sábado, 28 de dezembro de 2013

Mário Quintana - no ano passado ...


28 de Dezembro de 2013 


Feliz Ano de 2014.
Deixo-vos as palavras de Mário Quintana.
No ano passado...

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.
Mario Quintana
 —

domingo, 15 de dezembro de 2013

António Ramos Rosa - Alguns dizem que eu escrevo de mais

* António Ramos Rosa 


Alguns dizem que eu escrevo de mais
como se tivesse escrito alguma coisa
Não, todas as minhas inscrições foram acenos
a algo que nunca atingi
e que era a única coisa que eu desejava dizer

Sei hoje que talvez não fosse nada
mas seria a descompressão a nulidade liberta
que restabeleceria a circulação solar
nas palavras e nos músculos na visão da terra
Seria a maravilha a surpreendente simplicidade

Quis envolver-me na sombra e subir com a sombra 
e a sombra era o fogo não o lume tranquilo
da lucidez e do verde das árvores
Apenas entrevi o ouro da água
e não me banhei nela não a sulquei com um barco de folhas
Dispersei-me na areia sem me apagar
e fui sempre uma sombra obstinada

in  DEAMBULAÇÕES OBLÍQUAS (2001)

domingo, 8 de dezembro de 2013

António Ramos Rosa - GRITO CLARO


De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, em Viagem Através duma Nebulosa
(1960)

sábado, 7 de dezembro de 2013

Eça de Queiroz e o Conde de Abranhos


. Dos Meus Livros

. "O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive." Pr. António Vieira



Terça-feira, 8 de Novembro de 2011

O Conde de Abranhos - Eça de Queirós


O Conde de Abranhos é uma sátira à classe política portuguesa. Escrito em 1878, este livro mantém, é bom de ver, uma incrível actualidade. Trata-se de uma espécie de biografia de Alípio Abranhos, escrita pelo seu fiel secretário, Z. Zagalo, um imbecil que julgando fazer-nos um eloquente elogio de Alípio nos vai desvendado todos os testemunhos da sua incompetência e oportunismo.

Por exemplo, os antecedentes familiares, usados pelo “biografo” para ilustrar a nobreza do conde não passam de façanhas de arruaceiros e bêbados. O Conde começa assim a surgir como uma caricatura do nobre aldeão, com o título dado pelo rei. Eça é pouco sensível ao bucolismo, talvez por aversão aos poetas românticos. A educação rural de Alípio é parodiada.

O certo é que o jovem Alípio desde cedo desejava fugir da ruralidade. Havia que fugir dos pobres, mesmo tratando-se do seu próprio pai. «Isole-se o pobre!» é o seu primeiro pensamento político. Assim, deixa os próprios pais na miséria para que não o envergonhem na capital.~

Alípio abominava o princípio “pernicioso da igualdade das inteligências, base funesta de um socialismo perverso”, assim como a “funesta tendência” de querer saber a verdade das coisas. Para felicidade dos povos, a ignorância é fundamental. Que o povo acredite, aceite e não questione: eis um princípio fundamental para Alípio.

Na Universidade, ele é um delator elogiado, um “lambe botas” como haveria de ser pela vida fora, como político de sucesso.

A sua primeira vitória política foi a eleição como deputado por Freixo de Espada à Cinta, mesmo não conhecendo a terra, que pensava situar-se no Minho. Será escusado dizer que hoje não é muito diferente…

O certo é que Alípio não se cansou de “dar graxa” aos freixenses. Mas quando se livrou deles apelidou-os de “horda de carrapatos!”

Faz sucesso no parlamento graças a discursos barrocos e balofos, sem conteúdo.

No entanto, em breve Alípio se transforma noutra figura típica da política portuguesa: o vira-casacas. Afinal os partidos são todos iguais, por isso mas vale estar do lado do que ganha…

Na parte final da brilhante carreira deste imbecil típico da classe política lusa, Abranhos é nomeado ministro da Marinha; o Rei aceita a nomeação porque, embora não o conheça, “tem uma senhora muito galante”. Abranhos rejubila com a nomeação embora detestasse o mar e os navios. Não sabia o que era latitude e longitude; não sabia onde ficavam as colónias: só 18 meses depois da nomeação ficou a saber onde se situa Timor.

O final do livro assume um tom mais sério: Portugal é invadido, durante uma guerra em que a Alemanha invadira a Holanda, forçando uma declaração de guerra por parte da Inglaterra. Nesta fase, o narrador assume um papel diferente, extraindo uma espécie de lição de moral da história: “o que nos faltou foi almas!”, conclui Zagalo; não fomos derrotados por falta de exército, marinha ou armamento. Foi por falta de alma, de génio, de capacidade de luta.

