* Eça de Queirós«À EX.MA SR.ª CONDESSA D'ABRANHOS
Minha Senhora: - Tive, durante quinze anos, ahonra tão invejada de ser o secretário particular de seu Ex.mo Marido, Alípio Severo Abranhos, Conde d'Abranhos, e consumo-me, desde o dia da sua morte, no desejo de glorificar a memória deste varão eminente, Orador, Publicista, Estadista, Legislador e Filósofo.
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V. Ex.ª, Sr.ª Condessa, ergue-lhe neste momento, no cemitério dos Prazeres, um mausoléu comemorativo, onde o cinzel do escultor Craveiro faz reviver a nobre figura do Conde.
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Respeitosamente me arrojo, Sr.ª Condessa, a imitar o piedoso acto de V. Ex.ª e neste livro - como o artista esculpiu nomármore o seu invólucro físico - eu pretendo reconstituir o seu ser moral. A estátua é assim completada pela biografia: na pedra, as gerações contemporâneas poderão contemplar a grandeza da sua atitude e a expressão do seu rosto; nolivro, admirar-lhe-ão a elevação do espírito e a rectidão da alma. E quem melhor do que eu poderia tornar conhecido este português histórico - eu, a quem ele fez a confidência das suas crenças, da sua filosofia tão profundamentereligiosa, da sua alta ambição, do seu puro amor da Pátria, da sua vasta ciência política? Eu, que tenho presente a sua correspondência, - cuidadosamente arquivada no copiador - os seus manuscritos, os rascunhos dos seus discursos, naquela letra larga e ampla que apresentava similitude com a sua alma; eu, que tive o piedoso cuidado durante quinze anos, de recolher as menores palavras que saíam dos seus lábios - ai! que a anemia ia adelgaçando tão cruelmente - e, apenas entrava no meu quarto andar da Rua do Carvalho, -ninho doméstico que a sua generosidade me permitiu adquirir - escrevia as conversas que, à hora do chá, ou mais tarde no seu escritório, me enlevavam de admiração.
Eu fui a testemunha da sua vida. Outros oviram em S. Bento, nas Secretarias, no Paço, no Grémio, - mas só eu o vi, perdoe-me V. Ex.ª, Sr.ª Condessa, a familiar expressão - em chinelos e de«robe-de-chambre».
Todos conhecem o grande homem. Eu, conheço o homem. Eu - e V. Ex.ª, de quem ele me dizia, pouco antes de morrer, no momento em que lhe dava a colher de bromureto de potássio: - «Zagalo amigo, ao fim da experiência de oito anos de casamento, a Lulu (porque nos momentos de expansão comigo, era este o nome que ele lhe dava, Sr.ª Condessa - pois que, ordinariamente, aos inferiores dizia, a Condessa, e aos seus iguais, a D. Catarina) a Lulu, amigo Zagalo, tem sido mais que uma esposa, tem sido «um bálsamo». Referia-se o ilustre marido de V. Ex.ª às circunstâncias dolorosas do seu primeiro casamento, a que ele se costumava, referir, chamando-lhe «uma chaga».
Tais são os motivos, Sr.ª Condessa - o desejode lhe erguer um monumento espiritual e o meu conhecimento íntimo da sua vida -que me levam, depois de demorada reflexão, a escrever esta biografia do Conde d'Abranhos.
Eu conheço - ainda que as minhas tentativas literárias têm recebido do país um acolhimento remunerador - que me escasseiamas qualidades de Estilo e de Crítica, para escrever a história complexa deste grande homem: seria necessário, para bem o pintar, um Plutarco, ou, nos temposmais modernos, um Victor Cousin (que ele tanto admirava), ou ainda, contemporaneamente, um Herculano, um Rebelo, um Castilho - um desses astros que se destacam no céu da nossa Pátria, com uma luz de serenidade eterna. Eu sei, além disso, não serem necessárias apoteoses biográficas para que o país reconheça o homem que perdeu no Conde d'Abranhos. A dor de toda a Lisboa devia ser bem grata à sua alma. Sim, Sr.ª Condessa, devia ser bem grato ao seu espírito imortal, já arrebatado à serenidade dos eleitos, ver, cá em baixo, nesta Capital que ele amava, nestas ruas que ele tão bem conhecia, a imponente cerimônia do seu préstito fúnebre: o camarista que representava S. M. El-Rei; o presidente do conselho que, apesar da firmeza da sua vontade de ferro, não podia conter as lágrimas que lhe humedeciam as pálpebras; a deputação dos meninos do Asilo de S. Cristóvão, por quem ele tomava um interesse tão delicado e a quem chamava, com aquela graça que nas horas felizes era o encanto da sua conversa, - «os meus pintainhos»; a deputação das duas casas do Parlamento, levando à frente o orador da maioria, o poeta maravilhoso dos «Sonhos e Enleios», que me disse estas palavras memoráveis que ficarão na História: -«Vimos em nome da Viúva...» - E como eu lhe perguntava, admirado: - «Em nome da Sr.ª Condessa?» - «Não - respondeu o poeta - em nome da Tribuna, viúva do Génio!» - E enfim, fechando o préstito, vinte carruagens particulares, vinte e cinco da companhia e algumas de praça - entre as quais notei com admiração alguns operários da Sociedade «Probidade Cristã», que ele tanto ajudara a formar, e que vinham pagar um tributo derradeiro ao homem que, mais que nenhum em Portugal, amou, protegeu e educou o operário! Ali vinham, quatro numa tipóia, nos seus casacos dos domingos, as lágrimas nos olhos, a fé no peito, levar com saudade à sepultura aquele que um dia exclamara na Câmara dosDeputados (sessão de 15 de Agosto, «Diário do Governo» n.º 2758): - «Não podemos dar ao operário o pão na terra, mas obrigando-o a cultivar a fé, preparamos-lhe no Céu banquetes de Luz e de Bem-aventurança!»
E quem negará aí que não seja esta a verdadeira maneira de promover a felicidade das classes trabalhadoras?
Mas não foram estas as únicas demonstrações de luto social. A Imprensa - a que ele se orgulhava de pertencer, e a que chamava, com tanta elevação, o «porta-voz do progresso» - dedicou-lhe páginas que, pela unanimidade do sentimento, e até, se me é permitido descer a estes detalhes, o tipo grande dos artigos, entre tarjas negras, lembravam os funerais de um Rei.
As musas mesmo o choraram, e quem esquecerá essa jóia da poesia portuguesa, que dedicou à sua morte o nosso grande lírico, o autor melodioso dos «Cânticos e Suspiros»? Ah! Sr.ª Condessa, recitemos ambos, na nossa dor comum, esta estrofe, digna dos Hugos, dos Passos e dos Leais:
Teu
corpo desce à terra escura e fria...
Terra
de Portugal. Treva sombria
Te cobre e te devora!
Mas não
perecerá teu génio altivo,
E surges para a História redivivo
Como da Noite a Aurora...
A música mesmo (para que todas as Artes se reunissem no coro de prantos) lá lhe vai dar o seu tributo, nessa inspirada composição - «A Civilização» - valsa dedicada à memória do ilustre Conde d'Abranhos, pelo padre Abílio Figueira!
Era tempo, pois, Sr.ª Condessa, que eu, que nessa grande explosão de dor me conservei taciturno e retraído (devendo dizer-se que o severo ataque de fígado que então me prostrou, resultante das longas noites de vigília à cabeceira do grande enfermo, me forçou a um silêncio involuntário) - venha enfim depor sobre o seu túmulo esta memória humilde.
A Ele, Sr.ª Condessa, devo tudo. O pão do corpo e o pão da alma, me deu ele com generosidade larga e fidalga. Nunca o esquecerei. Por vezes, quando me via (sobretudo depois da bronquite de que padeci no Inverno de 1870) um pouco pálido ou debilitado, ele próprio ia ao armário do seu escritório e por sua mão me servia de um, às vezes dois cálices de vinho do Porto de 1815. Nos dias em que tinha gente a jantar, nunca se esquecia de mandar guardar alguma sobremesa para eu levar a meus filhos, que lhe devem, além desta lembrança mimosa, a educação sólida e cristã de que gozam e que os habilitará, espero, a entrar um dia, com justo mérito, nas Repartições do Estado.
