sexta-feira, 8 de junho de 2012

Fernando Namora - Domingo a Tarde

.

PANORAMA


10/08/2007


FERNANDO NAMORA - Domingo à Tarde





por Pedro Luso de Carvalho

Fernando Namora nasceu em 15 de abril de 1919, em Condeixa, Portugal, tendo-se formado em Medicina na Universidade de Coimbra. Em 1937 fez sua estréia nas letras com o livro de poemas Relevos e o romance Sete partidas do mundo. Em 1940 e 1941 publicou mais dois livros de poesia, Mar de Sargaço eTerra. Em 1959 sua obra poética foi reunida no livro As frias madrugadas. Em 1969 lançou Marketing, outro livro de poesia.


Fogo na Noite Escura (1943) foi o primeiro grande romance de Fernando Namora. A seguir publicou: Casa de Malta, novela, 1945; Minas de São Francisco, romance 1946 (Prêmio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa); Retalhos da vida de um médico (1ª série, em 1949 – Prêmio Vértice; as narrativas da 2ª série foram editadas em 1963); A noite e A madrugada, romance, 1950; Deuses e Demônios da Medicina, biografias romanceadas (1ª versão em 1952, 2ª versão em 1963, dois volumes); O trigo e o joio, romance, 1954; O homem disfarçado, romance, 1957; Domingo à tarde, romance, 1961 (Prêmio José Lins do Rego); Esboço Histórico do Neo-Realismo, ensaio, 1961; Aquilino Ribeiro apresentação e coordenação, 1963; Diálogo em setembro, crônica romanceada, 1968; Um sino na montanha, Cadernos de um escritor, 1971, e os Clandestinos, romance, 1972.


Fernando Namora tem seus livros traduzidos para o castellano, catalão, francês, inglês, alemão, italiano, romeno, checo, russo, esperanto, sueco, holandês, búlgaro etc. Fogo na noite escura é o oitavo livro de Fernando Namora editado no Brasil.


Domingo à tarde foi o primeiro livro que li de Fernando Namora; após a leitura desse romance saí em busca de outras obras do autor, e descobri Retalhos da vida de um médicoA noite e a madrugada e Fogo na noite escura.


Em Domingo à tarde, Fernando Namora conta em uma história densa; o tratamento que dá às personagens deixa transparecer uma sensibilidade incomum; as abordagens que faz sobre a miséria humana, miséria essa que o cerca no seu dia-a-dia no hospital, no qual exerce sua profissão de médico. O escritor sabe lidar com os sentimentos mais íntimos das personagens que povoam esse ambiente, impregnado de dor, de angústia, de esperança e de desesperança. Demonstra ter um profundo conhecimento da alma humana, e faz com que o leitor se torne cúmplice das suas personagens; desperta no leitor um forte sentimento de compaixão e solidariedade pelos seus infortúnios, sentimentos esses que se mesclam com um traço de culpa, como se quem o lê também seja responsável por todo o caos social que passa a permear a sua narrativa. Melhor que falar, é mostrar um trecho do romance Domingo à tarde:


“A minha insociabilidade seria, pois, uma estratégia. De qualquer dos modos, fui conquistando regalias de exceção, que me permitiam escolher os doentes, espantando do hospital as tais baronesas histéricas e desocupadas, vindas ali se exercitar com as intimidades da consulta, os neuróticos, os maricas e toda essa legião de exploradores dos serviços de assistência médica gratuita, compadres ou compadres dos nossos amigos, para quem o nosso trabalho era, ao fim e ao cabo, uma mercê que, por intermédio deles, da sua sacrificada generosidade, nos fosse concedida. Ficavam-me os pobres, submissos e aterrados, os que pressentiam o desfecho como um castigo misterioso, telúrico, de que não se podia fugir, e me procuravam quase sempre apenas para ouvir uma palavra de conforto que em toda a parte lhes era negada, uma mentira mais, e pareciam rogar desculpas do seu próprio sofrimento. Esperavam de mim, cúmplice da doença, da morte ou de suas ilusões, não as drogas, em que já nem acreditavam, mas uma espécie ambígua de solidariedade que os fizesse sentir apoiados até por quem estivesse ao lado do executor no minuto final; ou mesmo a solidariedade do carrasco e da vítima quando o mundo se fecha sobre os dois. Mentiras era o que me pediam, sempre mentiras, logros mendigados de mão estendida.


