sábado, 1 de setembro de 2007

Luísa Costa Gomes e Portugal

Luísa Costa Gomes sobre Portugal:


Um artigo enciclopédico que pode bem constituir um guia imprescindível para o visitante desse curioso, cómico e longínquo país. Tudo o que é preciso saber sobre a sua paisagem, geografia física, regime político, cultura, economia, gastronomia e anedotário.
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Superfície: 90.082 metros quadrados; estima-se em dez contos por metro quadrado, o que está ao alcance de qualquer multinacional de porte médio. Portugal optou pela sóbria forma rectangular, rejeitando o bicudo barroco italiano, o quadrado do pastelão espanhol, a nódoa de territórios que alastram ao acaso sem rei nem roque. Sábio e prático a um tempo, e mesmo antes do tempo, Portugal escolheu, mais do que a forma rectangular simples, o rectângulo ao alto, permitindo contentar os que vivem no litoral — e constroem casas no interior, nunca muito longe — e os que vivem no interior, migrando para o mar, onde constroem casas. Sabe-se o resultado nefasto do rectângulo ao baixo, origem de insatisfação e muita desigualdade em colossos como o Não-Sei-Quantos (antiga União Soviética e mais antiga Rússia imperial) e os Estados Unidos da América. É verdade, alegarão, que também o Ghana e o Togo são rectângulos ao alto, mas aqueles têm uma nesga de mar que não dá sequer para Turismo, quanto mais para fazer História.
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Capital: Lisboa. A cidade espaçosa e harmoniosa das literaturas do século passado atravancou-se de mostrengos que parecem desenhados por um bando de lunáticos megalómanos e coloridos por uma turma de crianças excessivamente normais. Predomina a arquitectura de arco e fresta, ombreando ostensiva com os escombros dos magníficos prédios que tiveram prémios. De longe, Lisboa é das cidades mais insinuantes do mundo, clara, ondeante, pousada no rio. Ao perto, um monte de ruínas ligadas por valas que são regularmente abertas e fechadas, ao ritmo do calendário eleitoral. Dir-se-ia que a parte mais séria da cidade é o subsolo, e que os governantes escavam, com irracional obstinação, à procura de tesouros, à procura de raízes.
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Cenários Naturais: Quem for a Portugal à espera daquelas cenas refrigerantes de que Garrett falava nas Viagens, tem de ir pronto para trabalhar em abstracto. Não há colina que não apresente a sua fabriqueta malcheirosa, não há extensão em que não figure o aglomerado de prediozinhos castanhos de varandas anodizadas; naquelas vistas solitárias de outrora pôs-se um bairro de barracas, uma chaminé de fumo negro, um monte de sucata, um vazadouro de entulho onde branqueja a tabuleta "É proibido despejar entulho". Pelos campos, é a vivenda a protagonista, em todo o seu horror. Em vez de a esconderem em meio de discreto arvoredo, plantam a casa a meio metro da auto-estrada: e o viajante, a menos que vá de rosto escondido nas mãos e de cabeça apertada entre os joelhos, é forçoso que as veja. E mais à família, esparramada na varanda, debaixo do guarda-sol, depois do cozido, enquanto os meninos da casa, debruçados contra o aviso parental, contam os automóveis que vão na bicha. Dentro dos automóveis, as famílias discutem. Vêm de suas segundas casas, para as primeiras. A chegada, foi preciso limpar, desempoeirar, desentupir. A televisão estava húmida, não pegou. No dia seguinte, comeu-se demais ao almoço. Agora as crianças estão com sono. O calor enerva as famílias.
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Clima: Já não é o que era. Curiosamente, os nativos continuam a imaginar que vivem num clima temperado marítimo, mesmo quando as temperaturas sobem para os quarenta graus em Julho. O conceito de estação do ano tornou-se obsoleto. O clima é, sobretudo, variável. Temos um dia de Inverno seguido de um dia de Verão, depois de um dia de Primavera que é um dia de Verão com um bocado de vento fresco. Num ano chove tudo, noutro não chove nada. Em Portugal, bate-se o dente de Norte a Sul durante os meses frios e fica-se perplexo e molemente indignado quando o termómetro passa dos quarenta; nada está preparado para lutar contra os elementos, ou sequer minorar os seus efeitos. E a pobreza, num clima variável, pode ser muito cruel.
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Economia: Os analistas vêem nos Portugueses uma raça de pessimistas insaciáveis, sonhadores invertebrados, gente de fogachos que deixa tudo em meio. Mas um olhar sobre a imaginação dos Portugueses mostrará que, ao contrário, estamos em presença de um dos povos mais optimistas e mais facilmente silenciáveis do mundo; dir-se-ia, — e quem sou eu para presumir saber? — que o português ansiava pelo Universo, mas se contentava com um T zero a Santo António dos Cavaleiros. Hoje anseia por um T zero a Santo António dos Cavaleiros e contenta-se com ele. E, apesar de ser objectivamente um país pobre, bastou que o Pai da Pátria dissesse repetidamente aos eleitores que estavam ricos, para que eles, na sua candura e satisfação naturais, acreditassem. Até os torresmos ganharam outro paladar. Os Portugueses são pobres e não perdoam a ninguém. Abominam a sua pobreza, escondem-na, envergonham-se dela. É o concerto das nações que tem a culpa — e há-de pagá-las todas.
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Sistema político: Aparentemente, é uma democracia. A oposição é da confiança do governo. Havia uns comunistas mas comeram-se uns aos outros. O povo em geral é da confiança do governo. Há um processo formal de eleições de vez em quando. A população é mansa e gosta sobretudo de ditadores magros, austeros e de modelo paternal forte. A ideia que o chefe deve veicular para convencer é a da sua eficiência. O Português preza-a acima de tudo, porque é um valor mítico que sabe não estar ao seu alcance.
