sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Mia Couto . Contos

* Mia Couto
A CARTA 

A velha dobrou as pernas como se dobrasse os séculos. Ela sofria dença
do chão, mais e de mais se deixando nos caídos. Amparava-se em poeiras,
seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?

- Me leia a carta. Me entregava o papel marrotado, dobrado em mil sujidades.
Era a Carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no
zero. A carta, ele a enviara fazia anos muito coçados. Sempre era a mesma,
já eu lhe conhecia de memória, vírgula a vírgula.

- Outra vez, mamã Cacilda?

- Sim, maistravez.

Sentei o papel sob os olhos, fingi acarinhar o desenho das letras. Quase
nem se viam, suadas que estavam. Dormiam sob o lenço de Cacilda, desde que
chegara a guerra. Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração.
Era o dito da velha. Agora, passados os tempos, aquele papel era a única
prova do seu Ezequiel. Parecia que só pelo escrito, sempre mais desbotado,
seu filho acedia à existencia. Nas primeiras vezes eu até me procedia à
leitura, traduzindo a autêntica versão do pequeno soldado. Eram letras incertinhas,
pareciam crianças saindo da formatura. Juntavam-se ali mais erros que palavras.
O recheio nem era maior que o formato. Porque naquela escrita não havia
nem linha de ternura. O soldado aprendera a guerra desaprendendo o amor?
Em Ezequiel, morrera o filho para nascer o tropeiro? Nas primeiras leituras,
meu coração muito se apertava em inventadas dedicatórias aquela mãe. Enquanto
lia, eu espreitava o rosto da idosa senhora, tentando escutar uma ruga de
tristeza. Nada. A velha se imovia, como se tivesse saudade da morte. Seus
olhos não mencionavam nenhuma dor. Eu tentava um alivio, desculpar o menino
que não sobrevivera à farda. Nem se entristenha, mamã Cacilda. Também, maneira
como carregaram esse menino para a tropa! Sem camisa, sem mala, sem notícia.
Atirado para os fundos do camião como se faz às encomendas sem endereço.

- Entenda, mamã Cacilda.

Mas ela já dormia, deitada em antiquíssima sombra. Ou mentia que Dormia,
debruçada na varanda da alma? Fingia, a velha. Como o rio, num açude, se
disfarça de lagoa. Depois, ela regressava às pálpebras, me apressava.

- Continua. Por que paraste?

Já não restava nada que ler. Era só o gorduroso gatafunho, despedida Sem
nenhum beijo. Pode a carta de um saudoso filho terminar assim «unidade,
trabalho, vigilância»? Mas a velha insistia, cismalhava. Eu que lesse, toda
a gente sabe, as letras igualam as estrelas mesmo poucas são infinitas.
Eu lhe fosse paciente, pobre mãe, sem nenhuma escola. Foi então que passei
a alongar aquela tinta, amolecendo as reais palavras. Inventava. Em cada
leitura, uma nova carta surgia da velha missiva. E o Ezequiel, em minha
imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho, homem com méritos
para permanecer menino. Cacilda escutava num embalo, houvessem em minha
voz ondas de um sepultado mar. Ela embarcava de visita a seu filho, tudo
se passando na bondade de uma mentira. Diz-se na própria doideira dos vamos
loucurando. Até, um dia, me trouxeram notícia. Ezequiel perdera, para sempre,
a existencia. Ele se desfechara em incógnitos matos, vitima dos bandos.
A mãe nem suspeitava. Perguntei desconhecia-se o paradeiro dela. Ficasse
eu atribuido de lhe entregar o escuro anúncio. Esperei. Nesse fim de tardinha,
porém, mamã Cacilda não compareceu em minha casa. Assustei adivinhara ela
o destino do Ezequiel? Quem conhece os poderes de uma mãe em exercicio de
saudade? Decidi ir ao seu lugar. Parti ainda restavam manchas do poente.
Cacilda cozinhava uns míseros grãos, ementa de passarinho.

- Senta, meu filho, fica servido, não custa dividir pobrezas.

Fui ficando, me compondo de coragem. Como podia eu deflagrar aquele luto?
Comemos. Melhor fingimos comer. Faz conta é uma refeição, meu filho. Faz
conta. Modo que eu vivo, fazendo de conta.