A defesa foi anedótica; como sempre, todos esperavam que o governo resolvesse tudo; ora os governos não resolvem nada. No entanto, o governo é o pai de todos, o ser superior que todos veneram, mesmo que constituído por imbecis.

Imagem retirada daqui.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

António Ramos Rosa - Para além das palavras com as palavras

* António Ramos Rosa 

 

Palavras com o seu peso, apaixonadas
pelo seu peso.
Palavras que demoram nas fronteiras do solo,
palavras trabalhadas pelo vento, 
palavras com sede como a água.
Até onde as palavras já não possam progredir. 
No cimo do cimo, numa árvore de estrelas.
Um deus murmura, se é um deus o ar, o deus do aberto e do intacto.
Tão perto de ser nada, renasço no vazio, renasço anónimo.
Nada me protege nesta abóbada aberta e tudo me soergue.
Tudo é vago, tudo é irmão do vento, tudo é informulável.
Se escrevesses as palavras poderiam ser lâmpadas de pólen.
Mais longe, mais alto desata-se a serpente dos sinais.
Todo o prodígio é de ar, todo o sentido é ar.

CADA ÁRVORE É UM SER PARA SER EM NÓS (2002)


http://antonioramosrosa.blogspot.pt/

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

personagens na obra de eça de queirós

Hora'EÇA - Um percurso pela vida e obra de  EÇA de QUEIRÓS
Personagens ilustres


Abordagem das personagens masculinas e femininas
Eça castigou mais os homens do que as mulheres...
As personagens masculinas, aparentemente fortes, opressoras, dominadoras e caprichosas, acabam por tornar-se mesquinhas e cobardes.
As personagens femininas dialogam muito mais com as emoções,  criando  um  clima  de empatia que  nega o pseudo mau-trato da mulher na escrita queirosiana.
Américo Guerreiro de Sousa, em reflexão crítica sobre o adultério feminino, presente em algumas obras de Eça de Queirós, anotava: "O adultério resulta das carências seguintes:
          * sentimentalidade
                    * educação errada
                              * excesso de leituras
                                        * lirismo
                                                  * temperamento sobreexcitado pela ociosidade
                                                            * luxúria frustrada no casamento
                                                                       * falta de exercício físico
                                                                                 * falta de disciplina moral." 
FRADIQUE MENDES
(A Correspondência de Fradique Mendes) 
Figura literária criada, nos verdores da juventude, por Eça, por Antero e por Batalha Reis, o primeiro Fradique é bizarro e provocador. A poesia que dele se publica, nos remotos anos 60, e os gestos que lhe são atribuídos, n'"O Mistério da Estrada de Sintra", fazem hesitar entre o riso e a estranheza.

O Fradique que Eça, anos depois e por sua conta e risco, recupera é mais contido sem ser, todavia, uma figura convencional. É um escritor para sempre adiado, um poeta afectado pela tentação do silêncio que muito bem convinha a um certo fim de século: se a forma perfeita não existe, para quê escrever? Desabafo de Fradique: "Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!".
 Entre o esteticismo e o dandismo, entre a tentação do pitoresco e a ânsia das viagens, entre a dispersão risonha e o cepticismo elegante, Fradique resolve-se, por fim, em esterilidade e quase paródia de si mesmo.

JULIANA
(O Primo Basílio) 
Mal aparece, n'"O Primo Basílio", Juliana está marcada. Logo de início, a criada de Luísa mostra umas feições "miúdas, espremidas"; e a "amarelidão de tons baços das doenças de coração" parece anunciar uma vida de frustrações e de sofrimentos. Como se isso não bastasse, o penteado deforma-a até à caricatura: "Usava uma cuia de retrós imitando tranças que lhe fazia a cabeça enorme."
De seu nome completo Juliana Couceiro Tavira, a criada disputa, no romance, protagonismo à patroa. E a chantagem que exerce sobre a adúltera Luísa chega a dividir o leitor, que oscila entre a repulsa e a tolerância. Porque, afinal a curiosidade doentia de Juliana, o seu azedume permanente não são fruto do acaso; eles decorrem de um ódio acumulado, resultado de uma vida oprimida, patroa atrás de patroa, alcunha atrás de alcunha: a isca seca, a fava torrada, o saca-rolhas.
 Juliana transporta em si alguma coisa do Eça socialista e reformista, preocupado com injustiças que havia que denunciar; mas o tratamento que a criada sofre, no corpo do romance, acaba por fazer dela figura com sinal negativo. O que, sendo ideologicamente significativo, não impede que Juliana venha a ser uma das figuras mais fortes e impressivas de toda a ficção queirosiana. E para que não se diga que nela nada de feminino sobrevive, aí está o seu fascínio pelo feitio da botina e pela pequenez do pé: "O pé era o seu orgulho, a sua mania , a sua despesa", diz-se dela; e é a própria Juliana quem o confirma, plena de erotismo recalcado, ávida de evidência social: "- Como poucos - dizia ela - não vai outro ao Passeio!" 

