* Fernando Namora (1919/1989)
CANTO TARDIO
Antes que o Inverno chegue
volto a ser cigarra. Canto.
Da laboriosa agonia me liberto e exalto.
Canto sem cessar o tempo
temendo e saboreando o tempo,
galo da aurora
que não tem tempo de acordar dormindo
De celeiro vazio, canto,
surdo aos lobos e aos ratos
que esgadanam o restolho.
Canto no Outono, que é oiro velho
e um rosto rugoso e macio.
Canto só porque é tarde para o canto
e a cantar adio o que tarde veio.
Cantando abro-me às formigas
e ofereço-lhes o indigesto banquete
para que a morrer cantando
me devorem vivo.
EPIGRAMA
Este poeta não tem unhas: tem garras
e não diz raiva: diz rage
não diz amor: diz merde
e di-lo-á até pagar a renda da casa.
Depois...talvez lhe reste
deixar de ser poeta.
SE
Se eu pudesse
escrever só
para ti
(que é
um modo de dizer:
como a brisa passa
porque é brisa
como as águas
correm porque
são água
como a planta respira
e a fera mata)
se eu pudesse
escrever
sem endereços
sem sobrescritos
sem o medo
de ser lido
de ter escrito
seria a verdade
dos rios
seria a praia nocturna
a sós com o mar
seria o hálito
da boca desnuda
seria montanha
seria o rio
seria o mar
seria a asa.
Seria
eu.
SABER
Serás tu, frustração,
o vinho da poesia?
Serás tu, sofrimento,
o sémen perfeito?
Serás tu, vida,
o escuro canto
que pelo tormento
descobre a chave
de se ver por dentro?
Oh, sabê-lo.
Conhecer o preço
e pagá-lo
sem discutir a demasia.
Estontear os olhos
com o sol de frente
e queimá-los
até à cegueira que recria.
Não temer aquilo
em que a palavra
foi gerada
e gritá-la inteira,
seja um sim, seja um não,
mas de boca cheia.
SEJA
Que o mundo
seja a erva
que na insónia medra.
Seja a chuva
para a sede
que no raio
arde.
Seja seja
a serpente
que na fêmea
se deseja
Seja a onda
seja rio
e o vegetal
que o sorve.
Que o mundo
seja a mão
que noutra mão se abre
E cantando
seja o Verão
que na cigarra
se expande.
PALAVRAS
De palavras me vesti
no agasalho do nada.
Palavras foram o vinho
de uma sede inventada.
E agora que as desfolho,
que me resta?
A memória de uma sede
que ao beber cresta.
Em palavras me enleei
numa selva gorda e quente.
E agora que as descarno,
que me fica?
A memória de uma vida
que a viver mente.
Pois deito as palavras fora,
recuso-lhes o mel e o cheiro.
É acre o tutano
mas verdadeiro.
OS VELHOS
Os velhos pegam-se à vida
só porque é vida,
fazendo dos sobejos
um festim.
E tu, enjoado,
que a mordes
como um fruto que se deita fora
inda inteiro!
CAVALO DE BRONZE
Ao chicote do sol
relincha colérico
o cavalo de bronze
na praça do sol
no pasmo de bronze
No galope de lume
na fúria contida
de tendões vibrando
relincha o corcel
na praça do sol
da estátua de bronze
E a gente que passa
na praça do sol
sonâmbula e cega
de uniforme vestida
de bronze moldada
no pasmo do sol
da vida pasmada
na praça aturdida
de sol coalhada
no cavalo de bronze
se vê fustigada
Não precisa de espaço
a sua corrida
não precisa de água
a fúria contida
é de pedra a ira
nos olhos vazados
do corcel de bronze
que galopa ao sol
da estrada de bronze
Mas não pára o chicote
de o expulsar
da ira de bronze
no pasmo do sol
na estátua de bronze
da praça moldada
em gente aturdida
Num dia de sol
num corpo de bronze
a vida foi vida
sonhada perdida
num corpo de bronze
num dia de sol
do cavalo de bronze
Não há ira nem sol
não há gente acordada
não há gente com vida
se o cavalo é de bronze
num chicote sem ira
da praça pasmada
do cavalo de bronze
do cavalo
de bronze.
CALAFRIO
Não sei como eles ainda escutam
as cóleras de guizos,
como eles não vêm os coágulos
onde o sangue tingiu os girassóis.
De ciprestes são as áleas
que escoltam a música dos sinos
e o céu desfolha-se
em estrelas apagadas.
Pois sobre o rugido dos coveiros
que se levante a surdez.
A alva, quando nasce,
é calafrio.
Elsa Vicente, Graca Maria Antunes, Deolinda Figueiredo Mesquita e 16 outras pessoas gostam disto.
Sem comentários:
Enviar um comentário