- E agora, diz porque vieste nesta minha casa?

Olhei o chão, o mundo escapava pelo fundo. Ela venceu o silêncio.

- Me vens ler o meu filho?

Acenei que sim. Aceitei o velho papel mas demorei a começar. Eu queria acertar
os meus tons, evitando o emergir de alguma tremura. Finalmente, atravessei
a escrita, ao avesso da verdade. Trouxe as novas do filho, seus consecutivos
heroísmos. Ele, o mais bravo, mais bondoso, mais único. Como sempre, a mãe
escutou em qualificado silêncio. Às vezes, no colorir de um parágrafo, ela
sorria sempre igual, esse meu filho. Eu me parabendizia, cumprida a missão
do fingimento. Me despedi, quase em alívio. Foi então, em derradeiro relance,
que eu vi a velha mãe lançava a carta sobre a fogueira. Ao meu virar, ela
emendou o gesto. O papel demorou um instante a ser mastigado pelo fogo.
Nesse brevíssimo segundo, eu anotei a lágrima pingando sobre a esteira.
Ela fingiu tirar um fumo do rosto, fez conta que metia a carta sob o lenço.
Me voltei a despedir, fazendo de conta que aquele adeus era igual aos todos
que já lhe concedera.

*


SANGUE DA AVÓ MANCHANDO A ALCATIFA


Siga-se o improvérbio dá-se o braço e logo querem a mão. Afinal, quem
tudo perde, tudo quer. Contarei o episódio evitando juntar o inutil ao desagradável.
Veremos, no final sem contas, que o ultimo a melhorar é aquele que ri. Mandaram
vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha mantinha magras
sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por balas que
por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade. Carolina merecia
as penas. A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da familia. Alcatifas,
mármores, carros, uisques tudo abundava. Nos principios, ela muito se orgulhou
daquelas riquezas. A Independencia, afinal, não tinha sido para o povo viver
bem? Mas depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de onde vinham tantas
vaidades? E porque razão os tesouros desta vida não se distribuem pelos
todos? Carolina, calada em si, não desistia de se perguntar. Parecia demorar-se
em estado de domingo. Mas, por dentro, os mistérios lhe davam serviço. Na
aldeia, a velha muito elogiara a militancia dos filhos citadinos, comentando
os seus sacrificios pela causa do povo. Em sua boca, a familia era bandeira
hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer mancha. Mas agora ela
se inquietava olhando aquela casa empanturrada de luxos. A filha vinha da
loja com sacos cheios, abarrotados.

- Este abastecimento não é tão demais?

- Cala vovó. Vai lá ver televisão.

Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das Luzes. Apoiada
numa velha bengala, adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. Mais noite, ela
despertava e luscofuscava seus pequenos olhos pela sala. Filhos e netos
se fechavam numa roda, assistindo video. Quase lhe vinha um sentimento doce,
a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade
de contar estórias. Mas ninguém lhe escutava. Os miudos enchiam as orelhas
de auscultadores. O genro, de óculos escuros, se despropositava, ressonante.
A filha tratava-se com pomadas, em homenagem aos gala-galas(*) [* lagarto
de cabeça azul]. A avó regressava à sua ilha, recordando a aldeia. Lá, no
incendio da guerra, tudo se perdera. Ficaram sofrimentos, cinzas, nadas.

- Essas coisas todas, meu genro, de onde vêm?

- São horas extraordinárias.

Devia ser horas muito extraordinárias, avaliava a avó. Cansada de tanta
coisa que não podia explicar, ela pediu para regressar. Voltava para o lugar
onde pertencia, vizinha da ausência. Então, os filhos lhe ofereceram roupas
bonitas, sapatos de muito tacão e até um par de óculos para corrigir as
atenções da idosa senhora. Carolina cedeu à tentação. Bonitou-se. Pela primeira
vez saiu a ver a cidade.

- Nunca atravesse nenhuma rua. Você não tem idade para pedestrar.

