domingo, 13 de julho de 2008

A propósito de Chavez e das FARC – a insurgência armada é história, presente e futuro

1507 América. Mapa Universalis Cosmographia em versão colorida


Narciso Isa Conde"Com todo o respeito, com todo o carinho solidário que professei e continuo a professar pela Revolução Bolivariana na Venezuela, com a toda a admiração que tenho pelo comandante Hugo Chavez Frias, decidi, contudo, expressar publicamente o meu desacordo político e conceptual com o seu recente pronunciamento sobre o tema das FARC, da luta armada, da guerra de guerrilhas, da troca de prisioneiros e da paz na Colômbia…"
Narciso Isa Conde* - 15.06.08
.

Com todo o respeito, com todo o carinho solidário que professei e continuo a professar pela Revolução Bolivariana na Venezuela, com a toda a admiração que tenho pelo comandante Hugo Chavez Frias, decidi, contudo, expressar publicamente o meu desacordo político e conceptual com o seu recente pronunciamento sobre o tema das FARC, da luta armada, da guerra de guerrilhas, da troca de prisioneiros e da paz na Colômbia…
.
Sobre este tema, preferia referir-me – como o fiz em meses anteriores – ao Chavez que falou da troca humanitária, da troca de prisioneiros de ambas as partes, da necessidade de reconhecer as FARC como “forças beligerantes”, da impossibilidade de derrotar a insurgência armada pela via militar, das perspectivas de uma saída política do conflito armado na base de diálogos sérios, do carácter do regime de Uribe como instrumento de guerra dos EUA…
.
As declarações de Chavez

.
Contudo, no discurso que estamos a comentar – e que recorre a todos os meios de comunicação do planeta – o comandante Chavez afirma ao novo Comandante em Chefe das FARC, Alfonso Cano, o seguinte:

.

- Que liberte os prisioneiros sem garantias, “a troco de nada”;
- Que a guerra de guerrilhas na América Latina e no Caribe “não está na ordem dia” e que “passou à história”;
- Que as FARC devem desistir desse caminho pois acabariam por servir de “pretexto” para agredir países vizinhos, acusando-os de terroristas e de protecção ao terrorismo e por estarem a desencadear possíveis guerras na região;
- Que devem aceitar negociar de imediato a paz sob o concurso da OEA e dos governos por esta designados.
.
Importância relativa da troca
.
Confesso que para mim o mais questionável das posições de Chavez não é relativo à concessão de liberdade, por conta própria e sem condições, dos prisioneiros e prisioneiras nas mãos das FARC, apesar de ser plenamente válido e justo não pensar este tema em termos unilaterais e sem garantias de segurança para ambas as partes.
.
Aliás, é igualmente bastante discutível aquilo que alguns dizem de ser pior estar preso nas montanhas, em acampamentos guerrilheiros, do que estar na mão de gendarmes que torturam, golpeiam e fazem morrer de fome…
.
Mas isso não é o fundamental, como tampouco é a sugestão de unilateralidade na decisão, dado que um passo deste tipo poderia ser um gesto humanitário necessário e politicamente conveniente num momento apropriado. As próprias FARC actuaram nesse sentido noutras ocasiões, mesmo quando se torna legítimo ficar farto de o outro lado nunca ceder e de golpear cruelmente os intentos de troca de prisioneiros; mesmo quando camaradas de luta e opositores do governo de Uribe passam penúrias terríveis nos cárceres cruéis e imundos e quando são mesmo extraditados como vulgares delinquentes.
.
Quanto às formas de luta

.
Para mim o fundamental tem que ver com o que o comandante Chavez expressou a respeito da impertinência e dos prejuízos da luta armada das FARC e da guerra de guerrilhas no continente.
.
Na verdade as formas de luta não se inventam nem decretam, são necessidades, tornam-se pertinentes, criam-nas os povos, as impulsionam e organizam os revolucionários, desenvolvem-se dentro de determinadas condições.
.
Ao mesmo tempo, é impossível declarar a sua caducidade ou impertinência a partir de uma qualquer tribuna.
.
Portanto, se uma determinada forma de luta – guerrilheira ou não, armada ou não, insurgente ou não – é um dado da realidade, uma luta do presente, não é válido dizer que a mesma “passou à história”.
.
Nenhum método de luta – confirmada a sua eficácia – passa a ser algo simplesmente histórico, apesar de perdurarem as condições que o motivaram; pelo contrário, esse método tem uma reincidência periódica com velhas e novas modalidades. Um método de luta só perde pertinência a partir do momento em que deixem de estar presentes as condições para o seu surgimento ou então num período determinado em que esse método tenha sido derrotado pelo próprio movimento que o colocou anteriormente em prática. Isto ocorre quando se trata de resistências, rebeldias ou de ofensivas irregulares, sobretudo em função das lutas populares.
.
A guerra de guerrilhas é tão antiga como o combate contra a escravidão e tem atravessado a história e o presente continental e mundial. Também outras formas de luta hoje são estigmatizadas pelos novos conquistadores e recolonizadores do continente.
.
Temos também neste capítulo as revoltas sociais e as insurreições urbanas, incluindo os levantamentos militares como aquele que Chavez e outros dirigentes do Movimento Revolucionário Bolivariano encabeçaram.
.

