O QUE A HISTÓRIA DE PORTUGAL NÃO CONTA: ESCRAVOS EM PORTUGAL
* Carlos Mário Alexandrino da Silva
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1.- OS NEGROS EM PORTUGAL - UMA PRESENÇA SILENCIOSA
José Ramos Tinhorão - Lisboa
Editora Caminho,1988
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QUER UM CONSELHO AMIGO: LEIA A OBRA EM EPÍGRAFE, SE DESEJA INFORMAR-SE E FICAR MARAVILHADO.
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UM TÍTULO E UM AUTOR, BRASILEIRO, DESCONHECIDOS DE BRASILEIROS E PORTUGUESES E SOMENTE EDITADO, ATÉ HOJE, EM PORTUGAL... NOSSA HOMENAGEM AO PROF. DOUTOR JOSÉ RAMOS TINHORÃO, A QUEM NÃO TEMOS A HONRA DE CONHECER PESSOALMENTE.
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Afigura-se-nos necessário destacar a introdução à obra deste notável historiador brasileiro, em que procura justificar o seu trabalho.
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Repare na seguinte passagem:
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"Foi há quinze anos, ao reunir material para o livro Música Popular - De Índios, Negros e Mestiços, que o autor pôde perceber que - tal como o caso das histórias política ou económica - também a da cultura popular no Brasil só poderia ser bem compreendida com o prévio conhecimento da realidade portuguesa, desde os fins da Idade Média. E, então, como um primeiro sinal dessa descoberta, o autor escreveu, referindo-se às primeiras remessas de negros da Guiné para Portugal na segunda metade do século XV."
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E a seguir:
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"Ora, como esses negros, embora sujeitos ao regime escravo (outro costume que os árabes se haviam encarregado de difundir na Península), só em parte se destinavam, em Portugal e na Espanha, ao trabalho organizado dos campos ou da indústria artesanal, as suas relações com os senhores se estabeleceram quase sempre com um carácter familiar, como já havia acontecido, aliás, na antiguidade clássica, em muitas cidades gregas."
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O autor que estamos acompanhando abre o II Capítulo escrevendo em «1. O duplo atractivo dos negros: o valor das suas informações e o «proveito da sua serventia»»:
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"Desde as suas origens, Portugal conhecia o regime da escravidão, não apenas devido à norma de transformar os mouros vencidos na guerra em cativos ou servos, mas através de relações de comércio com mercadores árabes ou mesmo pela acção de pirataria realizada directamente pelos seus navios na região do Mediterrâneo fronteira ao Norte de África.
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Segundo anota Pedro A. d´Azevedo, em pequeno estudo de muito valor intitulado Os Escravos (33), havia desde meados do século XIV postos de venda de cativos na Rua Nova de Lisboa, onde se comerciavam peças trazidas inclusive de Sevilha - que em Castela funcionava como entreposto - e, segundo um documento encontrado pelo pesquisador no Convento de Chelas, uma das freiras desta casa lá comprara por 150 libras em 1368 a um mercador sevilhano uma jovem moura de pele branca chamada Moreima.
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Ao lado desse comércio entregue a particulares existia o tráfico de certa forma oficial, uma vez que os corsários necessitavam de autorização real para desempenho da actividade, e essa só era concedida contra a opção de compra, pelos reis, dos cativos apresados (ou filhados, como então se dizia). Uma notícia comprovadora desse tipo de actividade seria fornecida pelo documento em que em 1317 o rei D. Diniz, ao contratar os serviços do almirante genovês Manuel Pesagno, o autorizava a usar os seus barcos em sortidas de corso, mas reservando-se o direito de adquirir quantos mouros aprisionados desejasse, ao preço de 100 libras por cabeça." escreve Tinhorão.
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A páginas 44 e 45 (edição da Editorial Caminho, AS - Lisboa, 1988 - 31 colecção universitária) da obra referida em título, escreve o mesmo pesquisador e distinto historiógrafo brasileiro:
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"Além do comércio normal de compra e venda de escravos destinados à exploração do trabalho, o intercâmbio de cativos entre a Península Ibérica e o Norte de África costumava ser praticado também por razões políticas. É que, como os chamados mouros da costa transformavam em escravos todos os náufragos que arribavam às suas praias (e os náufragos devido a lutas entre navios de bandeiras rivais ou por inclemência do mar eram frequentes) e, além disso, os corsários cristãos e muçulmanos se revezavam na redução ao cativeiro dos contrários vencidos, tornou-se praxe o sistema de resgates para obter a libertação de prisioneiros importantes pela sua condição económica ou social. Tal sistema de trocas contava inclusive com os serviços de um tipo especial de emissário para as negociações, o alfaqueque."
