domingo, 13 de julho de 2008

Para aquele que vive nas trevas


monicamo.mentesvoadoras.net

Para aquele que vive nas trevas


por Mark Twain [*]

Mark Twain. William McKinley, candidato republicano às eleições presidenciais de 1900, baseou grande parte de sua plataforma na idéia da responsabilidade dos Estados Unidos pelos territórios então tomados à Espanha. Alegando a necessidade da defesa desses novos territórios, McKinley alertava para a urgência de se acabar com as insurreições armadas nesses locais e, assim, conferir as "bênçãos" da civilização aos povos libertados.
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Twain tratou do assunto neste que é um de seus mais importantes e controvertidos ensaios sobre o imperialismo. Ironizando a idéia da civilização como "bênção" oferecida aos que "vivem na escuridão", ele trata de questões diversas relacionadas ao tema do antiimperialismo: as agressões cometidas na cidade de Nova York sob os auspícios do chefe político de Tammany Hall, Richard Croker, as indenizações cobradas pelos missionários mortos logo após a Rebelião dos Boxers, a política repressora designada como "luva de aço" aplicada pelo kaiser alemão contra a China e as atrocidades cometidas pelos ingleses na África do Sul e pelo Exército dos Estados Unidos nas Filipinas.
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A crítica dirigida por ele aos missionários era constante e cerrada; apesar disso, a estratégia dos missionários de responder apenas aos comentários que lhes diziam respeito contribuiu para que questões como a Guerra das Filipinas e as atividades missionárias na China fossem tratadas como aspectos totalmente diferenciados, o que evidentemente dificultava a percepção crítica do processo imperialista nelas implícito.
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Para Twain tratava-se de problemas análogos. No artigo intitulado "A causa do reverendo doutor Ament, missionário", de 1901, ele afirma não haver diferença entre o missionário, que impõe multas 13 vezes superiores ao preço de uma propriedade danificada pelos boxers, e McKinley, autor de um projeto de "Assimilação benevolente dos filipinos".
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Aqui, como em muitos outros de seus escritos antiimperialistas, a mordacidade e a veia satírica de Twain são responsáveis pela extraordinária eficácia crítica do documento.

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A CAUSA DO REVERENDO DOUTOR AMENT

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Nos Estados Unidos, o Natal vai descer sobre um povo alegre, cheio de esperanças e sonhos. Uma condição que significa satisfação e felicidade. Um ou outro queixoso rabugento talvez encontre uns poucos ouvintes. A maioria vai se perguntar se ele está doente e passar adiante. – New York Tribune, sobre o Natal.
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De The Sun, de Nova York
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Este artigo não pretende descrever as terríveis agressões contra a humanidade cometidas em nome da política em alguns dos distritos mais mal-afamados do East Side. Seria impossível descrevê-las, não há palavras. Mas ele pretende dar à massa de cidadãos mais ou menos despreocupados desta bela metrópole de Nova York uma concepção do caos e da ruína impostos a todo homem, toda mulher e toda criança na mais densamente populosa e menos conhecida das áreas da cidade. Nome, data e local serão fornecidos aos que têm um pouco de fé – ou a qualquer um que se sinta agredido. É simplesmente uma declaração do que foi visto e observado, escrita com total liberdade e sem adornos.
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Tente imaginar, se conseguir, uma área da cidade completamente dominada por um homem, sem cuja permissão não se fazem negócios legítimos nem ilegítimos; onde se incentiva a atividade ilícita e se desencoraja a lícita; onde residentes respeitáveis se trancam à noite atrás de portas e janelas em quartos abafados, num calor de 40ºC, deixando de sair para o lugar onde se pode respirar naturalmente, a varanda; onde mulheres nuas dançam à noite nas ruas e homens carentes de sexo cortam a noite como abutres, em "negócios" que não são apenas tolerados, mas até incentivados pela polícia; onde a educação das crianças se inicia pelo conhecimento da prostituição e as meninas são treinadas apenas nas artes de Frinéia [3] ; para onde se importam meninas educadas com o refinamento do lar americano em pequenas cidades do norte do estado, de Massachusetts, Connecticut e de Nova Jersey, que são mantidas prisioneiras, quase como se trancadas atrás das grades até perderem toda a aparência de mulheres; onde os meninos aprendem a agenciar clientes para as mulheres das casas de má fama; onde existe uma sociedade organizada de homens jovens cujo único fim é corromper moças e oferecê-las aos prostíbulos; onde homens que passam com as esposas pelas ruas são abertamente insultados; onde crianças contraem doenças de adultos e são os principais clientes dos hospitais e dispensários; onde a regra, e não a exceção, é não se punir o assassinato, o estupro, o assalto e o roubo – em resumo, onde o prêmio das formas mais terríveis de vício é o lucro dos políticos.
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A notícia que se segue vem da China e foi publicada no The Sun de Nova York, no último dia de Natal. Os itálicos são meus:

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O reverendo Sr. Ament, da Câmara Americana de Missões no Estrangeiro, acaba de retornar de uma viagem que fez com o fim de cobrar indenizações por danos provocados pelos boxers. Em todos os lugares por onde passou, os chineses foram obrigados a pagar. Segundo ele, todos os nativos cristãos das missões já estão bem providos. Havia 700 sob seus cuidados, mas 300 foram mortos. Cobrou 300 taels por cada um dos assassinados, mais o pagamento de indenizações por toda a propriedade pertencente a cristãos que foi destruída. E multas que chegaram a 13 VEZES o valor a ser indenizado. Esse dinheiro vai ser usado para a propagação da Palavra de Deus.
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O Sr. Ament declara que as indenizações que cobrou são moderadas, se comparadas com o valor recebido pelos católicos, que exigem, além do dinheiro, cabeça por cabeça. Cobram 500 taels por cada católico assassinado. Na região de Wenchiu, 680 católicos foram mortos, e por eles os católicos europeus cobraram 750 mil colares de cobre [4] e 680 cabeças. Durante a conversa, o Sr. Ament se referiu à atitude dos missionários em relação aos chineses. Disse ele:
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"Nego enfaticamente que os missionários sejam vingativos, que eles tenham em geral feito saques, ou que desde o cerco eles tenham feito qualquer coisa que as circunstâncias não tenham determinado. Eu critico os americanos. A luva de pelica dos americanos não é tão boa quanto a luva de aço dos alemães. Trate os chineses com luvas de pelica e eles se aproveitam".

A declaração de que os franceses vão devolver o que foi saqueado pelos soldados franceses provocou muito riso por aqui. Os soldados franceses foram saqueadores mais sistemáticos que os alemães, e a verdade é que mesmo hoje cristãos católicos portando bandeiras francesas e armas modernas estão saqueando aldeias na província de Chili.

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Por sorte, notícias tão alvissareiras nos chegam na véspera do Natal – bem em tempo para que possamos comemorar o dia com alegria e entusiasmo adequados. Nossos espíritos se elevam e inventamos novas brincadeiras: taels ganho eu, cabeça você perde [5] .
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O nosso querido reverendo Ament é o homem certo no lugar certo. O que esperamos de nossos missionários no estrangeiro não é apenas representar por seus atos e pessoas a graça, a bondade, a caridade e o amor de nossa religião, mas que também representem o espírito americano. Os mais antigos americanos são os pawnees . A História de Macallum nos informa que:

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Quando um boxer branco mata um pawnee e destrói sua propriedade, os outros pawnees não se preocupam em caçar aquele, matam qualquer branco que aparecer; também fazem que alguma aldeia branca pague aos herdeiros do pawnee o valor integral do falecido, mais o valor integral da propriedade destruída; e fazem a aldeia pagar, além de tudo isso, 13 vezes [6] o valor da propriedade para constituir um fundo para disseminação da religião pawnee, considerada por eles a melhor de todas para enternecer e humanizar o coração do homem. Consideram também que é verdadeiramente digno e justo que os inocentes paguem pelos culpados, e que é preferível fazer noventa e nove sofrerem a deixar um único culpado sem castigo.

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É explicável a inveja do Sr. Ament em relação a católicos tão empreendedores, que não apenas ganham muito dinheiro por convertido que perdem, mas que, além disso, recebem "cabeça por cabeça". Mas ele deveria se consolar pensando que tudo o que eles coletam se destina aos seus próprios bolsos, ao passo que ele, desprendido, separa míseros 300 taels para tal fim e destina a totalidade das 13 repetições da indenização por perdas de propriedade ao serviço de propagação da Palavra de Deus. Sua magnanimidade conquistou-lhe a aprovação de toda esta nação e há de lhe assegurar a ereção de um monumento. Que ele se satisfaça com tais recompensas. Todos nós o respeitamos por defender corajosamente os colegas missionários dessas acusações exageradas que já começavam a nos inquietar, mas que seu testemunho tanto modificou que já somos capazes de enfrentá-las sem sofrimento. Por ora, sabemos que, mesmo antes do cerco, os missionários não se dedicavam de modo geral aos saques e que, desde o cerco, eles agiram com toda lisura, exceto quando foram pressionados pelas circunstâncias. Proponho-me a organizar a construção do monumento. As contribuições podem ser enviadas para a Câmara Americana; os desenhos devem ser enviados a mim. Os projetos devem enfatizar as 13 reduplicações da indenização e o objeto que justificou sua cobrança; como ornamento, os projetos devem exibir 680 cabeças, dispostas de forma a dar um efeito agradável e belo; quanto aos católicos, sua grande realização merece menção no movimento. Aceito sugestões de lemas, se houver algum que seja pertinente.
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O feito financeiro de extorquir de camponeses miseráveis uma indenização multiplicada por 13 para expiar as culpas de outros, condenando-os assim, e às suas mulheres e aos seus filhos inocentes, à certeza da fome e de uma morte lenta a fim de que o dinheiro arrecadado pudesse ser "usado para a propagação da Palavra de Deus", não perturba minha serenidade, embora o ato e as palavras, em conjunto, concretizem uma blasfêmia tão horrível e colossal que, não tenho dúvidas, jamais se encontrará igual na história desta ou de qualquer outra era. Ainda assim, se algum leigo tivesse realizado o mesmo feito e o justificado com as mesmas palavras, sei que teria tido calafrios. O que também teria ocorrido se eu tivesse realizado o feito e pronunciado eu mesmo as palavras, apesar de o pensamento ser impensável, por mais que pessoas desinformadas me considerem irreverente. Às vezes um pastor ordenado se torna blasfemo. Quando tal acontece, o leigo deixa de competir; não tem a menor chance.
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Temos ainda a garantia emocionada do Sr. Ament de que os missionários não são "vingativos". Vamos esperar e orar para que nunca o sejam, mas guardem a mesma índole quase morbidamente justa e tranqüila que hoje dá tanta satisfação a seu irmão e defensor.
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O trecho que se segue é da edição do New York Tribune da véspera do Natal. Foi escrito pelo correspondente do jornal em Tóquio. Soa estranho e impudente, mas os japoneses ainda são apenas parcialmente civilizados. Quando se tornarem completamente civilizados, não falarão como falam hoje:

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A questão missionária ocupa, evidentemente, lugar de destaque nessa discussão. Entende-se hoje que é essencial que as potências ocidentais reconheçam o sentimento de que invasões religiosas de países orientais por poderosas organizações ocidentais equivalem a expedições de pirataria, que não merecem apenas condenação, mas que exigem medidas enérgicas para serem suprimidas. O sentimento predominante aqui é o de que as organizações missionárias constituem uma ameaça constante às relações internacionais pacíficas.

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Devemos? Ou melhor, devemos continuar a impor nossa civilização aos povos que vivem na escuridão, ou devemos dar um descanso a esses infelizes? Vamos continuar a avançar, no nosso passo antigo, piedoso e ruidoso, e comprometer o novo século com o mesmo jogo, ou vamos antes nos recompor, sentar e repensar? Não seria prudente reunir nossos instrumentos civilizadores e avaliar o estoque que ainda temos, coisas como contas de vidro, teologia, metralhadoras Maxim, hinários, gim e tochas de progresso e luz (ajustáveis, ótimas para incendiar aldeias sem necessidade de preparação), fechar os livros, calcular lucro ou prejuízo para poder decidir racionalmente entre continuar no negócio ou vender os ativos e usar o resultado dessa venda para fundar um novo sistema civilizador?
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Levar as bênçãos da civilização ao nosso irmão que vive na escuridão já foi um bom negócio e rendia bons lucros; ainda hoje é possível ganhar dinheiro, desde que se trabalhe bem – mas não o suficiente, a meu ver, para justificar maiores riscos. Os povos que vivem na escuridão estão ficando raros – raros e retraídos. E a escuridão que ainda existe não é realmente de boa qualidade, pouco escura para essa atividade. Em sua maioria aqueles que vivem nas trevas já receberam mais luz do que precisam e do que é lucrativo para nós. Fomos injudiciosos.
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A Companhia Bênçãos da Civilização, desde que administrada com inteligência e cuidado, é uma bênção. É possível obter ganhos, expressos em dinheiro, territórios, soberania e outros tipos de emolumentos, superiores aos oferecidos por qualquer outro jogo. Mas, na minha opinião, a cristandade não tem jogado bem ultimamente, e com certeza passará a ter prejuízo com ele. Repica com tanta ânsia toda aposta sobre a mesa que aqueles que vivem nas trevas já estão notando; notam e começam a se alarmar. Têm dúvidas quanto às bênçãos da civilização. Mais que isso, passaram a examiná-las cuidadosamente. E isso não é bom. Bênçãos da Civilização é uma boa marca, uma boa propriedade comercial; sob luz mortiça, talvez não haja outra tão boa. Sob a luz correta, e a uma distância adequada, com o produto ligeiramente fora de foco, ela oferece àqueles que vivem nas trevas esta imagem desejável:

AMOR, ORDEM E DIREITO,
JUSTIÇA, LIBERDADE,
BONDADE, IGUALDADE,
CRISTIANISMO, VIDA COM HONRA,
PROTEÇÃO PARA OS FRACOS, CARIDADE,
TEMPERANÇA, EDUCAÇÃO,
e muitas outras.

E este produto é bom? Meu amigo, é uma maravilha. Há de trazer para a luz qualquer idiota na escuridão em qualquer lugar do mundo. Mas não se o adulterarmos. É preciso enfatizar essa questão. Esta marca destina-se exclusivamente à exportação – aparentemente. Aparentemente. Aqui entre nós, em confiança, não é nada disso. Aqui entre nós e em confiança, isso não passa de uma cobertura, alegre, bonita e atraente, que expõe os padrões especiais de nossa civilização que reservamos para consumo doméstico, ao passo que oferecemos realmente o que há no interior do fardo, e que o cliente que vive na escuridão compra com seu próprio sangue. O que há dentro do fardo [7] é realmente civilização, mas apenas para exportação. Existe alguma diferença entre as duas? Em alguns detalhes, certamente há.
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Sabemos todos que este negócio está sendo arruinado. Não é tão difícil perceber as razões. Tudo porque o Sr. McKinley, o Sr. Chamberlain [8] , o kaiser e o czar começaram a exportar o que há no interior do fardo, sem a embalagem. E isso perturba o jogo. Mostra que estes novos jogadores não o dominam suficientemente bem.
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É triste observar e ver os movimentos errados, tão estranhos e desajeitados. O Sr. Chamberlain fabrica uma guerra usando materiais tão inadequados que os camarotes sofrem e a platéia ri, e ele tenta se convencer de que não se trata meramente de uma excursão à caça de dinheiro, mas de algo dotado de uma espécie de respeitabilidade obscura e vaga que ele não consegue perceber, e de que mais tarde ele será capaz de limpar outra vez a bandeira, quando tiver acabado de arrastá-la na lama, capaz de fazer que ela volte a brilhar na abóbada do céu, como brilhou ao longo de mil anos no respeito do mundo, até ele lançar sobre ela sua mão infiel. Isso é jogar mal, muito mal. Pois se expõe o que se esconde no interior da embalagem aos que vivem na escuridão, e eles dizem: "O quê! Cristão contra cristão? E só por dinheiro? Será isso um exemplo de paciência, amor, magnanimidade, bondade, caridade, proteção dos fracos – esse ataque estranho e exagerado de um elefante a um ninho de ratos do campo, sob o pretexto de que os ratinhos o insultaram – uma conduta que 'nenhum governo digno de respeito deixaria passar sem punição', como disse o Sr. Chamberlain? Seria o caso de um bom pretexto para uma causa sem importância, sem ser um bom pretexto para uma grande causa? – pois recentemente a Rússia afrontou o elefante três vezes e sobreviveu sem ferimentos. Será isso a civilização e o progresso? Isso será melhor do que o que já temos? Toda essa destruição, incêndios, desertos criados no Transvaal9 – seria um aperfeiçoamento de nossa escuridão? Seria possível haver dois tipos de civilização, um para consumo doméstico e outro para o mercado pagão?".
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Então aquele que vive nas trevas fica em dúvida, balança a cabeça e lê esse trecho da carta de um soldado britânico, em que ele conta suas aventuras em uma das vitórias de Methuen, alguns dias antes da derrota em Magersfontein , e fica mais uma vez em dúvida:

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Avançamos colina acima e invadimos as trincheiras, e os bôeres viram que estavam perdidos; então eles largaram as armas, caíram de joelhos, levantaram as mãos e pediram clemência. E clemência nós demos a eles. Com as colheres longas.

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A colher longa é a baioneta. Vejam o último Lloyd's Weekly, de Londres. A mesma edição – e a mesma coluna – trazia uma sátira inconseqüente sob a forma de censuras amargas e chocadas aos bôeres por suas brutalidades e desumanidades!
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Em seguida, para prejuízo nosso, o kaiser começou a praticar o jogo antes de dominá-lo. Perdeu alguns missionários numa agitação de rua em Shantung, e para acertar as contas apresentou uma cobrança absurda por eles. A China teve de pagar 100 mil dólares por cabeça, em dinheiro; 19,3 quilômetros de território, com milhões de habitantes e que valem 20 milhões de dólares; a construção de um monumento e de uma igreja cristã, embora o povo da China com certeza fosse se lembrar desses missionários sem precisar desses memoriais dispendiosos. Está tudo errado. Errado, pois aquele que vive nas trevas jamais se deixará enganar. Ele sabe que foi uma cobrança excessiva. Sabe que um missionário é como qualquer outro homem: vale apenas o custo de um substituto, nada mais. É útil, mas um médico também é útil, um delegado, um editor; mas um imperador justo não cobra indenizações de guerra por eles. Um missionário inteligente, diligente, mas obscuro, assim como um editor inteligente, diligente, mas obscuro, valem muito, todos o sabemos; mas não valem a terra. Estimamos o editor, lamentamos sua perda; mas quando ele morre devemos considerar excessiva uma compensação por sua perda composta de 19,3 quilômetros de território, uma igreja e uma fortuna. Quero dizer, ainda que se tratasse de um editor e tivéssemos que pagar indenização por ele. Não é um valor condizente com um editor ou um missionário; pode-se comprar reis por menos. O kaiser fez uma jogada errada. É verdade que ele ganhou; mas também produziu a revolta dos chineses, a rebelião indignada dos patriotas traídos da China, os boxers. Os resultados foram caros para a Alemanha e para outros disseminadores do progresso e das bênçãos da civilização.
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A aposta do kaiser foi paga, mas mesmo assim foi uma jogada errada, pois terá certamente efeito danoso sobre aqueles que vivem nas trevas na China. Eles hão de ponderar o que aconteceu e provavelmente irão dizer: "A civilização é bela e graciosa, pois essa é a sua reputação; mas estará ao nosso alcance? Existem chineses ricos, talvez eles tenham condições; mas essa cobrança não foi apresentada a eles, foi apresentada aos camponeses de Shantung; só eles terão de pagar essa quantia enorme, e eles ganham meros quatro centavos por dia. Será essa civilização melhor que a nossa, mais santa, elevada e nobre? Ou isso seria rapacidade? Quem sabe extorsão? A Alemanha teria cobrado 200 mil dólares aos Estados Unidos por dois missionários, teria brandido a luva de aço na sua cara, enviado navios de guerra e soldados com a ordem: 'Tomem 19,3 quilômetros de território, no valor de 20 milhões de dólares, como pagamento adicional pelos dois missionários e mandem aqueles camponeses construir um monumento aos missionários e uma custosa igreja cristã para que eles não sejam esquecidos'? E depois a Alemanha teria ordenado aos seus soldados: 'Marchem através da América e matem, sem perdão; façam lá da máscara alemã o que representa aqui a máscara do huno, um terror de mil anos; marchem através da grande república e matem, rasgando para passagem de nossa religião ofendida uma estrada que lhe corte o coração e as vísceras'? A Alemanha teria feito a mesma coisa com Estados Unidos, Inglaterra, França ou Rússia? Ou somente com a China, a indefesa – repetindo o ataque do elefante contra os ratinhos do campo? Devemos investir nessa civilização – uma civilização que considerou Napoleão um pirata por ter roubado os cavalos de bronze de Veneza, mas que rouba de nossas paredes os antigos instrumentos astronômicos e pilha como bandidos comuns, ou seja, todos os soldados estrangeiros, com exceção dos da América; e que assalta aldeias aterrorizadas e comunica todo dia o resultado para os jornais felizes da pátria: 'Perdas chinesas, 450 mortos; nossas, um oficial e dois homens feridos. Avançaremos amanhã sobre a próxima aldeia, de onde comunicaremos um massacre '. Temos recursos para investir em tal civilização?".
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Depois foi a vez de a Rússia entrar no jogo e jogar insensatamente. Afronta a Inglaterra uma ou duas vezes – observada por aquele que vive nas trevas; com a assistência moral da França e da Alemanha, ela rouba do Japão uma presa de guerra duramente conquistada, encharcada no sangue chinês – Port Arthur –, mais uma vez observada por aquele; então ela toma a Manchúria, ataca suas aldeias e afoga o grande rio com cadáveres inchados de incontáveis camponeses massacrados – ainda observada por aquele assustado. E talvez ele diga para si mesmo: "É mais uma potência civilizada, trazendo numa das mãos a bandeira do Príncipe da Paz e na outra a cesta de pilhagem e uma faca de açougueiro. Existirá outra salvação para nós ou teremos de adotar a civilização e descer até o seu nível?". Em seguida vêm os Estados Unidos, e o nosso Mestre do Jogo joga mal, como jogou o Sr. Chamberlain na África do Sul. Foi um erro; mais que isso, foi um erro inesperado de um mestre que vinha jogando tão bem em Cuba. Em Cuba ele estava praticando o jogo americano normal e estava ganhando, pois não havia como derrotá-lo. O mestre olhou para Cuba e disse: "Eis uma nação oprimida e sem amigos, disposta a lutar para conquistar a liberdade; vamos nos associar a ela e colocar a força de 70 milhões de simpatizantes e os recursos dos Estados Unidos: jogue!". Ninguém além da Europa combinada teria condições de repicar, e a Europa não se combina em torno de nada. Em Cuba ele estava seguindo nossas grandes tradições de uma forma que nos enchia de orgulho, dele e da profunda insatisfação que sua jogada provocou na Europa continental. Movido por uma grandiosa inspiração, ele gritou aquelas palavras emocionadas que declaravam ser a anexação forçada uma "agressão criminosa" e, ao dizer isso, "disparou mais um tiro ouvido por todo o mundo". A lembrança daquela declaração magnífica não será superada por nenhuma outra lembrança de ato seu, a não ser pelo fato de, passados meros 12 meses, ele tê-la esquecido e à promessa solene que a acompanhou.
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Pois, logo em seguida, veio a tentação filipina. Era forte; forte demais, e ele cometeu um erro grave: começou a jogar o jogo europeu, o jogo de Chamberlain. Foi uma tristeza; aquele erro foi uma tristeza muito grande; aquele erro terrível, irremediável. Pois aqueles eram a hora e o lugar de jogar mais uma vez o jogo americano. E sem custos: grandes ganhos, ricos e permanentes; indestrutíveis; uma fortuna a ser transmitida para sempre aos filhos da bandeira. Não a terra, não o dinheiro, não a dominação; não, algo que valia muitas vezes mais que essa escória: nossa participação, o espetáculo de uma nação de escravos havia muito perseguidos e atormentados que se libertaria por nossa influência; a cota da nossa posteridade, a lembrança daquele belo feito. O jogo era nosso. Se tivesse sido jogado de acordo com as regras americanas, Dewey [10] teria zarpado de Manila logo depois de derrotar a esquadra espanhola, depois de fincar na praia um sinal de garantia de toda propriedade e toda vida estrangeiras contra agressão pelos filipinos, e um aviso às potências que qualquer interferência com os patriotas emancipados seria considerada um ato hostil aos Estados Unidos. As potências são incapazes de se combinar, nem mesmo em torno de uma causa que não seja boa, e o sinal teria sido respeitado.
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Dewey teria ido tratar de outros problemas, deixando ao competente exército filipino a tarefa de liquidar por inanição a pequena guarnição espanhola e mandá-la de volta para casa, e os cidadãos filipinos criariam a forma de governo que preferissem, tratariam os frades e suas aquisições duvidosas de acordo com as idéias filipinas de eqüidade e justiça – idéias que já foram testadas e consideradas de ordem igual às das que predominam na Europa e na América.
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Mas jogamos o jogo de Chamberlain, e perdemos a oportunidade de acrescentar outra Cuba e outro feito de honra à nossa história.
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Quanto mais estudamos esse erro, mais percebemos suas más conseqüências para os negócios. Aquele que vive nas trevas com certeza há de dizer: "Aqui há algo curioso e inexplicável. Só pode ter havido duas Américas: uma que liberta os cativos e outra que toma dos cativos recém-libertados a sua liberdade, briga com eles sem qualquer razão aparente e depois os mata para lhes tomar a terra".
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Na verdade, aquele que vive nas trevas está realmente dizendo coisas semelhantes; em nome dos negócios, temos de convencê-lo a olhar de maneira mais saudável a questão filipina. Precisamos organizar suas idéias. Acho que isso é possível; pois o Sr. Chamberlain organizou as idéias inglesas sobre a questão sul-africana de uma maneira muito inteligente e bem-sucedida. Apresentou os fatos – alguns deles – e mostrou àquele povo confiante o que significavam. Isso foi feito estatisticamente, a melhor forma de fazê-lo. Ele usou a fórmula "2 X 2 = 14 e 9 – 2 = 35". Os números não falham; os números convencem os eleitos.
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Mas o meu plano é ainda mais ousado que o do Sr. Chamberlain, apesar de parecer uma cópia do dele. Vamos ser mais francos que o Sr. Chamberlain; vamos apresentar todos os fatos, sem ocultar nenhum, e depois os explicamos de acordo com a fórmula do Sr. Chamberlain. Essa sinceridade corajosa há de perturbar aquele que vive nas trevas, e ele vai aceitar a explicação antes que sua visão mental tenha tido tempo de entendê-la. Eis o que lhe diremos:
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"Nossa explicação é simples. No dia 1º de maio, Dewey destruiu a frota espanhola. Isto deixou o arquipélago nas mãos de seus proprietários legítimos, a nação filipina. Tinham um exército de 30 mil homens e conseguiriam liquidar a pequena guarnição espanhola, então o povo organizaria um governo criado por ele próprio. Nossas tradições determinavam que Dewey fincasse um sinal de aviso e partisse. Mas o Mestre do Jogo imaginou outro plano – o plano europeu. Agiu de acordo com ele. Era o seguinte: enviar um exército – ostensivamente para ajudar os nativos patriotas a dar o toque final na sua longa e corajosa luta pela independência, mas na verdade para lhes tomar a terra. Ou melhor, em nome do progresso e da civilização. O plano se desenvolveu, estágio por estágio, satisfatoriamente. Fizemos uma aliança militar com os filipinos confiantes e eles cercaram Manila por terra, e com sua valiosa ajuda o lugar, com sua guarnição de 8 mil ou 10 mil espanhóis, foi tomado – o que àquela época não teríamos conseguido sem ajuda. Conquistamos sua ajuda pela esperteza. Sabíamos que eles estavam lutando por sua independência, e já lutavam havia dois anos. Sabíamos que eles acreditavam que estávamos participando de sua honrosa causa – como havíamos ajudado os cubanos a lutar pela independência de Cuba – e deixamos que eles continuassem a acreditar. Até o momento em que Manila se tornou nossa e pudemos prosseguir sem eles. Então abrimos o jogo. É claro que eles ficaram espantados – era natural; surpresos e desapontados; desapontados e magoados. Para eles tudo aquilo era anti-americano, não-característico, contrário às nossas tradições estabelecidas. O que também era natural, pois estávamos jogando o jogo americano apenas para a platéia – na verdade era o jogo europeu. Foi muito bem executado, com perfeição, e eles ficaram perplexos. Não conseguiam entender; tínhamos sido tão amigos – até afetuosos – daqueles patriotas simplórios! Nós próprios havíamos trazido do exílio seu líder, seu herói, sua esperança, seu Washington – Aguinaldo; nós o trouxemos num navio de guerra, com todas as honras, sob o abrigo e a hospitalidade sagrados da bandeira; nós o trouxemos e o devolvemos ao povo, e conquistamos sua gratidão eloqüente e comovida. É verdade, fomos amigos deles, e os encorajamos de tantas formas! Emprestamos armas e munições, oferecemos assessoria; trocamos cortesias com eles; deixamos nossos doentes e feridos sob seus cuidados; confiamos nossos prisioneiros espanhóis às suas mãos honestas e humanas; lutamos com eles ombro a ombro contra o 'inimigo comum' (frase nossa); elogiamos sua coragem, elogiamos seu heroísmo; elogiamos sua bondade, sua conduta correta e honrosa; usamos suas trincheiras, suas posições reforçadas, que eles haviam antes tomado aos espanhóis; nós os mimamos, mentimos para eles ao proclamar oficialmente que nossas forças de mar e terra vinham para lhes dar a liberdade e para expulsar o cruel Governo Espanhol; ludibriamo-los, usamo-los até não precisar mais deles; então desprezamos a laranja chupada e a jogamos fora. Mantivemos as posições que lhes tomamos pela trapaça; mais tarde avançamos e anexamos o território dos patriotas – uma idéia inteligente, pois precisávamos de uma revolta, e isso iria gerar uma. Um soldado filipino, cruzando o terreno onde ninguém tinha o direito de o impedir, foi abatido por uma de nossas sentinelas. Os patriotas, confusos, reagiram com armas, sem esperar para saber se Aguinaldo, que estava ausente, teria ou não aprovado. Aguinaldo não aprovou, mas de nada adiantou. O que queríamos, em nome do progresso e da civilização, era o arquipélago, sem o estorvo de patriotas que lutam pela independência; precisávamos da guerra. Agarramos a oportunidade. Foi mais uma vez a história do Sr. Chamberlain – pelo menos na motivação e na intenção; e jogamos tão bem quanto ele".
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Neste ponto de nossa declaração franca dos fatos para aquele que vive nas trevas, deveríamos lhe oferecer um brinde sobre o tema das bênçãos da civilização – para variar e para elevação de seu espírito – e depois continuar com nossa história:

