónico-eólico). Era o verso mais popular para a poesia que nem era narrativa, nem dramática, nem coral, e cobria qualquer tipo de assunto, público e (mais frequentemente) pessoal, sagrado e (mais frequentemente) secular.» (Richmond Lattimore) «Praticamente qualquer tema, excepto os injuriosos ou obscenos, era considerado adequado para a elegia arcaica.» (Douglas E. Gerber). É, aliás, curioso reparar que a consideração da elegia «como canto de lamento é provavelmente um desenvolvimento tardio, motivado, talvez, pela prática de, no século V, se comporem epigramas em honra dos mortos em dísticos elegíacos» (Gerber). Com os Romanos, adquire a elegia um carácter sobretudo amatório, erguida aos mais altos cometimentos por Tibulo, Propércio, ou Ovídio. É sempre proveitoso – parece-me – estabelecer paralelos entre os clássicos e os contemporâneos. Na verdade, muitas das perplexidades que hoje nos assaltam foram as que afligiram os antigos. Os esquecimentos, as injustiças, mesmo na arena improvável da literatura, são, quem sabe, dolorosamente, os mesmos – «Comparado com os seus grandes contemporâneos, Horácio e Virgílio, os poetas elegíacos estiveram sempre em ligeira desvantagem. Eram lidos, tinham uma audiência estusiástica e devota, mas nunca ascenderam ao estatuto de clássicos. Ao passo que são vários os comentários e notas a Horácio e Virgílio, o texto de Propércio, Ovídio e Tibulo é escasso em explicações. Isto poderia querer dizer que, mesmo na Antiguidade, eram menos lidos nas escolas do que Horácio e Virgílio porque eram tidos como menos adequados virginibus puerisque [para donzelas e rapazes] e, em parte, porque o alcance das suas experiências era mais restrito. Escreviam sobre amor, o seu amor.» (Georg Luck)

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A extensão das palavras respigadas a outros são apenas a tentativa de falar com o menor grau
possível de ingenuidade acerca de Alberto de Lacerda
. Nas suas Elegias de Londres (1987), compôs o poeta catorze poemas, todos eles datados (indicação comum à generalidade da poesia do autor) com a mesma localização londrina. Exceptua-se a primeira elegia do conjunto, que se localiza no Castelo de Cockermouth, em Cumbria, localidade do Norte de Inglaterra, que foi berço do poeta romântico Wordsworth.

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Poderíamos dizer que as composições do livro colhem elementos das várias acepções do género
epónimo. Nem narrativa, nem dramática, a sua poesia é pessoal, sendo humana, logo, trágica – «O não haver nada/ O não estar em nada/ O abandono/ voluntário e involuntário/ Da acumulação de escamas/ de pedrarias/ De escadas para nenhures/ O encontro com nada/ A dança/ abandonado todo o esforço/ Para um gesto/ A dança/ O espaço amoroso» (p.21). Se o seu assunto é, em certos passos, público, como na elegia antiga – «Será a paz o gesto mais difícil/ Da humanidade/ Contra tudo e contra todos/ A mais corajosa determinação?// Mesmo contra a nazi ou stalinesca/ Franquista pata prepotente/ Mesmo contra a morte na alma/ Meio século jesuítico/ Salazarista» (p.65) –, é, de facto, mais pungentemente pessoal – «Na volúpia do verbo que demanda/ A tua mente e explode o coração/ Surge a máquina do mundo que te alberga/ Contradição após contradição» (p.27).

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O sagrado – «Nem a revelação é privilégio/ Está/ sempre/ na criação inteira// Deus é palavra sem sentido/ Nada mais oprime do que certas palavras» (p.18) – e o secular – «O que o sangue imagina é verdadeiro?/ Não será antes o que a verdade pressente a imagem nua/ Deslumbrantemente nua/ Da imaginação?» (p.31) – travam, nesta poesia, o mesmo combate, pela dignidade humana, pela vida, por um fiapo de luz entre as trevas – «Quem terminantemente se recusa / Ao jogo da violência/ à perversão da guerra/ É sobre essa pessoa/ entre todas/ Que o manto do heroísmo/ Naturalmente cabe» (p.59). Quanto à elegia como canto lamentoso, talvez a Décima Quarta Elegia resuma o investimento poético face à morte e as suas ressonâncias existenciais e de determinada fé, prefigurando, mais do que
uma lamentação, um resignado buscar de sentido perante o impossível – «O jardim da terra/ ascendido/ Um dia/ como se a inteira/ Existência/ Houvera sido/ nada mais/ Que uma preparação para tal momento» (p.69) Como os Romanos, não enjeita a elegia de Alberto de Lacerda a circulação amatória – «Na adoração expectante que nos traz/ Um êxtase difícil (…) Tão delicado, delicado e cru/ Em que um corpo sacramentadamente/ se transfigura noutro corpo nu.» (p.58) Amor necessariamente transformado, necessariamente outro, mas o que dita, por certo, a «Música das esferas/ E interior ao horizonte humano// Vai chegar em breve/ A
luz do Verão/ onde perpassa/ Suave a esperança»
(p.73)

