quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Clara Ferreira Alves- A FOTOGRAFIA DE JOHN LE CARRÉ

* Clara Ferreira Alves 
PLUMA CAPRICHOSA

ERA UM GENIAL CONTADOR DE HISTÓRIAS, UM MÍMICO RESPEITÁVEL, CÓMICO E SÉRIO AO MESMO TEMPO. IMITAVA AS VOZES, OS MANEIRISMOS, ERA A MELHOR COMPANHIA QUE SE PODIA DESEJAR

O homem era muito alto. Bati com suavidade à porta, ele entreabriu, e pela fenda consegui dizer “sou jornalista, Expresso, venho para a entrevista”. O homem respondeu, agora não vou dar entrevista. Neste momento não. Insisti. Estava a ler e não ia interromper a leitura para falar comigo. Tudo dito com polidez glacial, naquele tom das classes educadas da Inglaterra. A fenda da porta alargou, ligeiramente. Conseguia agora ver a cara, fechada e sem um sorriso, com um sobrolho levantado. Percebido, lá se ia a oportunidade de falar com John le Carré. Perdido por cem perdido por mil, perguntei com insolência o que ele estava a ler que não podia ser interrompido. A porta abriu um pouco mais, deixando ver uma figura alta, com uma madeixa de cabelo de cor indefinida, louro branco, sobre a testa. Respondeu que era Flaubert, “Madame Bovary”. Aí eu não resisti e disse, adoro esse romance, já o li tantas vezes. E ele, eu também, quantas? Nove vezes. E dissemos os dois ao mesmo tempo, nove vezes. Nine times. Com esta declaração que parecia cronometrada, a porta abriu-se completamente. O escritor, admirado com a coincidência, continuou a falar de Flaubert, a atenção ao pormenor, discutimos ainda uma comparação com Tchekov, o modo como ambos conseguiam caracterizar uma personagem através do que a rodeava ou do estado da luz, ou das observações sobre a paisagem. E assim consegui a entrevista de David John Moore Cornwell. Aliás, John le Carré.

Estava em Lisboa para fazer pesquisa sobre “A Casa da Rússia”, e Mário Soares convidou-o para almoçar em Belém. Deu uma entrevista, aquela, naquele tempo não dava entrevistas. Estava em exílio voluntário de quaisquer comunicações com a imprensa, detestava o meio literário londrino e considerava certa condescendência da crítica perante a obra um pecado original da mediocridade. As recensões aos livros e a frase repetida de que era um escritor de romances de espionagem que queria ser levado a sério deixavam-no mortificado. Tinha publicado “Um Espião Perfeito”, o livro que Philip Roth considerou o melhor romance inglês do pós-guerra. Tinha publicado “O Espião que Saiu do Frio” e “Tinker Tailor Soldier Spy”, o primeiro volume da trilogia “The Quest for Karla”, juntamente com “The Honourable Schoolboy” e “A Gente de Smiley”. A trilogia é um monumento literário. Antes das pressões de marketing dos grupos editoriais, os escritores davam raras entrevistas e Le Carré era uma estrela da literatura, com os livros adaptados ao cinema e televisão.

Abriu o minibar e perguntou se queria um whisky, uma garrafinha anã. Bebemos os dois, cada uma com a sua garrafinha, no quarto do Ritz, um quarto com duas camas. Nada de suítes presidenciais. O fotógrafo chegou, o António Pedro Ferreira, e fotografou no final da entrevista. Não foi o princípio de uma bela amizade, mas enquanto esteve em Lisboa voltámos a falar, queria saber coisas sobre o país, a capital pós-imperial que iria ser parte do livro que estava a escrever.

A entrevista saiu na Revista, com uma bela fotografia na capa, um primeiríssimo plano da cara. De Lisboa, o escritor seguiu para Moscovo. Quando regressou a Londres, viu a entrevista, traduzida, suponho que pela gente da agência dele. Gostou, e gostou da fotografia.

Tempos depois, recebi uma carta da agência, solicitando a fotografia para a contracapa da edição original de “A Casa da Rússia”, “The Russia House”. A agência pagaria o que pedíssemos, e a fotografia seria assinada. Uma oportunidade de ouro, visto que só os grandes fotógrafos tinham fotografado Le Carré, um escritor que sempre cuidou da pose e que respeitava a imagem e a estética da representação, e não resistia a aparecer em cameo nos filmes. Os fotógrafos idolatravam-no. Anton Corbijn, que melhor o capturou, acabaria a filmar “O Homem Mais Procurado”, uma fiel adaptação das luzes e sombras do universo Le Carré.

Provavelmente, a fotografia da edição inglesa seria a da edição americana. Num alvoroço, entreguei o pedido ao António Pedro Ferreira, para que respondesse logo, combinando o modo de fazer chegar o negativo ou o slide, não me lembro. Não voltei a receber correspondência da agência, o livro ia ser publicado. E foi. Sem a fotografia portuguesa. O fotógrafo era Terry O’Neill, um retrato estudado, como tantos que faria do escritor. Foi um dos seus retratistas favoritos. Um grande plano da cara, ocupando a contracapa. Terry O’Neill estava casado com Faye Dunaway nessa altura, e era um dos nomes grandes da fotografia. O que aconteceu?

O António Pedro Ferreira nunca respondeu à agência, porque a fotografia se tinha estragado na gráfica. Estava riscada. A única coisa que me disse, ao princípio, foi que oferecia a fotografia, antes de saber que estava danificada. As gráficas não tinham cuidado. Embaraçado, o meu amigo fotógrafo deixou o silêncio falar. Perguntei se não deveriam ter sobrado fotografias, tão boas como aquela. O A. P. F., que eu escolhera para o trabalho de fotografar Le Carré, manteve teimosamente que era aquela ou nenhuma. E aquela não podia ter sido.

E assim dei por mim a escrever uma longa carta a Le Carré pedindo desculpas, explicando o imbróglio, a gráfica, a teimosia do fotógrafo e sobretudo a ausência de uma resposta da nossa parte. Nem uma linha na volta do correio. Quando o livro já tinha sido publicado, com a assinatura de Terry O’Neill, tive uma sessão de descompostura com o A. P. F. Voltei a escrever, para dizer o que pensava sobre o livro, quando já se filmava a versão com Sean Connery e Michelle Pfeiffer. Recebo meia dúzia de linhas datilografadas, polidas, agradecendo o interesse e as palavras. Fim de comunicação. “David Cornwell, call me David”, dissera ele em Lisboa, ficara irritado? Nunca saberei.

Voltei a ver John le Carré muitos anos depois, na Cornualha, perto de Penzance, onde ele vivia à beira-mar, em Land’s End. No fim da terra. Passava em Londres apenas o tempo suficiente para tratar de assuntos, nunca mais de dez dias. Um amigo meu era amigo de um amigo dele. Fomos todos a um pub, num dia de chuva miudinha e rançosa, beber e conversar. O escritor estava mais velho. E, se possível, mais famoso. Falámos de Lisboa, da melancolia da cidade, da luz, dos pormenores gravados na imaginação. E falámos do Médio Oriente, onde passámos tempo suficiente. Era um genial contador de histórias, um mímico respeitável, cómico e sério ao mesmo tempo. Imitava as vozes, os maneirismos, era a melhor companhia que se podia desejar. O Alec Guinness (Smiley, na versão da BBC) era perfeito. Conhecia meio mundo, e era conhecido no mundo inteiro. Tinha uma vida internacional, viajada, e tinha uma vida monástica, disciplinada, para poder escrever. Todas as tardes, dava uma caminhada. O resto do tempo, escrevia. Continuava a gostar de whisky e a bebê-lo.

Terry O’Neill continuou a fotografá-lo, mas não é um dos cinco autores dos cinco retratos de John le Carré na National Portrait Gallery. Cinco. O homem tornou-se um tesouro nacional. Um dos retratos é de Lord Snowdon, que foi casado com a princesa Margaret. Numa das sessões de fotografia, a primeira, Lord Snowdon perguntou-lhe se podiam passar a nomes próprios, sem títulos. Claro, respondeu David Cornwell. Você tem mais a perder do que eu.

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A fotografia de John le Carré

18.12.2020

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