sexta-feira, 31 de julho de 2015

Vladimir Maiakovski - Adultos

*  Vladimir Maiakovski

Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto,
com as mãos metidas nos bolsos rasgados,
vagava assombrado.

À noite
vestis os melhores trajes
e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim
Moscou me sufocava de abraços
com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, nos relógios
bate o pêndulo dos amantes.

Como se exaltam as duplas no leito de amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão,
surpreendo o pulsar selvagem
do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora,
abria-me ao sol e aos jatos d'água.
Entrai com vossas paixões!
Galgai-me com vossos amores!

Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei,
qualquer um sabe -
o coração tem domicílio
no peito.

Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração -
em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras
em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga
acumulada
torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável
não para o verso
de veras.

http://www.mensagenscomamor.com/poemas_e_poesias_de_vladimir_maiakovski.htm

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Kaputt - Um livro inesquecível

* Miguel Urbano Rodrigues
30.Jul.15 :
Curzio Malaparte foi um aventureiro muito talentoso, frívolo, irresponsável, com uma imaginação prodigiosa. Brinca com as palavras, com os sentimentos, com a História. O penúltimo capítulo de Kaputt sobre a atmosfera humana que encontrou na Itália em guerra é talvez o mais malapartiano do livro. Com uma ironia cínica esboça o quadro de uma sociedade decadente, de uma aristocracia agónica, fundida com uma burguesia igualmente corrupta e venal.


Ao abrir uma edição de Kaputt,* de Curzio Malaparte, pensei que iria reler o livro. Engano. Logo na introdução percebi que o desconhecia. Recordei a admiração que senti na juventude pelo autor de A Pele.**

Kaputt (palavra derivada do hebraico antigo) não é propriamente um romance. Escrito na primeira pessoa, não cabe em géneros literários tradicionais. Não é também uma narrativa, mas uma mistura de reportagem, autobiografia e ensaio. Malaparte escreve como um correspondente de guerra que era simultaneamente oficial do exército italiano; escreve como espectador que condena a guerra.Na agressão alemã à União Soviética esteve em muitas frentes, da Roménia à Finlândia.

Kaputt é uma miscelânea de estilos e temas dificilmente imaginável. A guerra, que lhe inspira repugnância e piedade, está omnipresente, mas são muitos os temas que aborda na maior parte do livro. Malaparte é um escritor barroco que domina um vocabulário riquíssimo, floreado, metafórico, com toques musicais.

As transposições, frequentes e inesperadas, são muitas vezes desconcertantes. De diálogos na Suécia com um irmão do rei salta para Capri, Paris, Roma, Belgrado, Berlim, Helsinki, Jassy na frente da Moldávia, para o ghetto de Varsóvia, a Lapónia finlandesa ou o cerco de Leninegrado.

Hans Frank é uma personagem importante. O retrato que apresenta do gauleiter nazi da Polonia é devastador. Mas convive com ele amigavelmente, participa nos seus banquetes e nos do corpo diplomático. O leitor sente que ele se move com prazer nos amores e mexericos da «alta sociedade» da Europa em guerra.

Kaputt é um livro cruel e o autor um cínico que cultiva a piedade, vive o medo e a angústia.

A sua crueldade é marcada por um humor negro, por vezes sarcástico. Como no episódio do cesto com olhos humanos oferecidos ao croata Ante Pavlich pelos seus ustachis. Ou na estória do bordel de Soroca, instalado pelos SS com jovens judias romenas que satisfaziam em média diariamente 50 oficiais e soldados cada uma e apos três semanas eram fuziladas por imprestáveis.

A personagem e o escritor são um poço de contradições.

Na juventude, Malaparte - filho de um alemão e de uma italiana, batizado como Kurt Suckert- foi fascista, participou da Marcha sobre Roma, embora o negue. Entusiasmou-se com Mussolini, mas a admiração não tardou a ceder o lugar a sentimentos de desprezo e aversão. Sempre inconstante, no final da vida aproximou-se do Partido Comunista Italiano.

O seu primeiro livro, A Técnica do Golpe de Estado, levou-o à prisão. Mas ele, ao contrário do que afirma (mente despudoradamente), não cumpriu integralmente o desterro na ilha de Lipari, graças à intervenção do seu amigo Ciano, genro de Mussolini.

Correspondente de guerra na frente da Roménia, com a patente de capitão, as suas reportagens desagradaram aos alemães. Foi afastado, mas voltou e teve acesso à intimidade de altas patentes da Wehrmach e das SS durante a agressão à URSS.

Não consegue ocultar a sua cumplicidade, disfarça-a com um humor macabro. O horror da guerra toca o leitor em páginas em que desfilam cadáveres putrefactos, cavalos mortos, cemitérios nauseabundos, mulheres violadas pela soldadesca.

O escritor foi um aventureiro muito talentoso, frívolo, irresponsável, com uma imaginação prodigiosa. Brinca com as palavras, com os sentimentos, com a História.

O penúltimo capítulo de Kaputt sobre a atmosfera humana que encontrou na Itália em guerra é talvez o mais malapartiano do livro. Com uma ironia cínica esboça o quadro de uma sociedade decadente, de uma aristocracia agónica, fundida com uma burguesia igualmente corrupta e venal. Nos salões do Palácio da princesa Isabel Colonna altos dignitários do regime e diplomatas, a principiar pelo ministro Galleazzo Ciano, criticam alegremente o fascismo, ridicularizam Mussolini e Hitler. Mas não o fazem por patriotismo. Olham para o próprio povo com desprezo. Essa classe social está apodrecida até à medula. Falta-lhe energia para conspirar; cultiva a intriga, a felonia, numa vertigem de festas quase orgíacas, encharcada em whisky e champagne.

Malaparte pinta um retrato demolidor dessa gente.

Em A Pele, escrito anos depois, retoma o tema, mas situa a ação na Nápoles recém-libertada que lhe inspira piedade e paixão.

Inventa personagens que convivem com as reais. O leitor não consegue separar o que é forjado daquilo que o autor viu e viveu.

Em Kaputt a sua intimidade com generais e altos funcionários nazis é instrumental, empurra o leitor para a condenação da casta nazi, monstruosa, desumana.

Em A Pele o elogio constante do povo americano encobre mal o seu desprezo irónico quase afetuoso pela ignorância, ingenuidade e primarismo dos generais da USS Army e do seu corpo de oficiais.

Malaparte fascina pelo talento e erudição, mas simultaneamente inspira desconfiança, um sentimento próximo da repugnância pela sua leviandade.

Morreu em Roma, aos 59 anos, no auge da popularidade. Pergunto: se vivesse alguns anos mais, que rumo tomaria a obra deste grande escritor contraditório, um dos maiores da sua época? Não consigo imaginar. Um abismo separa a Técnica do Golpe de Estado de Kaputt, do jovem fascista que admirava Mussolini e este do amigo de Togliatti.

*Kaputt, Curzio Malaparte,Editora Denoel,Paris,1946
** La Peau, Curzio Malaparte, Editora Denoel, Paris,1959
___
Vila Nova de Gaia e Cascais, Junho e Julho de 2015

http://www.odiario.info/?p=3724

segunda-feira, 27 de julho de 2015

um poema de Corsino Fortes

Corsino Fortes

A minha mãe vendia pão ao luar
E mel às crianças da beira-mar
Pagavam moeda
Moeda de carvão
E marulho da moeda
no mergulho do mar alto
E por vezes
A fidúcia do rosto
sem timbre de selo branco


http://aventar.eu/2015/07/27/uma-memoria/#more-1232561

sábado, 18 de julho de 2015

O cotidiano em poesia de André Ladeia

17 de julho de 2015 - 15h32 


Um cotidiano ríspido e episódios da história da humanidade são transformados em poesia por André Luiz Cosme Ladeia. A descrição seca e simples de uma sessão de tortura choca e revolta, mas não demora em abrir espaço para a importância da palavra em AntropoTeofagia. 