E a seguir:
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"Foi através de tais trocas que os portugueses entraram em contacto mais íntimo com negros africanos das regiões denominadas pelos mouros de bailad-as-Sudan, o além-Sara para o sul, habitado pelos negros islamizados do Sudão, e das áreas ocidentais vizinhas dos rios Níger e Senegal, ao norte do Equador."
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2.- OS ESCRAVOS IDOS DAS ILHAS CANÁRIAS. ANTEPASSADOS DOS MADEIRENSES...
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Sem dúvida alguma, a importância do trabalho escravo foi grande na política de expansão. Tinhorão destaca:
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"A possibilidade da criação de um núcleo económico rendível na ilha da Madeira, logo objectivada no sucesso da extracção de madeira e produção de açúcar de cana para exportação a partir de meados do século XV (50), ia mudar a visão do infante no que se referia às tácticas e meios empregados no seu obstinado plano de conquistas militares em território do Magrebe e de exploração na direcção sul da costa africana.
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Não será impossível que, após o estabelecimento do pequeno núcleo de colonização montado à volta da família do seu descobridor, João Gonçalves, em 1421, o infante D.Henrique tenha iniciado (ou intensificado) a cultura da cana- de- açúcar usando como mão-de-obra cativos levados das Canárias nas suas investidas de 1425, 1427 e 1434.
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É que dessas tentativas de conquista (se é que o objectivo era apenas militar, e não também de caça aos nativos das ilhas) resultou sempre o sequestro de numerosos «inimigos», como provaria a existência de canários entre os trabalhadores vistos pelo meio do século XV em terras do infante no cabo de São Vicente e na Vila de Sagres (51).
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De qualquer forma, a certeza de que o início da exploração económica das ilhas atlânticas, principalmente a Madeira, coincidindo com a chegada às partes negras do continente africano (através da viagem de Nuno Tristão próxima à foz do Senegal, em 1444), marcou o momento definitivo da fixação, pelo poder de Estado português, da moderna política de exploração internacional conhecida como «grandes navegações» , pode ser comprovada pelo fim da ambiguidade que marcava as relações dos navegadores com os naturais das terras abordadas.»
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De notar que as bulas Dum Diversus e Divino Amore Communiti, de 18 de Junho de 1452, que autorizavam o direito de filhar pagãos e reduzi-los à escravidão, haviam sido concedidas pelo papa Nicolau V em concordãncia com os argumentos dos portugueses que alegavam despesas com as navegações , o que vinha a dar aos documentos o carácter de apoio da Igreja à implantação do moderno capitalismo, na medida em que, com eles, assegurava a exploração tranqüila da mão-de-obra escrava em esquemas de produção agrícola para exportação. Com o papa Calisto III a própria Igreja Católica acabou se tornando parceira do pecaminoso empreendimento de saque, ao reservar para a Ordem de Cristo, pela bula Inter Coetera, de 13 de Março de 1456, o direito de padroado sobre as regiões conquistadas ou a serem conquistadas pelos portugueses. Inicialmente, no entanto, o propósito que parecia animar o infante, ao recorrer ao sequestro de infiéis ou pagãos, era obter "línguas", isto é, informações sobre as terras a conquistar ou a demandar...