Não chegou de atravessar. Logo no passeio, ela viu os meninos farrapudos,
a miséria mendigando. Quantas mãos se lhe estenderiam, acreditando que ela
fosse proprietária de fundos bolsos? A avó sentou-se na esquina, tirou os
óculos, esfregou os olhos. Chorava? Ou sentia apenas lágrimas faciais, por
causa das indevidas lentes? Regressada a casa, ela despiu as roupas, atirou
no chão os enfeites. Da mala de cartão retirou as consagradas capulanas,
cobriu o cabelo com o lenço estampado. E juntou-se à sala, inexistindo,
entre o parentesis dos parentes. Nessa noite, a televisão transmitia uma
reportagem sobre a guerra. Mostravam-se bandidos armados, suas medonhas
acções. De subito, sem que ninguém pudesse evitar, a velha atirou sua pesada
bengala de encontro ao aparelho de televisão. O ecran se estilhaçou, os
vidros tintilaram na alcatifa. Os bandidos se desligaram, ficou um fumo
rectangular.

- Matei-lhes, satanhocos ­ gritou a avó.

Primeiro todos se estupefactaram. Os meninos até choraram, assustados. O
genro reabilitou-se aos custos. Soprando raivas, ergueu-se em gesto de ameaça.
Mas a avó, apanhando a bengala, avisou o homem:

- Tu cala-te. Não sentes vergonha? Há bandidos a passear aqui na tua sala
e tu não fazes nada.

Incrustada em espanto, a familia encarava a anciã. Carolina monumentara-se,
acrescida de muitos tamanhos. Então, atravessou a sala, vassourou os estragos,
meteu os vidrinhos num saco de plástico.

- Estão aqui todos ­ disse.

E entregou o saco ao genro. Do plástico pingavam gotas de sangue. O genro
espreitou as próprias mãos. Não, ele não se tinha cortado. Era sangue da
avó, gotas antiquissimas. Tombaram no tapete, em vermelha acusação. Na manhã
seguinte, a avó despachou o seu regresso. Voltou à sua terra, nem dela se
soube mais. Na cidade, a familia se recompos sem demora. Compraram um novo
aparelho de televisão, até que o anterior já nem era compativel. De vez
em quando recordavam a avó e todos se riam por unanimidade e aclamação.
Festejavam a insanidade da velha. Coitada da avó. No entanto, ainda hoje
uma mancha vermelha persiste na alcatifa. Tentaram lavar desconseguiram.
Tentaram tirar os tapetes impossível. A mancha colara-se ao soalho com tal
sofreguidão que só mesmo arrancando o chão. Chamaram o parecer do feiticeiro.
O homem consultou o lugar, recolheu sombras. Enfim, se pronunciou. Disse
que aquele sangue não terminava, crescia com os tempos, transitando de gota
para o rio, de rio para oceano. Aquela mancha não podia, afinal, resultar
de pessoa única. Era sangue da terra, soberano e irrevogável como a própria
vida.




*



ISAURA PARA SEMPRE DENTRO DE MIM


Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos
os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado,
os zunzuns da gente no bazar.

A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea
do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para
outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade
do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças
como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem.

Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos
na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade
mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar
as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozoada.
Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir,
com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a
apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não
tivesse deitado.

Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem?
A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia
sem ousadia sequer de terminar o sonho.

E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro
da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. magra,
como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro
me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo.
Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa
dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava
a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas. Enchia
as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar apalhaçado,
com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e vizinhávamo-nos, cara com
cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela.
Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores,
a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca todo o meu corpo se ia
esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento
e peito do outro.

Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza
meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades,
lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.

Simples procedimento aquele Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos,
beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar
de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando
no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples
acidentes sem percurso.

Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições.
Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi
as inteiras culpas. Construí a versão eu a tinha assaltado, obrigado contra
as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi
de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca
mais Isaura, nunca mais notícias dela.

Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar.
Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.

Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta
lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo
que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.

Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia,
no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara
aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era
má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas,
como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.

- Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou?

- Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger.
Isso, me fez muito mal.

Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de
sombra.

Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria
nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se,
arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste
mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela
segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci

-Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.

Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou
fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela
colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte a mulher se converteu em
fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu
peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.

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1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Quando leio Mia Couto, sempre fico no encantamento dessas terras longe, onde as paixões são diferentes...
E A Carta, fez-me chorar...
Mia, tem em mim esse efeito; comove-me até às lágrimas, mesmo que o que me conta não seja verdadeiramente triste.
É um dos "Contadores de Estórias" que mais amo!

Bj

Maria Mamede