Mas, Sr.ª Condessa - eu sou feliz em o poder dizer bem alto - o que acima de tudo devo ao Conde d'Abranhos, é ter-me ele refeito um ser moral. Eu, que na mocidade, sob a influência perniciosa de leituras inconvenientes e de camaradagens fúteis, partilhava as ideias que a sociedade condena, fui transformado pelo seu exemplo, pelos seus conselhos, pela sua eloquência e pela sua protecção. Sim, Sr.ª Condessa, seu ilustre marido encontrou-me pobre, e portanto repastando-me de leituras perniciosamente democráticas, e acompanhando com moços de talento, é certo, mas inteiramente devorados pelos estragos de uma filosofia materialista e de uma sociologia anárquica; empregando-me como seu secretário particular, com um ordenado suficiente às necessidades de minha família (eu casara então com a minha angélica Madalena), o Conde d'Abranhos deu-me os meios materiais de me tornar um conservador convicto, um defensor fervoroso das instituições, um amigo da ordem. Pondo-me ao abrigo da pobreza, digo-o bem alto, pôs-me ao abrigo da depravação intelectual, moral e social.
E de V. Ex.ª, Sr.ª Condessa, que direi, que o não tenham dito na terra os pobres de que V. Ex.ª cura os males e afasta a necessidade, e no Céu, os anjos de quem V. Ex.ª é seguramente predilecta - e decerto futura companheira? Permita-me pois, Sr.ª Condessa, que ponha aos pés de V. Ex.ª este trabalho, no qual consignei a primeira fase da carreira admirável do Conde d'Abranhos, essa ascensão vertiginosa às culminâncias do poder, de modesto filho de Penafiel a ministro ilustre, e onde deixei o que na minha alma existe de melhor, de mais nobre, de mais duradouro - a minha respeitosa admiração pela grande figura do Conde d'Abranhos.
Ex-secretário do Ex.mo Sr. Conde d'Abranhos,
sócio honorário do Grémio Recreativo do Rio Grande do Sul.
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(Re)Leituras – O Conde de Abranhos
Excerto de um relatório que acompanha o Projecto de Reforma do Ensino de Alípio Abranhos:
“O estudante, habituando-se, durante cinco anos, a decorar todas as noites, palavra por palavra, parágrafos que há quarenta anos permanecem imutáveis, sem os criticar, sem os comentar, ganha o hábito salutar de aceitar sem discussão e com obediência as ideias preconcebidas, os princípios adoptados, os dogmas provados, as instituições reconhecidas. Perde a funesta tendência – que tanto mal produz – de querer indagar a razão das coisas, examinar a verdade dos factos; perde, enfim, o hábito deplorável de exercer o livre exame, que não serve senão para ir fazer um processo científico a venerandas instituições, que são a base da sociedade. O livre exame é o princípio da revolução. A ordem o que é? A aceitação das ideias adoptadas. Se se acostuma a mocidade a não receber nenhuma ideia dos seus mestres sem verificar se é exacta, corre-se o perigo de a ver, mais tarde, não aceitar nenhuma instituição do seu país sem se certificar se é justa. Teríamos então o espírito da revolução, que termina pelas catástrofes sociais!”
O Conde de Abranhos, Eça de Queiroz, (1879).
Em carta que envia a Chardon, seu editor, Eça explica a obra:
[...] ”É a biografia de um indivíduo imaginário, escrita por um sujeito imaginário. O Conde de Abranhos é um estadista, orador, ministro, Presidente do Conselho, etc., etc., que, sob esta aparência grandiosa, é um patife, um pedante e um burro.” [...]
Carlos Pinto-Ferreira
Já agora aproveite e veja de Eça
donde foi retirada a ilustração
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