Igualmente pode dizer-se da Venezuela anterior a 1992 que os exemplos dos militares Caamaño e Fernandez Dominguez na República Dominicana, dos oficiais venezuelanos de Carupano e Puerto Cabello, de Torrijos no Panamá, de Velasco Alvarado no Perú e de Torres na Bolívia (todos ocorridos na década de 60 e princípio dos anos 70), que supostamente teriam “passado de moda” ou “passaram à história”.
.
Contudo, isso não foi assim. Recordo, quando esse gigante revolucionário que dá pelo nome de Fidel Castro afirmou que, numa generalização um pouco inadequada no Fórum de São Paulo em 1994 em Havana, o caminho da luta armada estava fechado na América Latina. E passado pouco tempo estalou o levantamento armado indígena em Chiapas, encabeçado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), já para não falar da insurgência armada colombiana que continuava vigente.
.
Recordo também quando o Conselheiro Roberto Robaina e o próprio Fidel, em viagens oficiais à Colômbia, se pronunciaram da mesma maneira, e a insurgência armada nesse país prosseguiu o seu caminho ascendente.
.
Não há receitas, nem tampouco processos idênticos, regulares. Pode haver uma tendência mais ou menos proeminente numa parte dos países do continente, mas isso ocorre sempre dentro de uma significativa diversidade.
.
O presente da insurgência colombiana

.

Na Colômbia há algo mais do que uma “guerra de guerrilhas”. Há uma forte e enraizada insurgência armada predominantemente rural, integrada sobretudo pelas FARC e pelo ELN. As FARC constituem-se como um verdadeiro Exército Popular, com várias dezenas de milhares de guerrilheiros(as) e milicianos(as). As FARC são história, são presente e espera-se igualmente muito futuro, apesar do difícil momento por que passam hoje. Creio que é justa a valorização e certeiro o vaticínio do analista Francisco Herreros quando este afirma:
.
“as FARC não são uma narcoguerrilha terrorista encurralada e impulsionada pela ambição de uma cúpula delirante e obsoleta, como quer fazer crer a intoxicante propaganda oficial. As FARC são um movimento político e militar, representante de um sector específico da sociedade colombiana, como o campesinato expropriado das suas terras, excluído e massacrado dos dezenas de anos de para-militarismo; dotado de um programa político que tem perseguido com particular tenacidade e que em 44 anos de luta construiu o mais parecido que há com um exército popular e alternativo que a história moderna registou.

.

As FARC são um exército popular que nos seus 44 anos de história aprendeu uma táctica de luta que aprendeu a dominar de forma magistral, baseada na mobilidade e no conhecimento do território, táctica herdada directamente da genialidade de Marulanda. É verdade que a morte deste último, paralela à ofensiva ordenada por Uribe, coincide com uma série de reveses sofridos pelas FARC nos últimos tempos, como os assassinatos dos membros do Secretariado, Raul Reyes e Ivan Ríos.

.

Por mais que a confluência destes factores configure, no contexto de uma ofensiva militar que já se prolonga há seis anos e apoiada em recursos económicos quase ilimitados e por um enorme potenciamento da capacidade operativa das forças armadas do Estado, uma das etapas mais críticas da história das FARC, esta não é a primeira nem determina de modo algum a sua derrota. Em termos comparativos, os golpes sofridos nos alvores da sua história, quando ainda estavam a construir a sua experiência de combate, foram bem mais comprometedores.

.

De todas as suas crises, as FARC souberam sempre retirar ensinamentos. Esta não será excepção.”
.
Pertinência da acumulação militar a partir do campo revolucionário

.
Desprezar e abandonar a frente militar acumulado pela insurgência colombiana, para além de ser um acto suicida, equivaleria a facilitar o plano estratégico dos EUA na região, e muito especialmente eliminaria um importante obstáculo à vertente sul-americana da sua guerra global destinada a apoderar-se militarmente de grande parte da Amazónia.
.
As FARC, como força militar e política, devem ser preservadas e desenvolvidas; e o desejável agora não é que incorram no grave erro de uma negociação que leve ao desarmamento e à aceitação da actual ordem institucional. Só a superação das dificuldades actuais, rumo à retomada do seu ritmo de crescimento e expansão pode levar à criação de uma nova Colômbia, uma Colômbi.

.

Isto não tem apenas que ver com o valor específico que tem o seu peso político e militar para a mudança rumo a um novo enquadramento institucional num país onde existe um Estado narco-para-terrorista (com pretensões de sub-imperialismo regional), com um oligarquia feroz e uma intervenção militar estadunidense numa escala crescente. Também temos que olhar – e sobretudo – para o que as FARC podem representar em termos de exemplo e grande capacidade de resistência e sua valiosa experiência na guerra irregular para contrariar, dissuadir e/ou deter o plano de ocupação militar dos EUA na Amazónia e os propósitos estadunidenses e oligárquicos de desestabilização e derrota dos processos transformadores na Venezuela, no Equador e na Bolívia.
.
No norte da América do Sul – vórtice da onda revolucionária regional – o plano de conquista neoimperial dos EUA conta com três grandes obstáculos: 1) as FARC, como as demais forças insurgentes e todos os movimentos políticos e sociais alternativos colombianos; 2) o governo de Chavez e o processo rumo à revolução na Venezuela; 3) o governo de Rafael Correa (Equador) e tudo o que representa.
.
Sou dos que pensam que a existência das FARC dificultou fortemente um plano de intervenção estadunidense contra a Venezuela e contra o Equador. É isso que, no meu entender, explica o empenho de Uribe e dos falcões em Washington para tentarem derrotar militarmente essa grande força insurgente que são as FARC.
.
O debilitar de qualquer uma dessas três forças enfraqueceria todas as demais. A sua unidade, longe dos estigmas e dos preconceitos, é de vital importância para o continente e para toda a região.
.
Pretexto?

.
As FARC não são um simples pretexto para a agressão imperialista capaz de dissolver o perigo com o seu desaparecimento como força político-militar. Nada disso. As FARC são um factor de resistência à ocupação da Colômbia e da Amazónia por forças militares ao serviço dos falcões de Washington. As FARC são uma componente essencial da capacidade potencial que os povos e os Estados soberanos têm para expandir a relação de forças numa guerra assimétrica que poderia impedir o propósito essencial do capital transnacional estadunidense de se apropriar do petróleo, gás, carvão, minerais estratégicos, água e biodiversidade numa das regiões mais ricas do planeta. Agora mesmo as FARC estão a enfrentar uma guerra imperialista de média intensidade, com tendência para aumentar, na Colômbia lá mais para a frente.
.
Os governos da Venezuela, da Bolívia e do Equador, dada a sua autodeterminação e o seu empenho em controlar os seus recursos naturais, estão na mira dessa agressão político-militar, tal como também estão as FARC e todo aquele que na Colômbia represente uma mudança na mesma direcção.
.
Portanto, esta não é uma questão de pretexto, mas uma questão de propósitos e interesses poderosos. Se os imperialistas e seus sócios não pudessem usar as FARC como pretexto, concerteza inventavam outro. No Iraque não havia FARC, mas “armas de destruição maciça”. No Afeganistão não estava Marulanda, mas enviaram-se tropas para capturar a tenebrosa criatura Bin Laden. Na Venezuela não há guerrilha, mas um “grande ditador” que venceu 10 processos eleitorais limpos e perdeu um referendo constitucional. Na Bolívia também não há FARC mas um índio cocalero e uma oligarquia que procura separar os pedaços do país boliviano que controla.
.
E assim sucessivamente até onde chegar o alcance da imaginação dos intelectuais falconistas, não esquecendo o plano conjunto da CIA e de Uribe para assassinar Chavez, antes deste começar a mediar o conflito entre as FARC e o governo, e também um plano arquitectado pelo Pentágono para declarar a independência da província de Zúlia e apoderar-se, desta forma, das suas reservas de petróleo.
.
Entende-se ainda menos esta mudança política por…

.