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Verifica-se portanto, que a Igreja Catôlica foi sempre parte interessada na exploração da mão-de-obra escrava e que a própria Ordem de Cristo, uma comunidade de monges-guerreiros, herdeiros da famosa Ordem dos Templários fundada por cavaleiros franceses em Jerusalém no distante ano de 1116 e depois sacrificada, em 1314, no primeiro quartel do século XIV, à desonestidade do rei de França, Filipe O BELO, que mancomunado com o papa Clemente V, um dos 3 Pontífices que dividiam ao tempo aquela instituição religiosa, fez, para não pagar o que lhes devia, excomungar e, depois de indescritíveis torturas a que foram submetidos, queimar vivos, em Paris, mais de 500 monges-cavaleiros da catolicíssima Ordem, refugiando-se os escassos sobreviventes na Ilha de Malta e em Portugal, onde o inteligente e clarividente rei D. Diniz os acolheu, conseguindo do Papa de Roma, a quem obedecia, autorização para com eles fundar, em 1317, a ORDEM DOS CAVALEIROS DE CRISTO que parece ter iniciado suas actividades a coberto do tesouro que os seus cavaleiros haviam salvo e trazido de França. Ela seria mais tarde, no século seguinte, continuando a usar a Cruz de Copta, símbolo dos Templários, que ornamentaria as velas das naves lusitanas, a grande alavanca impulsionadora dos descobrimentos e conquistas portuguesas... com o infante D.Henrique à sua frente, no Castelo de Tomar, sede da Ordem. E com dependências no promontório da Finisterra e na Vila de Sagres, já que era nesta e não naquele que o Navegador [a quem se deve, graças também à providencial medida do rei D. Diniz, da 1ª Dinastia, que mandara plantar o imenso pinhal de Leiria de que sairia a madeira necessária à construção das embarcações, a grande gesta portuguesa dos descobrimentos], desenvolvia seus planos e estruturava seus empreendimentos. A famosa Escola de Sagres de que, só a partir do século XIX, falam numerosos compêndios escolares, jamais existiu ali! E também o cognome de O NAVEGADOR somente passou a ser-lhe aplicado pelos historiadores e escritores também do século passado... Na verdade ele jamais navegou além do Norte de África...
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Repare na seguinte passagem:
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"Foi há quinze anos, ao reunir material para o livro Música Popular - De Índios, Negros e Mestiços, que o autor pôde perceber que - tal como o caso das histórias política ou económica - também a da cultura popular no Brasil só poderia ser bem compreendida com o prévio conhecimento da realidade portuguesa, desde os fins da Idade Média. E, então, como um primeiro sinal dessa descoberta, o autor escreveu, referindo-se às primeiras remessas de negros da Guiné para Portugal na segunda metade do século XV."
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E a seguir:
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"Ora, como esses negros, embora sujeitos ao regime escravo (outro costume que os árabes se haviam encarregado de difundir na Península), só em parte se destinavam, em Portugal e na Espanha, ao trabalho organizado dos campos ou da indústria artesanal, as suas relações com os senhores se estabeleceram quase sempre com um carácter familiar, como já havia acontecido, aliás, na antiguidade clássica, em muitas cidades gregas."
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O autor que estamos acompanhando abre o II Capítulo escrevendo em «1. O duplo atractivo dos negros: o valor das suas informações e o «proveito da sua serventia»»:
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"Desde as suas origens, Portugal conhecia o regime da escravidão, não apenas devido à norma de transformar os mouros vencidos na guerra em cativos ou servos, mas através de relações de comércio com mercadores árabes ou mesmo pela acção de pirataria realizada directamente pelos seus navios na região do Mediterrâneo fronteira ao Norte de África.
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Segundo anota Pedro A. d´Azevedo, em pequeno estudo de muito valor intitulado Os Escravos (33), havia desde meados do século XIV postos de venda de cativos na Rua Nova de Lisboa, onde se comerciavam peças trazidas inclusive de Sevilha - que em Castela funcionava como entreposto - e, segundo um documento encontrado pelo pesquisador no Convento de Chelas, uma das freiras desta casa lá comprara por 150 libras em 1368 a um mercador sevilhano uma jovem moura de pele branca chamada Moreima.
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Ao lado desse comércio entregue a particulares existia o tráfico de certa forma oficial, uma vez que os corsários necessitavam de autorização real para desempenho da actividade, e essa só era concedida contra a opção de compra, pelos reis, dos cativos apresados (ou filhados, como então se dizia). Uma notícia comprovadora desse tipo de actividade seria fornecida pelo documento em que em 1317 o rei D. Diniz, ao contratar os serviços do almirante genovês Manuel Pesagno, o autorizava a usar os seus barcos em sortidas de corso, mas reservando-se o direito de adquirir quantos mouros aprisionados desejasse, ao preço de 100 libras por cabeça." escreve Tinhorão.
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A páginas 44 e 45 (edição da Editorial Caminho, AS - Lisboa, 1988 - 31 colecção universitária) da obra referida em título, escreve o mesmo pesquisador e distinto historiógrafo brasileiro:
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"Além do comércio normal de compra e venda de escravos destinados à exploração do trabalho, o intercâmbio de cativos entre a Península Ibérica e o Norte de África costumava ser praticado também por razões políticas. É que, como os chamados mouros da costa transformavam em escravos todos os náufragos que arribavam às suas praias (e os náufragos devido a lutas entre navios de bandeiras rivais ou por inclemência do mar eram frequentes) e, além disso, os corsários cristãos e muçulmanos se revezavam na redução ao cativeiro dos contrários vencidos, tornou-se praxe o sistema de resgates para obter a libertação de prisioneiros importantes pela sua condição económica ou social. Tal sistema de trocas contava inclusive com os serviços de um tipo especial de emissário para as negociações, o alfaqueque."