Entre a leveza e a rispidez, André brinca com as palavras e descreve o cotidiano de forma provocadora e instigante. O poeta que Prosa, Poesia & Arte traz esta semana é carioca, mas vive em Minas Gerais; graduado em Direito, trabalha atualmente como advogado e procurador municipal. 

Suas poesias são publicadas em sites especializados e periódicos literários. O livro Suave como a morte foi lançado em 2014 pela editora Penalux. Prosa, Posia & Arte traz uma série de poesias de André Ladeia. 

Leia na íntegra: 

Nascimento

Quando nasci
A morte
Veio me visitar
E me presenteou
Com seu relógio negro

O coveiro que fez meu parto
Me benzeu
E depois
Começou a preparar a minha lápide

As bailarinas dançavam
Com a morte
Ao som de uma música lúgubre

Os sinos badalaram
Para comemorar o início
Do meu enterro.

    *
Guerra

Na Guerra
Os homens
Carregam
Os
Mortos;

As mulheres,
As crianças;

Os nômades,
As sacolas;

Só a vida que é
Deixada para trás.

    *
Tortura

A gota d´água caindo devagar,
A luz ligando e desligando
Ininterruptamente
O choque frio
A unha sendo retirada
A cabeça mergulhada
A dor, a sede, a fome,
O espelho

    *
Charrete

Nas viagens
Os turistas
Se vangloriam
De seus passeios sádicos
Com os cavalos

e os trabalhadores
exploram 
os
turistas
que
exploram
os
cavalos

A verdade 
É que sempre haverá alguém
Com freio na boca
E um chicote.

    *
AntropoTeofagia

E o Verbo se fez carne
E eu me fiz pão
E fomos repartidos
entre os pobres

    *
Primeiros Versos

Da rodoviária estropiada
Escrevo esses versos
Como quem morreu
E não conseguiu voltar

Os primeiros versos são eternos
Porque a alma assim o quis

Revisar sob o pálio da perfeição
Seria como mutilá-los
Tornando-os impuros

Os primeiros versos são inofensivos
Como o primeiro amor

Por que o poeta haveria de saber mais que o espírito?
(De ser mais pretensioso?)

O poeta é o instrumento da alma
que tem a contumácia em não se calar.

    *
Aprendi

Com os homens aprendi a escarrar em outros
A rir dos mártires
A debochar dos pobres
E a cuspir nas ruas

Aprendi que a equidistância dos polos não existe
E que a imparcialidade é uma invenção terrível

Aprendi que quanto maior o poder
Mais vil e tirano ele se torna

Aprendi a ser cínico
E a revirar do lixo
A imundície que cobre
A alma humana 


Do Portal Vermelho

http://www.vermelho.org.br/noticia/267595-11

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Gramsci - Cartas do Cárcere


Esta é uma das 478 cartas e bilhetes redigidos de diferentes cárceres, entre 1926 e 1937, por Antonio Gramsci. Juntos, compõem um inesperado "romance de formação": um precioso documento da transformação de um sardo provinciano em grande intelectual europeu. E também representam, evidentemente, um ato de acusação contra o fascismo, que condenou Gramsci a uma inexorável "morte lenta". Um bom número destas cartas foi dirigido a Tatiana (Tania) Schucht, cunhada do prisioneiro, que, com o amigo Piero Sraffa, especialmente designado por Palmiro Togliatti e pelo PCI, foi figura essencial na assistência a Gramsci e na afortunada preservação do seu legado. Mantivemos aqui as notas e referências da edição brasileira das Cartas do cárcere, publicadas em dois volumes pela Editora Civilização Brasileira, em 2005.

11 de abril de 1927

Querida Tania,

Recebi seus cartões de 31 de março e de 3 de abril. Agradeço as notícias que me manda. Espero sua vinda a Milão; mas, confesso, não quero contar muito com ela. Pensei que não seria muito agradável continuar a descrição, iniciada na última carta, de minha vida atual. É melhor que, em cada vez, escreva o que me vier à cabeça, sem um plano preestabelecido. Escrever também se tornou um tormento físico, porque me dão penas horríveis, que arranham o papel e exigem uma atenção obsessiva para a parte mecânica de escrever. Acreditava que poderia obter o uso permanente de caneta e me havia proposto escrever os trabalhos que lhe mencionei; mas não pude obter a autorização e não gosto de insistir [1]. Por isso, só escrevo nas duas horas e meia ou nas três horas em que cuidamos da correspondência semanal (duas cartas); naturalmente, não posso fazer anotações, isto é, na realidade não posso estudar de modo ordenado e proveitoso. Mal leio. Mas o tempo passa rapidamente, mais do que podia pensar.

Passaram cinco meses desde o dia de minha prisão (8 de novembro) e dois meses desde o dia de minha chegada a Milão. Não parece verdade que tanto tempo passou. Mas se deve ter em conta o fato de que, nestes cinco meses, vi coisas de todo tipo e tive as impressões mais estranhas e mais excepcionais de minha vida [2]. Roma, de 8 de novembro até 25 de novembro: isolamento absoluto e rigoroso. 25 de novembro: Nápoles, na companhia de meus quatro companheiros deputados até o dia 29 (três, não quatro, porque um foi separado em Caserta para Tremiti) [3]. Embarque para Palermo e chegada a Palermo no dia 30. Oito dias em Palermo: três viagens frustradas para Ustica, por causa do mar tempestuoso. Primeiro contato com os presos sicilianos acusados de mafiosos: um mundo novo, que só conhecia intelectualmente; verifico e comprovo minhas opiniões a propósito, que reconheço como bastante precisas. Em 7 de dezembro, chegada a Ustica. Conheço o mundo dos presos comuns: coisas fantásticas e incríveis. Conheço a colônia dos beduínos da Cirenaica, confinados políticos: quadro oriental, muito interessante [4]. Vida em Ustica. Em 20 de janeiro, torno a partir. Quatro dias em Palermo. Travessia para Nápoles com criminosos comuns. Nápoles: conheço toda uma série de tipos do mais alto interesse para mim, eu que, do Mezzogiorno, só conhecia a Sardenha. Em Nápoles, entre outras coisas, assisto a uma cena de iniciação à camorra: conheço um condenado à prisão perpétua (um certo Arturo), que me deixa uma impressão indelével. Depois de quatro dias, vou embora de Nápoles; parada em Cajanello, no quartel dos carabineiros; conheço meus companheiros de algema, que irão comigo até Bolonha. Dois dias em Isernia, com esses tipos. Dois dias em Sulmona. Uma noite em Castellamare A., no quartel dos carabineiros. Mais ainda: dois dias com cerca de sessenta presos. São organizados entretenimentos ocasionais em minha homenagem; os romanos improvisam uma belíssima festa literária, Pascarella e pequenos quadros populares do submundo romano. Apulienses, calabreses e sicilianos fazem uma apresentação de luta com facas segundo as regras dos quatro Estados do submundo meridional (o Estado siciliano, o Estado calabrês, o Estado apuliense, o Estado napolitano): sicilianos contra apulienses, apulienses contra calabreses. Sicilianos e calabreses não competem, porque entre os dois Estados o ódio é muito forte e até mesmo uma apresentação se torna séria e cruenta. Os apulienses são os mestres de todos: esfaqueadores insuperáveis, com uma técnica cheia de segredos e absolutamente mortal, desenvolvida segundo todas as outras técnicas, a ponto de superá-las. Um velho apuliense, de 65 anos, muito reverenciado mas sem dignidade “estatal”, derrota todos os campeões dos outros “Estados”; depois, no ponto culminante, esgrima contra um outro apuliense, jovem, de corpo muito bonito e de agilidade surpreendente, alto dignitário a que todos obedecem, e por meia hora demonstram toda a técnica normal de todas as escolas conhecidas. Cena verdadeiramente grandiosa e inesquecível, por todos os motivos, pelos atores e pelos espectadores: todo um mundo subterrâneo, complicadíssimo, com uma vida própria de sentimentos, de pontos de vista, de pontos de honra, com hierarquias férreas e formidáveis, se revelava para mim. As armas eram simples: as colheres, friccionadas na parede, de modo que a cal assinalava os golpes na roupa. Depois Bolonha, dois dias, com outras cenas; depois Milão. Certamente, estes cinco meses foram movimentados e ricos de impressões para um ou dois anos de ruminação. Isto explica como passo o tempo, quando não leio; volto a pensar em todas estas coisas, analiso-as minuciosamente, embriago-me com este trabalho bizantino. Além disso, tudo o que ocorre a meu redor e que consigo compreender se torna extremamente interessante. Certamente me controlo com freqüência, porque não quero cair nas monomanias que caracterizam a psicologia dos detentos; me ajuda nisso, especialmente, um certo espírito irônico e cheio de humor que me acompanha sempre. E você, o que é que faz e no que pensa? Quem é que lhe compra os romances de aventura, agora que não estou presente? Estou certo de que releu as admiráveis histórias de Corcoran e de sua amável Lisotta [5]. Tem ido, neste ano, às aulas na Policlínica [6]? E o professor Caronia, foi ele quem encontrou o bacilo do sarampo? Acompanhei suas lamentáveis complicações; e não compreendi, pelos jornais, se o professor Cirincione também foi suspenso [7]. Pelo menos em parte, tudo isto está ligado ao problema da máfia siciliana. É incrível como os sicilianos, da camada mais baixa até os níveis mais altos, são solidários entre si e como até mesmo cientistas de inegável valor andam perto do Código Penal em razão deste sentimento de solidariedade. Convenci-me de que, realmente, os sicilianos constituem um caso à parte; há mais semelhança entre um calabrês e um piemontês do que entre um calabrês e um siciliano. As acusações que os meridionais em geral dirigem contra os sicilianos são terríveis: acusam-nos até mesmo de canibalismo. Não teria acreditado nunca que existissem tais sentimentos populares. Penso que seria preciso ler muitos livros sobre a história dos últimos séculos, especialmente o período da separação entre a Sicília e o Mezzogiorno durante os reinos de José Bonaparte e Joachim Murat em Nápoles, para encontrar a origem destes sentimentos [8].