Sendo eu o tal sujeito bruto, de palavras aceradas, parecia estranho que eles me escolhessem entre os demais coveiros, embora nunca os tivesse seduzido com a minha compaixão. Vinha, no entanto, eles e as famílias, estabelecendo uma pertinaz e surda ronda a todos os meus passos. Eram cavalos viciados no chicote. Cavalos que mantinham de pé, por tenacidade e não por orgulho, a sua agonia. Talvez a minha dureza lhes soubesse a verdade. Talvez a preferissem às palavras embuçadas, aos afagos corrompidos, que deixam o travo duma fraude maior ainda”.


Aí está, pois, um pouco do talento desse escritor português. Depois de ler seu texto, como não concordar com o que diz Fernando Mendonça: Ler um texto de Fernando Namora é volvermos os olhos para imutável perfeição clássica da nossa língua. A sua elasticidade, o seu equilíbrio e simultaneamente as sua largas pinceladas impressionistas fazem desse texto uma lição permanente da língua portuguesa.



"Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve", Vergílio Ferreira, Escrever
"A sociedade dissimula-nos a nós próprios; somos forçados a reprimir os impulsos verazes; por isso, creio que apenas uma prova violenta, cruel, nos poderá evidenciar a insuficiência da nossa comunicação com os demais e libertar-nos desse impiedoso inimigo que é a solidão"

"Que eram as pessoas? Ilhas. Ilhas isoladas e um braço estendido, a fazer de ponte, por onde se esperava que passasse alguém.

(...)

E em tudo isso eu meditava, roendo-me, estirado na cama à espera do sono, os olhos a arder numa espertina que deformava o tempo e as imagens que o povoavam. E nem a presença física de Clarisse, ali à beira, me era nítida. Nem os sapatos e as roupas espalhadas pelo quarto... Mais nítida era a ideia de um destino, e não a de um corpo. E, de quando em quando, num súbito grito do cérebro e dos músculos, eu tacteava-lhe a face, os cabelos, os braços, para que esse destino e esse corpo e os nadas que testemunhavam a nossa existência em comum fossem uma unidade, para ficar certo disso e ainda de que ela estava realmente ao meu lado - e viva. Tacteava-lhe o ofegar lento, vegetativo, da carne - e os meus dedos intimavam-na a viver."

(...)

E encostada a mim, oferecendo o corpo como escudo, teve, de súbito, um gesto tão feminino, tão humilde, que, por muito que eu o evitasse, me enterneceu: ela descalçara os sapatos, atirara-os para longe e dissera, apertando-me sempre:

-Assim está mais certo. Fico mais pequenina junto de ti. Do meu verdadeiro tamanho.

Do seu verdadeiro tamanho: uma pobre coisa exposta às ressacas do meu temperamento.


Publicada por Publicada por 

A Óptica Psicológica e Filosófica em Domingo à Tarde:

Freud, Platão e Machado de Assis explicam a psicopatologia de Jorge.

Fernando Namora, através do romance Domingo à Tarde, aborda os sentimentos mais íntimos dos seres humanos. Suas personagens são a encarnação de sentimentos como: dor, esperança, desesperança e angústia. Durante a narrativa percebe-se o jogo psicológico que o médico Jorge trava com seus pacientes, um jogo cruel que incomoda o leitor durante toda primeira parte do romance. Por outro lado, as mazelas dos pacientes nos trazem, também, a solidariedade, ou seja, a um só tempo, nos tornamos confessor e carrasco do médico Jorge.
.
Percebemos que a acidez do médico, em seus atos e palavras, deriva de um modelo psicopatológico do ser insociável, que Freud definiu em seu livro, Psicopatologia da Vida Cotidiana.