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Depois que nós e os patriotas capturamos Manila, a propriedade da Espanha sobre o arquipélago e sua soberania sobre ele chegaram ao fim – obliteradas, aniquiladas, nenhum vestígio de qualquer das duas. Foi então que imaginamos essa idéia divinamente engraçada de comprar da Espanha os dois espectros! [Não há risco em confessar este fato àquele que vive nas trevas, pois nem ele, nem ninguém vai acreditar.] Ao comprar os dois espectros por 20 milhões de dólares, assumimos também responsabilidade sobre os frades e seus bens acumulados. Creio que também contratamos a disseminação da lepra e da varíola, mas quanto a isso ainda há dúvidas. Mas não tem importância: pessoas que já sofrem com os frades não se importam com outras doenças. Ratificado o tratado, Manila conquistada e garantidos os nossos espectros, Aguinaldo se tornou inútil, bem como os donos do arquipélago. Forçamos uma guerra e desde então estamos caçando o antigo hóspede e aliado dos Estados Unidos por florestas e pântanos.

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Neste ponto da história, seria bom vangloriarmo-nos de nossa guerra e de nossos heroísmos no campo de batalha, para tornar nossos feitos tão belos quanto os dos ingleses na África do Sul; mas acredito que não seja aconselhável exagerar nessa ênfase. É preciso cautela. Evidentemente será necessário ler para o homem os telegramas de guerra, para manter a franqueza do nosso relato; mas seria bom que lhes déssemos um tom bem-humorado, que deverá aliviar um pouco a sua eloqüência soturna e as exibições indiscretas de sangrenta exaltação. Antes de ler para ele os títulos destes despachos de 18 de novembro de 1900, seria bom ensaiar sua leitura, para colocar neles o tom correto de leveza e graça:
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ADMINISTRAÇÃO ESGOTADA PELO PROLONGAMENTO DAS HOSTILIDADES!
GUERRA DE VERDADE ESPERA OS REBELDES FILIPINOS!
ADOTADO O PLANO KITCHENER! [11]
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Kitchener sabe bem como tratar essa gente desagradável que luta por seus lares e liberdades, e é preciso deixar vazar que estamos apenas imitando Kitchener, e que não temos interesse nacional na questão, além de granjear a admiração da Grande Família de Nações, em cuja augusta companhia o Mestre do Jogo adquiriu para nós um lugar na última fila.
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É claro que não podemos esquecer os relatórios do general McArthur – oh! Por que essas coisas embaraçosas sempre são publicadas?
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– e deixar escorrer da língua, en passant, e assumir os riscos:

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Durante os dez últimos meses, nossas perdas montaram a 268 mortos e 750 feridos; as perdas filipinas, 3.226 mortos, e 694 feridos.

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Temos de estar preparados para segurar aquele que vive nas trevas, pois é provável que ele desmaie diante dessa confissão, dizendo: "Meu Deus, aqueles 'negros' cuidam dos prisioneiros feridos e os americanos os massacram!".
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Ele deverá ser reanimado, convencido, mimado, e devemos assegurar a ele que os caminhos da Providência são os melhores, e que não ficaria bem para nós proclamar os defeitos deles; e então, para demonstrar que somos apenas imitadores, não os inventores, é preciso ler para ele este trecho da carta de um soldado americano para a mãe, publicada no Public Opinion de Decorah, Iowa, em que ele descreve o fim de uma batalha vitoriosa:
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"NÃO SOBROU NENHUM VIVO. SE ALGUM ESTAVA FERIDO, A GENTE LHE ENFIAVA A BAIONETA".
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Depois de relatar para aquele que vive nas trevas os fatos históricos, é preciso reanimá-lo mais uma vez e explicá-los a ele. Devemos dizer-lhe:
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Parece mentira, mas na realidade não é. Pode ter havido mentiras, é verdade, mas foram contadas por uma boa causa. Fomos traiçoeiros, mas foi apenas para que o bem emergisse do mal aparente. É verdade que esmagamos um povo iludido e confiante; atacamos os fracos e sem amigos que confiavam em nós; destruímos uma república ordeira, justa e inteligente; apunhalamos um aliado pelas costas e esbofeteamos o rosto de nosso hóspede; compramos uma mentira de um inimigo que nada tinha para vender; roubamos a terra e a liberdade de um amigo confiante; convidamos nossos jovens a apoiar no ombro um fuzil desacreditado e os obrigamos a fazer o trabalho que geralmente é feito por bandidos, sob a proteção de uma bandeira que os bandidos aprenderam a temer, não a seguir; corrompemos a honra americana e maculamos seu rosto perante o mundo, mas cada detalhe visava o bem. Disso temos certeza. Todo chefe de Estado e soberano em toda a cristandade, 90% de todos os corpos legislativos da cristandade, inclusive o nosso Congresso e as assembléias legislativas de 50 estados são membros não apenas da igreja, mas também da Companhia Bênçãos da Civilização. Esta acumulação mundial de moral treinada, de altos princípios e de justiça, não tem capacidade de cometer um único erro, de realizar um ato injusto, uma única coisa não-generosa, uma única coisa que não seja imaculada. Ela sabe do que se trata. Não se apoquente; está tudo bem.
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Ora, basta isso para convencer um homem. Os senhores verão. Isto há de recuperar os negócios. Será também suficiente para eleger o Mestre do Jogo para o lugar vago na Trindade de nossos deuses nacionais; e lá, do alto de seus tronos, os três hão de se sentar, era após era, às vistas do povo, cada um trazendo o emblema de seu serviço: Washington, a espada do libertador; Lincoln, as correntes partidas dos escravos; o Mestre, as correntes restauradas.

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Tudo isto há de dar um forte impulso aos negócios. Os senhores verão.
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Tudo agora é prosperidade; tudo está como sempre quisemos que estivesse. Temos o arquipélago e nunca o perderemos. Temos também razões para esperar que em breve teremos uma oportunidade de nos livrar do contrato congressional com Cuba e de oferecer a ela algo melhor. É um país rico, e muitos de nós já começam a perceber que aquele contrato foi um erro sentimental. Mas é agora – exatamente agora – o momento de iniciar o lucrativo trabalho de reabilitação – trabalho que vai nos enriquecer, facilitar nossa vida e acabar com os boatos. Não podemos esconder de nós mesmos que, no íntimo, nossa farda nos preocupa. É um de nossos orgulhos; está acostumada à honra, aos grandes e nobres feitos e, assim, vê-la envolvida nessa atividade nos desagrada. E nossa bandeira – outro de nossos orgulhos, o principal! Nós a adoramos tanto; e depois de vê-la em terras distantes, vê-la inesperadamente em céus estranhos, ondulando a nos saudar e bendizer, prendemos a respiração, descobrimos a cabeça e ficamos sem fala durante um momento, a pensar no que ela era para nós e nos grandes ideais que representava. É verdade. É preciso resolver essas dificuldades; não podemos manter nossa bandeira no estrangeiro, nem a nossa farda. Elas já não são necessárias lá; vamos trabalhar de outra forma. No que se refere à farda, a Inglaterra já achou uma solução; logo, nós também encontraremos. Teremos de enviar soldados – é inevitável –, mas é possível disfarçá-los. É o que a Inglaterra está fazendo na África do Sul. Até mesmo o Sr. Chamberlain se orgulha do honroso uniforme da Inglaterra; então o exército que está lá usa um disfarce feio e odioso, feito de um tecido amarelo igual ao material das bandeiras de quarentena que são usadas para afastar os sãos das doenças imundas e da morte repulsiva. É um tecido chamado Kakhi. Poderíamos adotá-lo. É leve, confortável, grotesco e engana o inimigo, que não consegue imaginar que um soldado se oculte dentro dele.
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Quanto à bandeira da província filipina, é um problema de fácil solução. Faremos uma bandeira especial – como já fazem os estados: será igual à nossa bandeira, com as listas brancas tingidas de preto e as estrelas substituídas pelo crânio e as tíbias cruzadas.
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E lá não vamos precisar de uma comissão civil. Como não tem poderes, ela terá de inventá-los, e esse tipo de trabalho não é para qualquer um; é preciso um especialista. Mas não necessariamente o Sr. Croker. Não queremos os Estados Unidos representados lá, somente o jogo.
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Com os reparos sugeridos, progresso e civilização terão um boom naquele país capaz de absorver todos aqueles que vivem nas trevas, e poderemos retomar o ritmo normal dos negócios.