E a seguir:
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"Foi através de tais trocas que os portugueses entraram em contacto mais íntimo com negros africanos das regiões denominadas pelos mouros de bailad-as-Sudan, o além-Sara para o sul, habitado pelos negros islamizados do Sudão, e das áreas ocidentais vizinhas dos rios Níger e Senegal, ao norte do Equador."
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2.- OS ESCRAVOS IDOS DAS ILHAS CANÁRIAS. ANTEPASSADOS DOS MADEIRENSES...
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Sem dúvida alguma, a importância do trabalho escravo foi grande na política de expansão. Tinhorão destaca:
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"A possibilidade da criação de um núcleo económico rendível na ilha da Madeira, logo objectivada no sucesso da extracção de madeira e produção de açúcar de cana para exportação a partir de meados do século XV (50), ia mudar a visão do infante no que se referia às tácticas e meios empregados no seu obstinado plano de conquistas militares em território do Magrebe e de exploração na direcção sul da costa africana.
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Não será impossível que, após o estabelecimento do pequeno núcleo de colonização montado à volta da família do seu descobridor, João Gonçalves, em 1421, o infante D.Henrique tenha iniciado (ou intensificado) a cultura da cana- de- açúcar usando como mão-de-obra cativos levados das Canárias nas suas investidas de 1425, 1427 e 1434.
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É que dessas tentativas de conquista (se é que o objectivo era apenas militar, e não também de caça aos nativos das ilhas) resultou sempre o sequestro de numerosos «inimigos», como provaria a existência de canários entre os trabalhadores vistos pelo meio do século XV em terras do infante no cabo de São Vicente e na Vila de Sagres (51).
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De qualquer forma, a certeza de que o início da exploração económica das ilhas atlânticas, principalmente a Madeira, coincidindo com a chegada às partes negras do continente africano (através da viagem de Nuno Tristão próxima à foz do Senegal, em 1444), marcou o momento definitivo da fixação, pelo poder de Estado português, da moderna política de exploração internacional conhecida como «grandes navegações» , pode ser comprovada pelo fim da ambiguidade que marcava as relações dos navegadores com os naturais das terras abordadas.»
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De notar que as bulas Dum Diversus e Divino Amore Communiti, de 18 de Junho de 1452, que autorizavam o direito de filhar pagãos e reduzi-los à escravidão, haviam sido concedidas pelo papa Nicolau V em concordãncia com os argumentos dos portugueses que alegavam despesas com as navegações , o que vinha a dar aos documentos o carácter de apoio da Igreja à implantação do moderno capitalismo, na medida em que, com eles, assegurava a exploração tranqüila da mão-de-obra escrava em esquemas de produção agrícola para exportação. Com o papa Calisto III a própria Igreja Católica acabou se tornando parceira do pecaminoso empreendimento de saque, ao reservar para a Ordem de Cristo, pela bula Inter Coetera, de 13 de Março de 1456, o direito de padroado sobre as regiões conquistadas ou a serem conquistadas pelos portugueses. Inicialmente, no entanto, o propósito que parecia animar o infante, ao recorrer ao sequestro de infiéis ou pagãos, era obter "línguas", isto é, informações sobre as terras a conquistar ou a demandar...