O CONSELHEIRO ACÁCIO
(O Primo Basílio) 
O Conselheiro Acácio é a caricatura do "formalismo oficial", "nunca usava palavras triviais" e "sempre que dizia 'El-Rei' erguia-se um pouco na cadeira". Porque o Conselheiro Acácio é também um patriota atento e venerador; por isso mesmo, "dizia sempre 'o nosso Garrett, o nosso Herculano'".

E contudo, este antigo director-geral do Ministério do Reino tem culpas mal escondidas no seu cartório privado; como se não bastasse que os seus sisudos livros ficassem por vender, Acácio cultivava singulares leituras de cabeceira : as poesias obscenas de Bocage, compartilhadas, no retiro austero da Rua do Ferregial, com a criada com quem vivia amancebado.
É alguma coisa disto que D. Felicidade, beata e pateta, vem a saber. O desgosto é grande, naturalmente porque D. Felicidade nutria pelo conselheiro uma antiga paixão e também uma fixação: "Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva."
 Para o imaginário queirosiano ele veio a transformar-se numa das personagens que de certa forma passaram para o mundo real. Pensando decerto neste burocrata para quem as "curiosidades" do Alentejo eram "de primeira ordem", Eça de Queirós referiu-se várias vezes à mentalidade conselheiral, quando quis aludir à oca solenidade que lembrava esta sua personagem. Longe estava Eça de saber que a língua portuguesa havia de cunhar o adjectivo "acaciano", precisamente derivado do nome da criatura que por ele nos foi legada.

JACINTO
(A Cidade e as Serras)
Zé Fernandes ("homem das serras", que disso se orgulha) coloca, no centro da história que relata, Jacinto, uma figura em mudança. No início d'"A Cidade e as Serras", encontramo-lo eufórico com a Civilização; anos depois, Zé Fernandes observa nele sinais de cansaço: "notei que corcovava". Quando parte para as Serras, Jacinto vai desconfiado, mesmo temeroso; sobrevém, por fim a revitalização inesperada: a do corpo e a do espírito.  
 Em Paris, Jacinto é ele mesmo mais as geringonças inventadas por uma Civilização tentacular: aparelhos sofisticados (o fonógrafo, o telefone, o conferençofone,o teatrofone), modas bizarras, escovas e pentes de feitios engenhosos, uma enorme biblioteca e modos de vida supercivilizados deixam-no cada vez mais indiferente. Porque a Civilização tudo lhe dá, menos alegria de viver. Razão tinha o escudeiro Grilo, um "venerando preto" que um dia fixou, num diagnóstico insuperável, a doença de Jacinto:"- Sua Excelência sofre de fartura."

A regeneração dá-se no reencontro com as Serras, experiência decisiva de regresso às origens, nisso a que hoje chamamos Portugal profundo; nele desdobra-se uma Natureza aparentemente pura, mas não isenta de sofrimento. E contudo, os costumes e as coisas singelas, tal como a simplicidade dos alimentos, reconduzem Jacinto à alegria de viver e mesmo ao riso. O que não implica a recusa radical da Civilização, mas antes  a  busca  desse  "equilíbrio  de vida" e  da efectiva Grã-Ventura que Zé Fernandes testemunha, por fim; o casamento e a paternidade acrescentam a tais qualidades uma outra: a fecundidade que na Cidade parecia cancelada.
Cabe ao Grilo resumir, outra vez com uma expressão lapidar, esse estádio final da mudança do amo: "- Sua Excelência brotou!" Jacinto já não é "Jacinto ponto final".   

CONDE D'ABRANHOS
(O Conde de Abranhos)
Alípio Severo Abranhos é conde e motivo de uma biografia caricata e caricatural.
Em si mesmo, Abranhos satiriza o político do constitucionalismo, a sua  mediocridade e o postiço  que o atormenta; doutro ponto de vista, ele é sobretudo  a falsificação do talento e da habilidade política. Em síntese, a ironia de Eça no seu máximo fulgor.

Se há figura que, na galeria das personagens queirosianas, ilustra  a ambição política que não olha a meios para atingir os fins, essa figura é o conde d'Abranhos.
Finalmente ministro da Marinha, o conde ocupava-se "sobretudo de ideias gerais".
A questão - vexatória "só para os espíritos subalternos" - estava em que  o ministro situava Moçambique na costa ocidental da África. Quando interpelado por uma oposição zelosa de minúcias, o conde dá uma resposta que o biógrafo classifica de "genial": "- Que fique na costa ocidental ou na costa oriental, nada tira a que seja verdadeira a doutrina que estabeleço. Os regulamentos não mudam com as latitudes!"   