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Notas

3. Frinéia: bela e audaciosa cortesã grega do século IV a.C.. Levada a julgamento em Atenas por impiedade, foi despida por seu advogado diante dos juízes e, assim, imediatamente absolvida.

4. Havia na China o costume de amarrar moedas de cobre, que eram vazadas, formando colares. Isto facilitava o manuseio do dinheiro, os pagamentos e recebimentos. (N. T.)

5. Em inglês o jogo da cara ou coroa tem o nome heads or tails, efígie ou o reverso, o que permite o trocadilho. (N. T.)

6. O editorial sem título publicado no The Public de 12 de fevereiro de 1901 menciona as críticas feitas pelo Dr.Wyland Spalding a Mark Twain devido às afirmações a respeito deste episódio: segundo Spalding, "13 vezes" teria sido fruto de um equívoco do telegrafista, que teria transmitido esse número em vez de "1/3" (um terço). Apesar de reconhecer que Twain havia feito posteriormente uma retratação e mencionado o erro, Spalding sentiu-se mais seriamente ofendido pelo fato de Twain, em sua retratação, haver inquirido ainda com maior pertinácia, em nome de que lei ou de que moral o missionário coletou algo de pessoas que não haviam causado qualquer dano a quem quer que fosse, indagando também qual seria a diferença entre uma extorsão doze vezes maior e uma um terço maior. Em claro apoio a Twain, o jornal afirma que o Sr. Spalding poderia ter-lhes dado maior satisfação em responder a essas perguntas do que ao denunciar Twain e acusá-lo de indecente e mal-educado.

7. A idéia de "fardo" aqui remete ao poema "O fardo do homem branco" ("White man's Burden"), de Rudyard Kipling, publicado no McClure Magazine no dia 12 de fevereiro de 1899. A guerra filipinoamericana havia começado oito dias antes e o Tratado de Paris seria ratificado dois dias depois da publicação, o que o situa num momento particularmente significativo da expansão imperialista e, ao mesmo tempo, de atuação da Liga Antiimperialista nos Estados Unidos. Embora no poema estivessem mescladas as louvações ao império e as advertências acerca dos custos que ele implicava, os próprios imperialistas interpretaram a expressão "fardo do homem branco" como um eufemismo para o imperialismo e uma justificação implícita da política imperialista como uma empreitada nobre e altruísta. Rapidamente os antiimperialistas responderam por meio de paródias do poema, tendo como foco o novo conflito nas Filipinas e a hipocrisia dos que o defendiam e desejavam ocultar os interesses econômicos, políticos e militares nele envolvidos. Para os antiimperialistas, o "fardo" verdadeiro era o dos trabalhadores dos Estados Unidos. Em 1901, após dois dias de terríveis batalhas nas Filipinas, Twain indagava: "O fardo do homem branco" foi cantado, mas quem cantará o do Homem de Cor?". O conceito de "fardo do homem branco" se fez presente novamente em período posterior, a propósito das intervenções norte-americanas nas Américas e no decorrer da Primeira Guerra Mundial.

8. Joseph Chamberlain, 1836-1914. Político britânico reformista e membro do Parlamento por Birmingham. Foi secretário de assuntos coloniais durante o governo conservador de Salisbury, sendo responsável pelas relações com as repúblicas bôeres na época em que irrompeu a Guerra dos Bôeres, em 1899. Foi uma das figuras mais representativas da política externa britânica desse período.

9. Região localizada na porção nordeste da África do Sul além do rio Vaal, atualmente faz fronteiras com a Suazilândia, o Zimbábue e Botswana. No século XIX a descoberta de ouro atraiu um grande número de exploradores e aventureiros britânicos. Durante a Guerra dos Bôeres, a estratégia de atear fogo às matas e fazendas difundiu-se como meio de forçar os bôeres a deixar seus refúgios.

10. O comodoro George Dewey é considerado um herói da Guerra Hispano-Americana, por ter derrotado a frota espanhola no Pacífico. Deu início à Batalha de Manila às seis horas da manhã do dia 1º de maio de 1898, e com uma frota de seis navios (onde se incluía a nau capitânia Olympia) em seis horas pôs a pique todos os navios da armada espanhola.

11. Militar inglês, foi comandante em chefe das tropas inglesas durante a Guerra dos Bôeres. Entre suas táticas estava o incêndio de fazendas e a transferência de mulheres e filhos dos bôeres para campos de concentração infectados. (N. T.)

[*] Mark Twain escreveu "Para aquele que vive nas trevas" em 1901. A obra está contida no livro "Patriota e traidores: anti-imperialismo, política e crítica social", Ed. Fundação Perseu Abramo, S. Paulo, 2003, ISBN 85-86469-81-5. Pode ser descarregada gratuitamente em http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/index.php?storytopic=1706 (PDF, 1988 kB).

Esta obra encontra-se em http://resistir.info/ .

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