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Cultura: Dizem que houve, mas agora já não há.
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História: É muito bonita. Os portugueses mantêm com ela uma relação ambivalente: desconhecem-na, por um lado, quase inteiramente — o que lhes permite uma mistificação que não é ingénua — e invocam-na para se desculparem dos descalabros dos séculos mais recentes. Paradoxalmente, sendo um dos povos de identidade mais forte e estabelecida da Europa, preocupam-se sobretudo com a questão metafísica da sua personalidade mítica.
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Língua: Própria. A Língua Portuguesa veio do Latim, mas já foi há imenso tempo. Aos nativos, no entanto, parece não interessar absolutamente nada de onde é que ela veio, e, sobretudo, para onde é que ela vai. O português do ano dois mil — como hoje se prefigura — não terá formas complexas de qualidade alguma. A tendência simplificadora e redutiva que se afirma no vocabulário, na sintaxe e um pouco por todo o lado, fará desaparecer formas como, por exemplo, o saber-se-ia e o poder-se-ia, relegando o coitado do mesoclítico para o fim (saberia-se e poderia-se, se não mesmo saberiasse e poderiasse); a influência da colonização brasileira tenderá a tornar a pronúncia cada vez mais arbitrária e introduzirá estranhos termos arcaicos; dominarão formas de rufianismo linguístico, no pressuposto de que "desde que se entenda, está certo", tendendo a comunicação para o mais elementar dos grunhidos, apoiado pelo mais eloquente dos gestos. "Saberasme dezer por cades ir a Viana?" será, a curto prazo, uma expressão culta.
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Gastronomia: A regra é simples: tudo o que é pesado, é português. Fritos, refogados bem puxados. Vinhos de cair para o lado. Um doce não é doce se não levar as vinte gemas da praxe. É tudo muito bom e tudo faz muito mal. Por via da sua Gastronomia, o verdadeiro dilema moral dos portugueses não é decidir-se entre o Bem e o Mal —para o português, o único valor moral que existe é o que lhe convém —, mas entre rebentar ou viver.
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Anedota: Um homem morre e chega às portas do Inferno; em cada uma das entradas se afixaram as ementas de tormentos e o retrato do diabo responsável. O homem lê:"Guichet n° 1 — Inferno Alemão — Horário dos fogos: 9h-13h; 14h-18h. Gás da Companhia. Descanso semanal. Extras: roda de entortar, chicote, discursos políticos. Não se fazem devoluções." O homem espreita: só duas pessoas esperam junto do guichet. Dirige-se à outra porta, onde se lê o menu do "Inferno Francês — Horário dos fogos: 9.30h-12.30h; 15h.l7.45h. Atendimento personalizado. O diabo-chefe deseja-lhe uma boa eternidade. Não franceses: é favor dirigirem-se ao guichet n° 1." O homem espreita: cinco pessoas esperam entrada naquele inferno. O homem prossegue. Uma porta a que falta a maçaneta anuncia o "Inferno Português — Horário dos fogos: 7.30h-19.30h. Não fazemos intervalo para almoço. Fogos individuais, de grupo e colectivos. Patrulhas de hora a hora, chicote, censuras, culpabilização incluídos. Horrores nunca vistos. Última palavra em tecnologia da dor. Não se aceitam reclamações." Junto ao guichet aglomera-se uma multidão ululante, empunhando maços de documentos oficiais. Todos se empurram para entrar. Os mais velhos passam à frente, alegam dores nas costas, antiguidade. O homem relê o anúncio. Parece-lhe o inferno pior, o mais tenebroso, o mais ameaçador. Chega-se a um pretendente que, na bicha mal-formada, grita para a frente o universal "Então essa merda não anda?". O nosso homem informa-o de que os outros infernos estão às moscas e são muito melhores, mais humanos. O alemão até faz descanso semanal. É então que o homem-da-bicha esclarece, apontando o guichet português que, às dez e meia, ainda não abriu: "Bem vê: aqui, o horário é mais terrível, mas, normalmente, não é cumprido; o mais das vezes não há gás para os fogos; os diabos jogam às cartas o tempo todo e deixam-nos descansados; havia umas chibatas e uns pingalins, mas desapareceram, diz-se que foi o superintendente que os vendeu aos alemães. E os horrores que eles anunciam são um dragão vegetariano a cair de fome e uma figura de cera do Marques Mendes que diz 'Portugueses!' com voz de falsete, quando se mete a moeda. Mas como nunca há trocos, mantém-se de olho semi-aberto e bico calado. E aquela da tecnologia da dor é um tipo magrinho que traz uns alfinetes, mas meteu baixa aí há três meses porque tem a mulher doente e não arranjaram substituto." E o neófito, convertido ao paradisíaco inferno português, integrou-se na bicha para pedir as minutas necessárias e tirar as cento e cinquenta e sete certidões, certificados, registos, cartões, bilhetes, cartas e fotos e poder, enfim, acolher-se à sombra daquele oásis de cândida ineficiência, fabricada com as mais altas intenções.
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Ler 19, 1992, pp. 50-51.
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1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Olha Victor, fiquei de boca aberta!...Só uma Mulher para escrever isto!...
Apesar do exagero, mordaz, pousando o dedo nas feridas, com piada corrosiva, enfim, dá que pensar...
Tiraria o meu chapéu se o tivesse!!!

Bj

Maria Mamede