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Verifica-se portanto, que a Igreja Catôlica foi sempre parte interessada na exploração da mão-de-obra escrava e que a própria Ordem de Cristo, uma comunidade de monges-guerreiros, herdeiros da famosa Ordem dos Templários fundada por cavaleiros franceses em Jerusalém no distante ano de 1116 e depois sacrificada, em 1314, no primeiro quartel do século XIV, à desonestidade do rei de França, Filipe O BELO, que mancomunado com o papa Clemente V, um dos 3 Pontífices que dividiam ao tempo aquela instituição religiosa, fez, para não pagar o que lhes devia, excomungar e, depois de indescritíveis torturas a que foram submetidos, queimar vivos, em Paris, mais de 500 monges-cavaleiros da catolicíssima Ordem, refugiando-se os escassos sobreviventes na Ilha de Malta e em Portugal, onde o inteligente e clarividente rei D. Diniz os acolheu, conseguindo do Papa de Roma, a quem obedecia, autorização para com eles fundar, em 1317, a ORDEM DOS CAVALEIROS DE CRISTO que parece ter iniciado suas actividades a coberto do tesouro que os seus cavaleiros haviam salvo e trazido de França. Ela seria mais tarde, no século seguinte, continuando a usar a Cruz de Copta, símbolo dos Templários, que ornamentaria as velas das naves lusitanas, a grande alavanca impulsionadora dos descobrimentos e conquistas portuguesas... com o infante D.Henrique à sua frente, no Castelo de Tomar, sede da Ordem. E com dependências no promontório da Finisterra e na Vila de Sagres, já que era nesta e não naquele que o Navegador [a quem se deve, graças também à providencial medida do rei D. Diniz, da 1ª Dinastia, que mandara plantar o imenso pinhal de Leiria de que sairia a madeira necessária à construção das embarcações, a grande gesta portuguesa dos descobrimentos], desenvolvia seus planos e estruturava seus empreendimentos. A famosa Escola de Sagres de que, só a partir do século XIX, falam numerosos compêndios escolares, jamais existiu ali! E também o cognome de O NAVEGADOR somente passou a ser-lhe aplicado pelos historiadores e escritores também do século passado... Na verdade ele jamais navegou além do Norte de África...
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3.- QUANDO O NEGRO PASSOU A SER PRETO...
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Tinhorão diz-nos na sua obra quando se operou essa mudança de denominação:
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"Uma das dificuldades de determinação do número de escravos negros africanos entrados em Portugal desde o início do século XV é representada pelo facto de os portugueses terem empregado invariavelmente o termo negro para designar, de forma genérica, todos os tipos raciais de pele morena com quem se relacionavam.
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Ainda no século XIII, ao resumir no Livro V da sua General Estoria as notícias do tempo sobre a Etiópia, já Afonso, o Sábio, informava que «hão os homens daquela terra um color mui negro».
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«Um século depois - observa Tinhorão - , a palavra era usada inclusive como apelido indicador dessa característica de cor escura da pele, como acontecia na corte do mestre de Avis (1385-1433), onde um dos oficiais de sua fazenda - certamente um judeu sefardim - era conhecido por David Negro.»
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A páginas 82 e 83, o referido autor afirma:
.
"Portugal, aliás, ia revelar-se não apenas o primeiro país a explorar a força de trabalho escravo, dentro de um projecto de economia mista - resultado da coincidência de interesses do Estado, da nobreza fundiária e administrativa e da burguesia comercial - , mas a empregar o serviço de cativos no seu próprio território praticamente em todas as funções já desempenhadas historicamente por escravos desde a Antigüidade.
.
"De facto, e principalmente após o predomínio da importação de negros africanos - os pretos - a partir da segunda metade do século XV, os escravos foram usados pelos portugueses como fornecedores de força de trabalho em empresas agro-industriais (caso da fabricação de açúcar nas ilhas atlânticas); como trabalhadores em obras públicas (desbravamento de matas, aterro de pântanos e construção de prédios); em serviços de bordo em navios; trabalhos portuários de carga e descarga; como remadores de galés e barcos de transporte; vendedores de água (negras do pote) e de peixe; como vendedores ambulantes de carvão; em serviços públicos municipais (remoção dos dejectos domiciliares pelas chamadas negras de canastras); como artesãos (mesteirais); como negros de ganho nas ruas ( ao serviço de senhores particulares); como trabalhadores em lagares de azeite (onde chegavam a mestres); e, ainda, «na cultivação do campo e no serviço ordinário», tal como informaria em 1655 o padre Manuel Severim de Faria nas suas Notícias de Portugal, admirado com o número de escravos empregados na «cultivação da terra» e nos serviços domésticos (actividade em que realmente predominavam e serviam em maior número nas cidades, principalmente em Lisboa)."
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A páginas 153 da sua obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial, o nosso antigo professor, no ISEU/UTL, Doutor Vitorino de Magalhães Godinho, conclui:
.
« Os portugueses caracterizavam-se pois por possuírem escravagem, que serve - de que se servem para viver. Têm-na por honra - como distinção social, mas também por desprezo do trabalho, que é "para o mouro", que será "para o preto".»
.