TEODORICO RAPOSO
(A Relíquia)
Astuto e atrevido, o "Raposão" maduro que fala ao leitor, deixa para trás uma odisseia de aventuras amorosas e de vistosas devoções.
Teodorico é o herdeiro potencial da "horrenda senhora", sua tia, D. Patrocínio das Neves que, com o seu "carão lívido", o acolhe em sua casa, depois da morte do pai Raposo. Começa então a disputa pelos dinheiros e pelas propriedades da Titi, contra um rival de respeito: o próprio Jesus Cristo.

O estratagema que há-de desbancar o rival diz muito de uma mentalidade que o Eça anticlerical trata de caricaturar. Teodorico empreende uma viagem à Terra Santa; de lá virá a relíquia que deveria converter a tia às virtudes do sobrinho. Só que Deus não dorme e a coroa de espinhos que o sábio Topsius cauciona é misteriosamente trocada pela camisa da Mary, rescendendo ainda aos delírios amorosos do "portuguesinho valente". Expulso do seio da Titi, Teodorico não perde tudo e herda um óculo: "- Para ver o resto de longe! - considerou filosoficamente Justino".
 Em constante equilíbrio entre beatice e devassidão, Teodorico vai mais longe do que parece. Perpassa, no seu atribulado trajecto de aventuras e desventuras, uma reflexão sobre a hipocrisia e a duplicidade humanas.

CONDESSA DE GOUVARINHO
(Os Maias) 
Da primeira vez que Carlos da Maia ouve falar da senhora condessa de Gouvarinho, a descrição é insinuante: "uma senhora inglesa, de cabelo cor de cenoura, muito bem feita".
 Mergulhada no tédio de uma vida sem emoções, a Gouvarinho rapidamente faz justiça ao seu"arzinho de provocação e de ataque" e empolga Carlos. A ligação é breve, mas a senhora condessa não deixa, por isso, de ser amante nervosa e exigente; tão exigente que Carlos rapidamente  se farta.
Na galeria queirosiana, a condessa é parte de uma vida colectiva, em que a mulher aristocrata - no caso, aristocrata por casamento - tinha a expressão pública que lhe era concedida pela
 vontade masculina: o casamento, as obrigações sociais (receber, estar, conversar), uma ou outra leitura e, quando calhava, o adultério.
Massacrada pelas esquisitices e pelos remoques do conde, a senhora condessa não se ensaia e atira ao chão a loiça, num ataque de fúria; e, humilhada pela lembrança de que "fora ele que fizera dela uma condessa", não esteve com meias medidas: "ali mesmo à mesa mandou o condado à tabua".

DÂMASO SALCEDE
(Os Maias)
Repare-se no nome: Dâmaso Cândido de Salcede. E, logo de seguida, no cartão de visita: por baixo do nome, "as suas honras" - COMENDADOR DE CRISTO, ao fundo a sua "adresse", corrigida para dar lugar a "esta outra mais aparatosa - GRAND HÔTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE Nº 103".

Depois de uma apresentação como esta, nada a fazer. Dâmaso Salcede está condenado a ser o que é; lisboeta novo-rico, janota e pedante, filho de agiota, o velho Silva, e sobrinho de "Mr. De Guimaran", ele é, para mais, fisicamente caricato: um "moço gordo e bochechudo", de face quase sempre corada e ostentando essa coxa roliça que a palavra perversa e arguta de Eça constantemente põe à vista do leitor.
Mas se Dâmaso é o que é, deve-o ao modelo a que se atrela; a figura de Carlos da Maia é, para ele, obsessiva. A religiosa adoração por Carlos, a quem imita e segue para todo o lado "como um rafeiro", torna-o grotesco; e a imbecilidade das suas opiniões e "toilletes", a inconveniência das suas maneiras e da sua linguagem, tudo acaba por fixar-se num tique expressivo que é, ao mesmo tempo, uma imagem de marca: "chique a valer".
Com as mulheres, nem se fala. Capaz de provocar paixões avassaladoras - tenha-se em vista aquela actriz do Príncipe Real, "montanha de carne" que, em desespero e por causa dele, procura a morte, tragando uma caixa de fósforos -, este homem fatal tudo faz para merecer o cognome de que certamente se orgulha. Dâmaso é, em suma, "o D. João V dos prostíbulos".
Por fim, Dâmaso Salcede acaba como convém: casado, traído, mas igualmente feliz e cheio de si. Ninguém como João da Ega para tudo sintetizar, em conversa com Carlos da Maia: "Coitado, coitadinho, coitadíssimo... Mas como vês, imensamente ditoso, até tem engordado com a perfídia!".  

http://users.prof2000.pt/ano/alvide/eca/personagens_ilustres.htm