Estou entusiasmado com o gorro; onde é que conseguiu encontrá-lo? Acho que é o gorro de Orgosolo, vermelho e azul, que eu não conseguia mais encontrar. A bola de papelão não pode ser enviada e, do mesmo modo, você não pode me mandar o verniz: acredito que é absolutamente impossível, especialmente o verniz, que pode ser considerado como um veneno, segundo o regulamento, e exigiria toda uma série de controles muito complicados. Veja só: um outro objeto de análise muito interessante: o regulamento carcerário e a psicologia que amadurece entre o pessoal de guarda a partir do regulamento, por um lado, e a partir do contato com os prisioneiros, por outro. Eu acreditava que duas obras-primas (falo a sério mesmo) concentravam a experiência milenar dos homens no campo da organização de massa: o manual do cabo e o catecismo católico. Convenci-me de que se deve acrescentar, se bem que num campo muito mais restrito e de caráter excepcional, o regulamento carcerário, que contém verdadeiros tesouros de introspecção psicológica. Espero as cartas de Giulia: acredito que, depois de lê-las, conseguirei escrever a ela diretamente. Não pense que isto seja uma criancice. Uma notícia importante: de uns dias para cá tenho comido muito; no entanto, não consigo comer verduras; tenho me esforçado muito, mas desisti porque sinto terríveis engulhos. E, apesar de tudo, não consigo esquecer que você talvez venha e que talvez (ai de mim) nos possamos ver, ainda que por alguns minutos. Abraços,

Antonio

Notas

[1] O primeiro requerimento para usar caneta, tinta e papel, apresentado ao juiz Macis em março de 1927, é o doc. 3, apêndice 1, v. 2, p. 440.