A verdade é que existe imensa dificuldade em precisar o número de escravos negros entrados em Portugal desde os alvores do século XV, isso porque os portugueses invariavelmente usavam o termo negro para denominar, de maneira genérica, todos os tipos raciais de pele morena com os quais se identificavam. A única forma de identificar um negro como negro africano na verdadeira acepção da palavra, era quando os cronistas, navegadores ou autoridades, em seus escritos, faziam referência a tiópios, ou etíopes, guinéus, ou gentios de determinados pontos de África conhecidos como habitados por naturais africanos, melanodermes.
.
«Essa dubiedade - escreve Tinhorão - só iria desaparecer quando, como resultado de um longo processo de observação, o povo passou a denominar o tipo de negro de pele mais escura com o nome da cor que por comparação lhe correspondia na linguagem comum, ou seja, a preta.
.
A partir de então, um negro cuja pele fosse tão escura que lembrasse a cor preta começou a ser chamado homem preto e logo, por economia, preto. O termo negro continuaria a constituir, oficialmente, o nome genérico para a gente das mais variadas graduações de cor de pele, a partir do amorenado ou pardo até os tons mais fechados, mas, para o povo em geral, o negro mais caracteristicamente africano passaria a ser sempre o preto.»
.
Até aos nossos dias, essa passagem de uma denominação a outra parece conter um enigma para os filólogos, e «isso por tentarem transferir o problema do contexto histórico em que ocorreu a operação semântica para a discussão da etimologia da palavras preto em si»- observa Tinhorão-.
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No início do século XX o lexicólogo brasileiro Alfredo Gomes pretendeu encontrar no verbo latino sperno (desprezar, fazer pouco caso) a origem do adjetivo spretus, a , um, desprezado, excluído, rejeitado e o substantivo spretus, us, desprezo, desdém. Essa proposição preconceituosa foi contestada por outro gramático brasileiro, maranhense, o Professor Hemetério José dos Santos, negro, num pequeno estudo que foi publicado, em 1907, no Almanaque Brasileiro Garnier , no qual aquele estudioso da lusofonia sublinha que « na alta e média antiguidade, o cativeiro não foi opróbio só do negro: todas as raças foram submetidas ao estado servil, e o branco o precedeu nessa dura provação de bravia e encarniçada luta de povo contra povo.» Aquele insuspeito gramático destacou que na língua portuguesa de fins do século XV e princípios do século XVI « já era de uso popular a palavra preto para designar tudo o que fosse da cor do ébano, aplicando-se indistintamente quer aos homens, quer às coisas.»
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Em Física Ótica, o branco resulta precisamente da fusão de todas as cores conseqüente da síntese das radiações luminosas, ao passo que o preto representa a ausência de cor, devida à total ausência de luz.
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Assim, no tocante a diferenciações raciais ou étnicas tudo conduz a supor que se trata de definir oposições: o contrário de branco seria sempre, conceitualmente, o negro, e vice-versa.
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Em livros da Chancelaria de D. Manuel encontrados pelos historiador português Pedro A.d´Azevedo que constam em seu estudo Os Escravos publicado em 1903, no Arquivo Histórico Português, o vocábulo preto, para denominar negro africano, surge em documentos escritos por alturas do início do século XVI, não como substantivo, mas - o que diz muito - como adjetivo qualificativo simples: homem preto, escravo preto, mulher preta, escrava preta. Numa declaração do próprio rei D. Manuel I, datada de 22 de Maio de 1501, fazendo forro, ou seja, livre, um velho escravo recebido por herança de seu pai D. João, que falecera em 1495, aos 77 anos de idade, e na qual dispõe: «....Dom Manuell etc.
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A quantos esta Nossa carta virem fazemos saber que avendo nos Respeito ao muito tempo que há que francisco lourenço homem preto da terra de benym nosso escravo serve . E como ficou del Rey meu senhor que Deus haja E queremdo lhe fazer a graça e merçee Temos por bem E o forramos ora e avemos por forro e livre pra vsar e fazer de sy todo o que lhe aprover daquy em diamte e pera em todollos dias de sua vida sem lhe per nos nem por nosso mandado ser feito....» evidencia-se, sem intuíto depreciativo, essa diferenciação "homem preto" .
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Como nos lembra Magalhães Godinho, na Europa a Peste Negra realmente agravou a crise agrícola, o que levava a «buscar saídas no incremento das actividades comerciais e industriais e em novas culturas de maior rentabilidade» (página 152 da obra citada).
