* Miguel Urbano Rodrigues
30.Jul.15 :
Curzio Malaparte foi um aventureiro
muito talentoso, frívolo, irresponsável, com uma imaginação prodigiosa. Brinca
com as palavras, com os sentimentos, com a História. O penúltimo capítulo de
Kaputt sobre a atmosfera humana que encontrou na Itália em guerra é talvez o
mais malapartiano do livro. Com uma ironia cínica esboça o quadro de uma
sociedade decadente, de uma aristocracia agónica, fundida com uma burguesia
igualmente corrupta e venal.
Ao abrir uma edição de Kaputt,* de
Curzio Malaparte, pensei que iria reler o livro. Engano. Logo na introdução
percebi que o desconhecia. Recordei a admiração que senti na juventude pelo
autor de A Pele.**
Kaputt (palavra derivada do
hebraico antigo) não é propriamente um romance. Escrito na primeira pessoa, não
cabe em géneros literários tradicionais. Não é também uma narrativa, mas uma
mistura de reportagem, autobiografia e ensaio. Malaparte escreve como um
correspondente de guerra que era simultaneamente oficial do exército italiano;
escreve como espectador que condena a guerra.Na agressão alemã à União
Soviética esteve em muitas frentes, da Roménia à Finlândia.
Kaputt é uma miscelânea de estilos
e temas dificilmente imaginável. A guerra, que lhe inspira repugnância e
piedade, está omnipresente, mas são muitos os temas que aborda na maior parte
do livro. Malaparte é um escritor barroco que domina um vocabulário riquíssimo,
floreado, metafórico, com toques musicais.
As transposições, frequentes e
inesperadas, são muitas vezes desconcertantes. De diálogos na Suécia com um
irmão do rei salta para Capri, Paris, Roma, Belgrado, Berlim, Helsinki, Jassy
na frente da Moldávia, para o ghetto de Varsóvia, a Lapónia finlandesa ou o
cerco de Leninegrado.
Hans Frank é uma personagem
importante. O retrato que apresenta do gauleiter nazi da Polonia é devastador.
Mas convive com ele amigavelmente, participa nos seus banquetes e nos do corpo
diplomático. O leitor sente que ele se move com prazer nos amores e mexericos
da «alta sociedade» da Europa em guerra.
Kaputt é um livro cruel e o autor
um cínico que cultiva a piedade, vive o medo e a angústia.
A sua crueldade é marcada por um
humor negro, por vezes sarcástico. Como no episódio do cesto com olhos humanos
oferecidos ao croata Ante Pavlich pelos seus ustachis. Ou na estória do bordel
de Soroca, instalado pelos SS com jovens judias romenas que satisfaziam em
média diariamente 50 oficiais e soldados cada uma e apos três semanas eram
fuziladas por imprestáveis.
A personagem e o escritor são um
poço de contradições.
Na juventude, Malaparte - filho de
um alemão e de uma italiana, batizado como Kurt Suckert- foi fascista,
participou da Marcha sobre Roma, embora o negue. Entusiasmou-se com Mussolini,
mas a admiração não tardou a ceder o lugar a sentimentos de desprezo e aversão.
Sempre inconstante, no final da vida aproximou-se do Partido Comunista
Italiano.
O seu primeiro livro, A Técnica do
Golpe de Estado, levou-o à prisão. Mas ele, ao contrário do que afirma (mente
despudoradamente), não cumpriu integralmente o desterro na ilha de Lipari, graças
à intervenção do seu amigo Ciano, genro de Mussolini.
Correspondente de guerra na frente
da Roménia, com a patente de capitão, as suas reportagens desagradaram aos
alemães. Foi afastado, mas voltou e teve acesso à intimidade de altas patentes
da Wehrmach e das SS durante a agressão à URSS.
Não consegue ocultar a sua
cumplicidade, disfarça-a com um humor macabro. O horror da guerra toca o leitor
em páginas em que desfilam cadáveres putrefactos, cavalos mortos, cemitérios
nauseabundos, mulheres violadas pela soldadesca.
O escritor foi um aventureiro muito
talentoso, frívolo, irresponsável, com uma imaginação prodigiosa. Brinca com as
palavras, com os sentimentos, com a História.
O penúltimo capítulo de Kaputt
sobre a atmosfera humana que encontrou na Itália em guerra é talvez o mais
malapartiano do livro. Com uma ironia cínica esboça o quadro de uma sociedade
decadente, de uma aristocracia agónica, fundida com uma burguesia igualmente
corrupta e venal. Nos salões do Palácio da princesa Isabel Colonna altos
dignitários do regime e diplomatas, a principiar pelo ministro Galleazzo Ciano,
criticam alegremente o fascismo, ridicularizam Mussolini e Hitler. Mas não o
fazem por patriotismo. Olham para o próprio povo com desprezo. Essa classe
social está apodrecida até à medula. Falta-lhe energia para conspirar; cultiva
a intriga, a felonia, numa vertigem de festas quase orgíacas, encharcada em
whisky e champagne.
Malaparte pinta um retrato
demolidor dessa gente.
Em A Pele, escrito anos depois,
retoma o tema, mas situa a ação na Nápoles recém-libertada que lhe inspira
piedade e paixão.
Inventa personagens que convivem
com as reais. O leitor não consegue separar o que é forjado daquilo que o autor
viu e viveu.
Em Kaputt a sua intimidade com
generais e altos funcionários nazis é instrumental, empurra o leitor para a
condenação da casta nazi, monstruosa, desumana.
Em A Pele o elogio constante do
povo americano encobre mal o seu desprezo irónico quase afetuoso pela
ignorância, ingenuidade e primarismo dos generais da USS Army e do seu corpo de
oficiais.
Malaparte fascina pelo talento e
erudição, mas simultaneamente inspira desconfiança, um sentimento próximo da
repugnância pela sua leviandade.
Morreu em Roma, aos 59 anos, no
auge da popularidade. Pergunto: se vivesse alguns anos mais, que rumo tomaria a
obra deste grande escritor contraditório, um dos maiores da sua época? Não
consigo imaginar. Um abismo separa a Técnica do Golpe de Estado de Kaputt, do
jovem fascista que admirava Mussolini e este do amigo de Togliatti.
*Kaputt, Curzio Malaparte,Editora
Denoel,Paris,1946
** La Peau, Curzio Malaparte,
Editora Denoel, Paris,1959
___
Vila Nova de Gaia e Cascais, Junho
e Julho de 2015
http://www.odiario.info/?p=3724
Sem comentários:
Enviar um comentário