[2] Esta descrição detalhada do período de prisão foi retida pelas autoridades. Tatiana só receberia esta carta em 4 de julho de 1928 (cf., também, carta 34).

[3] Enrico Ferrari (cf. carta 8, n. 4).

[4] A Cirenaica, especialmente a capital e o porto de Bengasi, estava sob o domínio italiano desde a guerra líbica, em 1912. Os beduínos mencionados provavelmente estavam detidos por combater a administração colonial italiana.

[5] Referência a um célebre livro para jovens, Les merveilleuses aventures du capitaine Corcoran, publicado em 1867 por Alfred Assolant (1827-1886). Lisotta é o tigre-fêmea, companheiro de aventuras de Corcoran.

[6] Bióloga, Tatiana havia ensinado ciências naturais no Instituto Internacional Crandon, em Roma, e se interessava pela medicina, o que explica a pergunta de Gramsci as demais referências. “Amiga, e amiga entusiasmada, de médicos e enfermeiros” – assim ela é lembrada por Nilde Perilli (Gramsci vivo nelle testimonianze dei suoi contemporanei, cit., p. 159). Sobre as aulas na Policlínica, há informação direta numa carta de Tatiana aos parentes de Moscou, em 1925: “Peço-lhes que levem em conta meus conselhos, que têm algum fundamento, já que estudei um pouco e sempre estive no campo da medicina. Bem sabem que até terminei os cursos, só não tive a possibilidade de prestar os exames” (Lettere ai familiari, cit., p. 16).

[7] Respectivamente, Giuseppe Caronia e Giuseppe Cirincione, ambos da Universidade de Roma. Caronia havia sido suspenso das atividades docentes por causa de problemas com pacientes internados na sua clínica. Seria reitor da Universidade entre 1944 e 1947.

[8] Durante o período napoleônico, a Itália Meridional esteve sob os governos de José Bonaparte (1806-1808) e de Joachim Murat (1808-1815). Em Nápoles, Murat promoveu algumas reformas segundo os princípios “franceses”, enquanto a Sicília tornou-se bastião da monarquia dos Bourbons e se afastou ainda mais do reformismo europeu do tempo.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.


As cartas do cárcere (PDF AQUI), de Antonio Gramsci constituem uma preciosa chave para a leitura dos "Cadernos". Nelas o pensador vai, dialeticamente, descrevendo a sua trajetória e traçando a sua autobiografia política, intelectual e moral. Esta nova edição brasileira das "Cartas do Cárcere" foi organizada por Luiz Sérgio Henriques, editor da revista eletrônica "Gramsci e o Brasil", com a colaboração de Carlos Nelson Coutinho, professor titular da UFRJ.



domingo, 5 de julho de 2015

chico buarque - mulheres de Atenas


Mulheres de Atenas, Chico Buarque

* Chico Buarque

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem imploram
Mais duras penas; cadenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Sofrem pros seus maridos
Poder e força de Atenas

Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam, sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas, obscenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas, Helenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas:
Geram pros seus maridos
Os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não tem sonhos, só tem presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos
Heróis e amantes de Atenas

As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro, se encolhem
Se conformam e se recolhem
Às suas novenas, serenas

Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos
Orgulho e raça de Atenas

Mulheres de Atenas, Chico Buarque
Um documento interessante: "Análise da letra de Mulheres de Atenas de Chico Buarque e Augusto Boal", Professor José Atanásio Rocha URL: https://web.archive.org/web/201108250... (consultado em 23711/2014)