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Tem-me sido dado verificar a dificuldade que um poeta enfrenta, ao tentar transpor os limites
que para si próprio fixou, ou que o poema que escreve acaba por traçar. Assim, se, por hipótese, o poema é de teor reflexivo, não raro, o poeta encontra-se refém de um vocabulário cifrado, que embota o verso; de uma armadura que lhe restringe os movimentos e tolhe a pulsão sem a qual a poesia não é. Verifico, pelo contrário, que a reflexão que os poemas de A.L. convocam é genuína, a ponto de não macular o que não é pureza, mas mais depressa reconheceria como
rudeza, um cariz áspero, que deve enrugar-se para se dizer, que se deve eriçar ao toque – «Tudo é simultâneo/ E não// Mas remontamos à cova que o animal/ também ele reencontra/ Nocturnamente// Há uma parte de medo na procura/ Da casa firme» (pp.34-35). Nesta pele de humanos demasiado humanos, bem podemos esticar a corda das palavras, bem nos é permitido contornar a vida ou, como esta, todas aquelas palavras que não fazemos a menor ideia do que sejam, que apenas a isto chegamos: a muito poucos é concedido o dom de resumir a breve experiência humana e, sobretudo, não a encharcar de palavras inúteis – «O círculo completo que mantém/ A coroa fantástica da terra,/ Contradição divina que sustém// O que soergue humanos e os aterra/ Desde o princípio ao fim da existência/ Levei anos
e séculos em guerra// Para unificar essa vivência/ Exaltada do espírito e da carne/ Numa fusão: inédita inocência!»
(p.58) .
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Um dos mais conseguidos poemas do livro parece-me ser o primeiro. A Primeira Elegia logra, num hábil movimento do concreto para o abstracto, tecer uma contida meditação poética, alcançando, curiosamente (ou não), um dos poemas formalmente mais estáveis, de linguagem mais sóbria e cujas ressonância mais força adquirem. Todo ele é movimento, todo ele flúi, como a água que captura para se fazer poema. A água da morte? A da vida? A de ambos os movimentos, por certo.
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Com a base dinâmica do elemento aquático, o poema instala a sua rigidez verbal, ameaçada pelos açudes mortais, por todos os baixios destruidores – «Águas múrmuras do rio/ Invadindo lentamente/ Outro rio: o tumulto/ Que levamos sem querer/ À profunda quietude/ Deste ritmo natural» (p.11) A partir de então, no caudal linguístico dos poemas, e pelo menos até à acalmia formal e prosódica da Décima Segunda Elegia, o ritmo dos versos, a sua disposição estrófica, o seu desregulamento essencial manter-se-ão, serão a nota dominante da superfície do poema. Espécie de prolongamento de um movimento que, uma vez iniciado, é impossível travar, os poemas caminham para o fim, foz de nenhuma resignação, ancoradouro sem busca de salvação senão a que se foi sedimentando nas margens agora impregnadas deste ritmo encantado, terrestre, fundamente humano, por entre águas revoltas. O que marca o compasso, serve de bússola à inviável jornada?
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Teremos, talvez, provisória resposta na Terceira Elegia«O mergulho abrupto de certas horas/ No relógio lento do coração// A busca de Deus incerta e bruta/ No massacre da adolescência// O massacre existe/ em tudo/ E não tem nome» (p.17).
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A poesia de Alberto de Lacerda tem sido alvo de um desprezo que me parece invulgar, para não dizer injusto. Por exemplo (exemplo perverso, talvez), caso se pretenda obter, numa livraria, algum título do poeta, ser-se-á, por certo («por certo», porque, no meu caso, não preciso de o fazer…), recebido com silêncio, vácuo de espécimes disponíveis. Trata-se de um poeta com um percurso vasto, mas que, ainda assim, não seria de molde a afastas os mais assustadiços perante longas bibliografias.
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A sua obra poética foi reunida pela IN-CM em Oferenda I
(1984) e Oferenda II (1994), mas há ainda volumes que excedem o seu opus já reunido (que não completo). Nada me dizem as efemérides, mas custa-me – ainda assim – que não se leiam os poetas que interessariam e se louvem os que não importam sequer à terra que os há-de recolher, ou já recolheu (para bom entendedor…).
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Alberto de Lacerda
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Ilha de Moçambique

Desfeitos um por um os nós sombrios,
Anulada a distancia entre o desejo
E o sonho coincidente como um beijo,
Exalei mapas que exalaram rios.
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Terra secreta, continentes frios,
Ardei à luz dum sol que é rumorejo
Para lá do que eu sou, do que eu invejo
Aos elementos, aos altos navios!
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Trouxe de longe o palácio sepulto,
A cobra semimorta, a bandarilha,
E esqueci poços, prossegui oculto.
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Desdém que envolve por completo a quilha,
Sou bem o rei saudoso do seu vulto,
Vulto que existe infante numa ilha.
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Hino ao Tejo
Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fênix astro caravela liquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho
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Austin revisited
a Svatava Jakobson

O verde é muito verde
A luz mais clara
Do que nunca
As recordações são do tamanho
Do coração transbordante
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O calor é Apolo perpendicular à terra
Os pássaros
os esquilos
Atravessam a imaginação numa diagonal sem fim
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Austin
15 de maio 75
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Para saber mais ver:
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Alberto de Lacerda, um grande poeta português esquecido, morreu domingo passado em Londres. Deixo, no Caderno de Poesia, em sua homenagem, dois poemas retirados de “Poemas” – Julho de 1951 – “Cadernos de Poesia”.
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Ler Eduardo Pitta em Da Literatura
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1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Nunca tinha sequer, ouvido falar de Alberto Lacerda; e gostei muitíssimo, destes poucos Poemas que aqui vim encontrar...
É realmente uma pena não ser conhecido!
Quem sabe agora, assim exposto, dará para criar maior interesse, por parte de quem vem ler!...

Maria Mamede