segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

poesia de antónio ramos rosa (1924-2013)


24 de Fevereiro de 2014 às 21:36
 * antónio ramos rosa

ESTOU VIVO E ESCREVO SOL

Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa, "Estou vivo e escrevo sol", poema publicado pela primeira vez no livro com o mesmo título de 1966
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Poema dum funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

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Alguns dizem que eu escrevo de mais

Alguns dizem que eu escrevo de mais
como se tivesse escrito alguma coisa
Não, todas as minhas inscrições foram acenos
a algo que nunca atingi
e que era a única coisa que eu desejava dizer

Sei hoje que talvez não fosse nada
mas seria a descompressão a nulidade liberta
que restabeleceria a circulação solar
nas palavras e nos músculos na visão da terra
Seria a maravilha a surpreendente simplicidade

Quis envolver-me na sombra e subir com a sombra
e a sombra era o fogo não o lume tranquilo
da lucidez e do verde das árvores
Apenas entrevi o ouro da água
e não me banhei nela não a sulquei com um barco de folhas
Dispersei-me na areia sem me apagar
e fui sempre uma sombra obstinada

in  DEAMBULAÇÕES OBLÍQUAS (2001)
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GRITO CLARO

De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro

António Ramos Rosa, em Viagem Através duma Nebulosa
(1960)
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Para além das palavras com as palavras 

Palavras com o seu peso, apaixonadas
pelo seu peso.
Palavras que demoram nas fronteiras do solo,
palavras trabalhadas pelo vento,
palavras com sede como a água.
Até onde as palavras já não possam progredir.
No cimo do cimo, numa árvore de estrelas.
Um deus murmura, se é um deus o ar, o deus do aberto e do intacto.
Tão perto de ser nada, renasço no vazio, renasço anónimo.
Nada me protege nesta abóbada aberta e tudo me soergue.
Tudo é vago, tudo é irmão do vento, tudo é informulável.
Se escrevesses as palavras poderiam ser lâmpadas de pólen.
Mais longe, mais alto desata-se a serpente dos sinais.
Todo o prodígio é de ar, todo o sentido é ar.

CADA ÁRVORE É UM SER PARA SER EM NÓS (2002)
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A Partir da Ausência 

Imaginar a forma
doutro ser Na língua,
proferir o seu desejo
O toque inteiro

Não existir

Se o digo acendo os filamentos
desta nocturna lâmpada
A pedra toco do silêncio densa
Os veios de um sangue escuro

Um muro vivo preso a mil raízes

Mas não o vinho límpido
de um corpo
A lucidez da terra
E se respiro a boca não atinge
a nudez una
onde começo

Era com o sol E era
um corpo

Onde agora a mão se perde
E era o espaço

Onde não é

O que resta do corpo?
Uma matéria negra e fria?
Um hausto de desejo
retém ainda o calor de uma sílaba?

As palavras soçobram rente ao muro
A terra sopra outros vocábulos nus
Entre os ossos e as ervas,
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema

 in "A Nuvem Sobre a Página"
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É por ti que vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto'
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UMA VOZ NA PEDRA
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Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
.
.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

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TRADUÇÕES

TU CHIU NANG (século VIII) - USEM AS VOSSAS JÓIAS DE OIRO...

Usem as vossas jóias de oiro e os vossos vestidos de seda.
Saboreiem enquanto é tempo os frágeis prazeres da vida.
Os ramos ficarão despidos quando vier o grande frio.
Sem o sol, emurchecidas as flores, que é a vida? Apenas saudade.

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Paul Éluard - Aviso 

[Tradução de António Ramos Rosa]


A noite que precedeu a sua morte
foi a mais breve de toda a sua vida
Pensar que estava vivo ainda
era um fogo no sangue até aos punhos
A sua força era tal que ele gemia
Foi quando atingia o fundo deste horror
Que o seu rosto num sorriso se lhe abriu
Não tinha apenas um único camarada
Mas sim milhões e milhões de camaradas
Para o vingarem sim bem o sabia
E então para ele ergue-se a alvorada..







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