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No caso português tudo indica que a substituição de mão-de-obra do natural da terra pela do escravo importado se apoiou na nova divisão do trabalho suscitada pelo aumento da actividade comercial e relacionada com a ampliação das possibilidades da navegação e das actividades burguesas. A produção agrícola entrara em decadência sendo, assim, menor o contingente de força laboral exigido por essa actividade, ao mesmo tempo que se registrava o crescimento inusitado do comércio e da vida urbana, o que ampliou a divisão do trabalho gerando nos meios urbanos uma surpreendente necessidade de mão-de-obra, como já atrás aludimos, nos serviços urbanos. Somente o recurso ao escravo permitiria obviar a essa situação.
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Tinhorão diz-nos na sua obra quando se operou essa mudança de denominação:
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"Uma das dificuldades de determinação do número de escravos negros africanos entrados em Portugal desde o início do século XV é representada pelo facto de os portugueses terem empregado invariavelmente o termo negro para designar, de forma genérica, todos os tipos raciais de pele morena com quem se relacionavam.
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Ainda no século XIII, ao resumir no Livro V da sua General Estoria as notícias do tempo sobre a Etiópia, já Afonso, o Sábio, informava que «hão os homens daquela terra um color mui negro».
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«Um século depois - observa Tinhorão - , a palavra era usada inclusive como apelido indicador dessa característica de cor escura da pele, como acontecia na corte do mestre de Avis (1385-1433), onde um dos oficiais de sua fazenda - certamente um judeu sefardim - era conhecido por David Negro.»
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A páginas 82 e 83, o referido autor afirma:
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"Portugal, aliás, ia revelar-se não apenas o primeiro país a explorar a força de trabalho escravo, dentro de um projecto de economia mista - resultado da coincidência de interesses do Estado, da nobreza fundiária e administrativa e da burguesia comercial - , mas a empregar o serviço de cativos no seu próprio território praticamente em todas as funções já desempenhadas historicamente por escravos desde a Antigüidade.
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"De facto, e principalmente após o predomínio da importação de negros africanos - os pretos - a partir da segunda metade do século XV, os escravos foram usados pelos portugueses como fornecedores de força de trabalho em empresas agro-industriais (caso da fabricação de açúcar nas ilhas atlânticas); como trabalhadores em obras públicas (desbravamento de matas, aterro de pântanos e construção de prédios); em serviços de bordo em navios; trabalhos portuários de carga e descarga; como remadores de galés e barcos de transporte; vendedores de água (negras do pote) e de peixe; como vendedores ambulantes de carvão; em serviços públicos municipais (remoção dos dejectos domiciliares pelas chamadas negras de canastras); como artesãos (mesteirais); como negros de ganho nas ruas ( ao serviço de senhores particulares); como trabalhadores em lagares de azeite (onde chegavam a mestres); e, ainda, «na cultivação do campo e no serviço ordinário», tal como informaria em 1655 o padre Manuel Severim de Faria nas suas Notícias de Portugal, admirado com o número de escravos empregados na «cultivação da terra» e nos serviços domésticos (actividade em que realmente predominavam e serviam em maior número nas cidades, principalmente em Lisboa)."
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A páginas 153 da sua obra Os Descobrimentos e a Economia Mundial, o nosso antigo professor, no ISEU/UTL, Doutor Vitorino de Magalhães Godinho, conclui:
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« Os portugueses caracterizavam-se pois por possuírem escravagem, que serve - de que se servem para viver. Têm-na por honra - como distinção social, mas também por desprezo do trabalho, que é "para o mouro", que será "para o preto".»
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A verdade é que existe imensa dificuldade em precisar o número de escravos negros entrados em Portugal desde os alvores do século XV, isso porque os portugueses invariavelmente usavam o termo negro para denominar, de maneira genérica, todos os tipos raciais de pele morena com os quais se identificavam. A única forma de identificar um negro como negro africano na verdadeira acepção da palavra, era quando os cronistas, navegadores ou autoridades, em seus escritos, faziam referência a tiópios, ou etíopes, guinéus, ou gentios de determinados pontos de África conhecidos como habitados por naturais africanos, melanodermes.
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«Essa dubiedade - escreve Tinhorão - só iria desaparecer quando, como resultado de um longo processo de observação, o povo passou a denominar o tipo de negro de pele mais escura com o nome da cor que por comparação lhe correspondia na linguagem comum, ou seja, a preta.
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A partir de então, um negro cuja pele fosse tão escura que lembrasse a cor preta começou a ser chamado homem preto e logo, por economia, preto. O termo negro continuaria a constituir, oficialmente, o nome genérico para a gente das mais variadas graduações de cor de pele, a partir do amorenado ou pardo até os tons mais fechados, mas, para o povo em geral, o negro mais caracteristicamente africano passaria a ser sempre o preto.»
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Até aos nossos dias, essa passagem de uma denominação a outra parece conter um enigma para os filólogos, e «isso por tentarem transferir o problema do contexto histórico em que ocorreu a operação semântica para a discussão da etimologia da palavras preto em si»- observa Tinhorão-.
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No início do século XX o lexicólogo brasileiro Alfredo Gomes pretendeu encontrar no verbo latino sperno (desprezar, fazer pouco caso) a origem do adjetivo spretus, a , um, desprezado, excluído, rejeitado e o substantivo spretus, us, desprezo, desdém. Essa proposição preconceituosa foi contestada por outro gramático brasileiro, maranhense, o Professor Hemetério José dos Santos, negro, num pequeno estudo que foi publicado, em 1907, no Almanaque Brasileiro Garnier , no qual aquele estudioso da lusofonia sublinha que « na alta e média antiguidade, o cativeiro não foi opróbio só do negro: todas as raças foram submetidas ao estado servil, e o branco o precedeu nessa dura provação de bravia e encarniçada luta de povo contra povo.» Aquele insuspeito gramático destacou que na língua portuguesa de fins do século XV e princípios do século XVI « já era de uso popular a palavra preto para designar tudo o que fosse da cor do ébano, aplicando-se indistintamente quer aos homens, quer às coisas.»
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Em Física Ótica, o branco resulta precisamente da fusão de todas as cores conseqüente da síntese das radiações luminosas, ao passo que o preto representa a ausência de cor, devida à total ausência de luz.
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Assim, no tocante a diferenciações raciais ou étnicas tudo conduz a supor que se trata de definir oposições: o contrário de branco seria sempre, conceitualmente, o negro, e vice-versa.
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Em livros da Chancelaria de D. Manuel encontrados pelos historiador português Pedro A.d´Azevedo que constam em seu estudo Os Escravos publicado em 1903, no Arquivo Histórico Português, o vocábulo preto, para denominar negro africano, surge em documentos escritos por alturas do início do século XVI, não como substantivo, mas - o que diz muito - como adjetivo qualificativo simples: homem preto, escravo preto, mulher preta, escrava preta. Numa declaração do próprio rei D. Manuel I, datada de 22 de Maio de 1501, fazendo forro, ou seja, livre, um velho escravo recebido por herança de seu pai D. João, que falecera em 1495, aos 77 anos de idade, e na qual dispõe: «....Dom Manuell etc.
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A quantos esta Nossa carta virem fazemos saber que avendo nos Respeito ao muito tempo que há que francisco lourenço homem preto da terra de benym nosso escravo serve . E como ficou del Rey meu senhor que Deus haja E queremdo lhe fazer a graça e merçee Temos por bem E o forramos ora e avemos por forro e livre pra vsar e fazer de sy todo o que lhe aprover daquy em diamte e pera em todollos dias de sua vida sem lhe per nos nem por nosso mandado ser feito....» evidencia-se, sem intuíto depreciativo, essa diferenciação "homem preto" .
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Como nos lembra Magalhães Godinho, na Europa a Peste Negra realmente agravou a crise agrícola, o que levava a «buscar saídas no incremento das actividades comerciais e industriais e em novas culturas de maior rentabilidade» (página 152 da obra citada).
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No caso português tudo indica que a substituição de mão-de-obra do natural da terra pela do escravo importado se apoiou na nova divisão do trabalho suscitada pelo aumento da actividade comercial e relacionada com a ampliação das possibilidades da navegação e das actividades burguesas. A produção agrícola entrara em decadência sendo, assim, menor o contingente de força laboral exigido por essa actividade, ao mesmo tempo que se registrava o crescimento inusitado do comércio e da vida urbana, o que ampliou a divisão do trabalho gerando nos meios urbanos uma surpreendente necessidade de mão-de-obra, como já atrás aludimos, nos serviços urbanos. Somente o recurso ao escravo permitiria obviar a essa situação.
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Portugal Em Linha - Ecmnesia Historica - Por Carlos Mario Alexandrino da Silva
Portugal Em Linha - Ecmnesia Historica - Por Carlos Mario Alexandrino da Silva
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FONTE: Portugal em Linha
1 comentário:
Continuo aprendendo, com muito agrado, sobre esta fase negra de que a hostória não fala.
Maria Mamede
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