Antes do comandante Chavez proferir estas inexplicáveis e surpreendentes declarações, teve lugar um conjunto de exercícios e de demonstrações militares destinadas a projectar a disposição e capacidade das Forças Armadas Bolivarianas e do povo da Venezuela para enfrentar uma possível invasão conjunta dos EUA e da Colômbia. Até as habilidades dos aviões Zukoi soaram como uma advertência! Isto indica que a liderança venezuelana tem consciência do pode vir da parte do imperialismo e do sub-imperialismo uribista-santanderista. Por isso entende-se ainda menos esta nova reacção do talentoso e valente presidente da Venezuela relativamente às FARC e no respeitante ao real significado da sua existência como experimentada organização político-militar, portanto, um valioso componente no quadro de uma eventual guerra de resistência popular bolivariana.
.
Porque se a capacidade insurgente do povo e se a extensão da guerra a todo o povo são as únicas garantias de dissuasão e de confrontação com êxito do terrível plano militar intervencionista do Pentágono, convenhamos afirmar que as FARC constituem um dos pilares já experimentados e preparados para abordar semelhante e tremenda situação.
.
Então, porque Chavez considerou as FARC como causa e pretexto da agressão e não como componente da resistência dissuasiva contra ela?
.
Política de Estado versus política revolucionária? Táctica versus estratégia?

.
Penso que nesta mudança de Chavez há algo de danos causados pela preeminência dada à política de Estado como tal, com os seus jogos diplomáticos e manobras tácticas, passando tudo isto por cima das questões centrais e estratégicas de uma revolução que como o próprio Chavez já afirmou, transcende as fronteiras venezuelanas e contempla um único cenário possível: a Grande Pátria latino-caribenha.
.
A elevada presença paramilitar colombiana na Venezuela e no Equador é parte de um plano de infiltração. Este plano aponta na direcção de acções contra-revolucionárias que não poderão ser detidas se se procura distanciar das FARC e acenando com slogans a favor do seu desarmamento e sua desmobilização, algo que por demais afecta e confunde a esquerda revolucionária da região.
.
Importa compreender que o grande obstáculo para uma paz digna e democrática não são as FARC mas o regime de Uribe e os imperialistas estadunidenses que apenas concebem como acordo possível a rendição e desarmamento das organizações revolucionárias e se se garantir a continuidade do Estado oligárquico-dependente e do modelo neoliberal. Se há algo a extrair dos acordos de paz a nível do continente é o prejuízo que resultou para os povos da permanência da institucionalidade tradicional (democrático-liberal representativa) e da permanência e estabilidade do poder permanente tradicional (forças armadas, relações de propriedade oligopólicas e monopolistas, o poder das transnacionais, o latifúndio, as máfias, etc.).
.
A este respeito deve apreender-se a lógica vietnamita: dialogar, negociar, alcançar acordos… mas sem afectar a relação de forças alcançada e sem afectar os propósitos de transformar o país em função dos interesses populares e nacionais. Avançar rumo a uma paz digna e que avance em todos os domínios da luta de classes, patriótica, política e cultural. E se as FARC se decidissem a actuar diferentemente a esta lógica de poder popular estariam a actuar contra si mesmas e contra a sua razão histórica. Eu situar-me-ia entre aqueles que o lamentariam muitíssimo se isso acontecesse.
.
Hoje, face aos sérios perigos e problemas que procuram destruir essa força revolucionária irmã da Colômbia, sinto-me ainda mais solidário do que nunca, precisamente porque sou mais amigo dos meus amigos quando estão em maiores dificuldades e mais necessitam da minha amizade e solidariedade desinteressada.
.
Actuei desta mesma forma com o comandante Chavez quando este decidiu colocar um travão nas altas esferas militares e sofreu uma injusta prisão, bem como durante o intenso, audaz e nobre batalhar por uma nova democracia e um novo socialismo na sua pátria de origem e na nossa pátria grande. O meu contacto com Caamaño em 1965 permitiu-me entender e valorizar esse sentimento de solidariedade na sua real dimensão. Disso não me arrependerei jamais.
.
Não há, portanto, agressão alguma nas minhas palavras e nas minhas críticas face a uma liderança que aprecio e valorizo muito mais. Há convicções sinceras, ideias firmes e palavras fraternas, no quadro de realidades complexas e de situações difíceis, e que são expressas com a certeza de que é do debate franco e do intercâmbio com altura espiritual que permite que daí brote a certeza e a verdade. Que assim seja.

.

9 de Junho de 2008, Santo Domingo, República Dominicana


*Escritor dominicano. Foi secretário geral do Partido Fuerza Revolucionária (comunista )
Tradução de João Valente Aguiar

.

odiario.info

.

.

Sem comentários: