SEMANÁRIO#2660 - 20/10/23
* Daniel Oliveira
“Esta é a prova nua e nauseante da selvajaria inacreditável dos terroristas que atravessam a fronteira do Norte de Angola para degolar, violar e mutilar as nossas mulheres e crianças por todas as fazendas e aldeias indefesas em que passavam, sem a menor provocação (...). Não importa quanto gritam sobre a repressão portuguesa, sobre a exploração portuguesa, (...) a prova nua está aqui, demasiado nauseante para ser olhada.” Este foi o discurso do embaixador português Vasco Garin na ONU, exibindo ao Conselho de Segurança algumas das horrendas fotografias do massacre da UPA, em 1961. Como o jornalismo tem a tentação para o eterno começo, socorro-me, para grande parte deste texto, de um artigo académico do historiador de arte Afonso Dias Ramos, “Angola 1961, o horror das imagens”, do livro coletivo de 2014 “O Império da Visão”. É quase desnecessário explicar o que foram os massacres de março de 1961, no Norte de Angola, liderados pela UPA. As horrendas fotografias criaram um trauma. E quem não tem essa memória encontrará numa busca rápida os cadáveres profanados e desmembrados, com intestinos de fora, crânios rebentados, caras desfiguradas, genitália serrada. Barrado o acesso da imprensa internacional, o regime colonial enviou fotógrafos e operadores de câmara para captar imagens dos cadáveres em decomposição, só depois enterrados pelos soldados. Recolhia-se material de guerra: imagens.
Ao contrário do habitual, não se impuseram restrições à circulação das fotos. Foram publicadas em toda a imprensa, incluindo no estrangeiro. Nem ao seu conteúdo, ultrapassando as regras vigentes sobre nudez, sexo ou morte. Foram colocadas ampliações nas vitrinas do Palácio Foz e a Sociedade de Geografia organizou uma exposição com mais de 50 mil visitantes. Foram publicados dezenas de livros, alguns com mais de dez edições. Corriam de mão em mão. Há relatos de carrinhas de propaganda em aldeias remotas. Viriam a ser mostradas aos soldados, nos anos seguintes, e havia quem as levasse na carteira para combater. Fora de portas, grupos ultraconservadores e supremacistas dos EUA distribuíram as imagens, ligando Martin Luther King a Holden Roberto. Um folheto sobre o “genocídio” foi enviado a todos os congressistas, alertando contra quem queria “destruir a NATO e o mundo livre”.
“Vamos para combater, não contra seres humanos, mas contra selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animais.” Haverá muitas diferenças. Mas a semelhança entre as palavras do ministro do Exército português, em 1961, e as do ministro da Defesa israelita, em 2023, depois de massacres, não é coincidência
“Se a circulação das imagens violava todas as convenções, apelava igualmente a uma resposta inconvencional, suspendendo códigos morais e legais na eliminação do mal”, escreve Afonso Dias Ramos. Foi o choque emocional que disparou o gatilho da guerra, com a famosa ordem de Salazar: “Para Angola, rapidamente e em força.” As imagens uniam os portugueses em torno de um inimigo que decapitava crianças, violava mulheres, castrava homens. A desumanização do inimigo foi eficaz e há relatos bem horrendos da carnificina da reação. Como escreveu o jornalista John Frederick Walker, “as fotografias da vingança teriam conseguido facilmente igualar o horror das do levantamento”. Dessas não ficaram registos públicos (haverá privados). Ainda assim, foram apresentadas na ONU, por iniciativa da Guiné, fotografias-troféu de cabeças de negros espetadas em paus erguidos por militares sorridentes. Como escreve o historiador, as fotografias “inspiravam um horror cego e cegavam horrores perpetrados em seu nome”. A despolitização do conflito, através do trauma, como se tudo tivesse começado a 15 de março, também funcionou internamente. Lá fora, um documentário da NBC complementava as imagens da chacina com o massacre da Baixa do Cassanje ou a violência do trabalho forçado. O imperdoável “mas” a que chamamos contexto.
“Vamos para combater, não contra seres humanos, mas contra feras e selvagens. Vamos enfrentar terroristas que devem ser abatidos como animais selvagens.” Qualquer semelhança entre as palavras do ministro do Exército, em 1961, e as do ministro da Defesa israelita, em 2023, não é coincidência. E a minha escolha do massacre de março de 1961 para ocupar quase todo este texto também não. Se alguém, a esta distância, perguntasse o que podia fazer o governo português perante aquela selvajaria se não iniciar uma guerra sangrenta, os sensatos responderiam que, independentemente do horror e da resposta, aquilo era um aviso para a urgência de iniciar a descolonização.
Haverá muitas diferenças. Entre a UPA e o Hamas, entre combatentes que cometem atrocidades e organizações terroristas, apesar deste terrível episódio ter marcado para sempre a reputação de Holden Roberto. Entre um conflito colonial ultramarino e uma disputa de território. Mas a maior diferença, neste episódio, é o que torna a comparação interessante. Enquanto as imagens do massacre da UPA foram usadas exclusivamente por Portugal, para alimentar a sede de vingança e obliterar o contexto político, as imagens do massacre do Hamas foram captadas pelo próprio Hamas e divulgadas por ele e por Israel. O massacre do Hamas pretendeu provocar uma reação, numa aliança pelo caos entre Hamas e Netanyahu. O padrão é o mesmo: a utilização do trauma para tornar inevitáveis os crimes que se seguem, criando “um momento zero” num conflito longo. Sem “mas”.
https://expresso.pt/opiniao/2023-10-20-Para-Gaza-rapidamente-e-em-forca-d996145d
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