25/09/2015 por Carla Romualdo
O vizinho que ficou desempregado há dois anos faz umas horitas nas lojas da rua. Meia hora na sapataria, três quartos de hora no parque de estacionamento, duas horinhas na loja ortopédica. O suficiente para que os donos, que já não têm dinheiro para contratar empregados, possam dar um saltinho às finanças, ao banco, a tratar daquele assunto que tem de ser em horário de expediente. Ele faz tudo sem ligar nenhuma a nada. Não está para vender nem para dar explicações. É só mesmo dizer que o patrão vem já, que é melhor passar depois, e garantir que ninguém deita a mão a nada. Aceita cartas e encomendas, atende o telefone para dizer que o patrão vai estar da parte da tarde. Mais do que isso não é com ele.
Assim que fica livre, vai sentar-se na cadeira de rodas que está todo o dia em exposição à porta da loja ortopédica. A cadeira está protegida por um plástico que já começou a rasgar-se, mas o dono da loja sente-se em dívida e não diz nada. Sentado na cadeira, a olhar o mundo a passar, aí é que ele se sente bem. Se pudesse dedicar-se a isso na vida…
Se o deixassem ver o mundo e dizer bom dia às pessoas e pensar sobre as vidas delas, e decifrar, pelo semblante que levam nesse dia, se a vida lhes corre bem, se houve discussão lá em casa. E ajudar algum turista que anda com o mapa só para fazer de conta porque não sabe lê-lo, ou as senhoras que vêm de Miranda do Douro fazer a mamografia no consultório ali ao lado, e andam perdidas como se as tivessem enviado a outro país. Ou meter o carro na garagem ao Dr. Mota, que não atina bem com as distâncias e arranha sempre a pintura metalizada. Ou ir com a viúva do Sr. Meneses à Caixa para levantar a reforma, porque desde aquele dia em que se juntou um grupinho à volta dela e ela teve que gritar “Quem me acode!” que já não se atreve a andar sozinha com dinheiro no bolso. Ou chamar a atenção à D. Rosa, que é mãe solteira e passa o dia fora, que o rapaz anda com umas companhias esquisitas e com umas olheiras que não são bom sinal, e se calhar era hora de ter uma conversa com ele.
O país verá o meu vizinho com desdém e impaciência, um homem ainda jovem, sem ocupação digna desse nome, sem contribuições para a segurança social nem para o fisco, um desocupado que passa o dia na rua, mas suspeito que poucos conhecem o país como ele. Nada sabe de temas fracturantes, de números, de previsões. É um analfabeto económico, um ignorante político, um homem pouco escolarizado. Provavelmente, nenhuma empresa o contratará até ao fim da vida. Mas ele sabe ler a teia fina que se tece entre pessoas, reconhece um problema antes que ele se manifeste, interpreta com precisão sinais de crise ou de retoma pelo movimento nas lojas do bairro, pelas idas ao multibanco.
É pouco refinado, diz palavrões, faltam-lhe as palavras certas quando tenta explicar-se. Mas sabe sempre o que fazer, sabe estar onde é preciso, não lhe faltaram as palavras quando a vizinha se atirou da janela e foi ele a chamar a ambulância, e a esperar com ela, sabendo que ela estava morta, mas que nem por isso ele era menos necessário ao lado dela.
O vizinho conta apenas nas estatísticas dos desempregados. É um inútil, um encargo para o país. Mas se perguntarem no bairro, onde todos sabem quem ele é, não se imagina a vida sem ele.~
Imagem: «ARA General Belgrano», Guy Denning
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