Jorge usa a ironia, o desdém e, principalmente, o afastamento como uma blindagem para não demonstrar seus sentimentos. Segundo a teoria freudiana, Jorge seria caracterizado por uma mistura de dois tipos: o “Oral Sadístco” e o “Anal Sadístco”. Estes tipos têm como características não esperar que alguém lhe dê voluntariamente qualquer coisa; decide-se a empregar a astúcia para conseguir o que deseja, normalmente é um explorador dos sentimentos alheios e é algumas vezes agressivo. Age impulsivamente, sua segurança reside no isolamento; estes tipos são muitas vezes metódicos e obstinados. Uma das passagens do livro corrobora com esta afirmação: “A minha insociabilidade seria, pois, uma estratégia…”. Logo em seguida, em outra passagem, Jorge diz: “Ficavam-me os pobres, submissos e aterrados, os que pressentiam o desfecho como um castigo misterioso, telúrico, de que não se podia fugir, e me procuravam quase sempre apenas para ouvir uma palavra de conforto que em toda a parte lhes era negada…”.

Em Ion e Hípias MenorPlatão usa uma personagem sofista, detentor de grande conhecimento, para falar sobre a mentira e a persuasão, ao desenrolar das idéias, Sócrates –personagem da história, utiliza o conhecimento e as palavras das pessoas para convencê-lás do contrário, ou seja, demonstra através de seu conhecimento que elas estavam erradas sobre aquilo que julgavam ter pleno conhecimento. Além disso, denota a seguinte questão: a consciência da própria ignorância é o caminho para a sabedoria. Consecutivamente a mentira é assim uma pequena parte da verdade, isto é, aquele que mente tem consciência e conhecimento da verdade, mas muitas vezes as nega.
.
Jorge usa seus conhecimentos médicos e sua óptica da vida para persuadir seus pacientes e assim acaba por tratar a mentira de maneira lacônica: “Mentiras era o que me pediam, sempre mentiras, logros mendigados de mão estendida”.

A personagem de Jorge deixa de se preocupar com meras conjecturas da sociedade, mas este fato se dá após a morte de Clarisse, como se não houvesse mais razão para preocupações frívolas.
.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o defunto-autor, também deixa de lado preocupações pequenas e com isso passa a falar sobre si, ainda que os comentários fossem denunciá-lo como alguém que teve uma vida fútil e nula, mas isso não o preocupava mais, pois já estava morto.
.
No caso de Jorge não foi sua morte que o fez contar sua história (ou a história de Clarisse) aos leitores de maneira crua, mas a morte de quem amava. Com isso ele não mede as palavras nem sobre si nem sobre as demais personagens: “Mas agora que já comecei e me é urgente pôr cá para fora uns entulhos para melhor os clarificar e esquecer, terei de ir por diante. Não volto a pedir-vos desculpas de ser tão desastrado nestas evocações”. O amor-dependente de Clarisse o salvou da inércia e mostrou que as trivialidades da vida não são apenas monótonas, mas também necessárias.
.
Como em algumas obras machadianas, Domingo à Tarde mostra mulheres fortes, e mostra o fascínio do homem por estas mulheres.
.
Durante o romance, percebe-se que Jorge que menospreza de início todos aqueles que o rodeiam, passa a interessar-se e admirar as atitudes de Lúcia e posteriormente de Clarisse. É claro que essas personagens conquistaram este respeito de maneira lenta, não obstante de maneira sólida.
.
Por fim, percebemos que a Jorge é um destes tipos que encontramos aos montes, que justificam suas atitudes por conta do meio em que vivem. Seguem este caminho até que um agente modificador (amor, morte, vida) esbarre em seu caminho mudando o curso normal de sua vida.

Fernando Gonçalves Namora nasceu em 1919 e faleceu em 1989. Foi um escritor português natural de Condeixa-a-Nova. Na Universidade de Coimbra, licenciou-se em Medicina, que exerceu na sua terra natal e nas regiões da Beira Baixa e Alentejo. Escreveu, romances, contos, poesia, memórias de viagem e crítica. (Aqui teríamos - de acordo com o lugar comum, uma foto do Fernando Namora, mas ele é muito feio, fiquemos apenas com a obra)

 (Denis Silva)

Referências:
FREUD, Sigmund. Psicopatologia da Vida Cotidiana. Volume 6Rio de Janeiro: Editora Imago. 1996.
ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 5ª edição. São Paulo: Editora Cultrix. 1967.

Namora, Fernando. Domingo à tarde. Portugal: Editora Europa-América. 1989
Platão. Íon e Hípias Menor. Floresta: Editora L&PM Pocket.1996


Publicado em http://movimentoculturalgaia.wordpress.com/2009/07/26/a-optica-psicologica-e-filosofica-em-domingo-a-tarde/ 

Sem comentários: