“Cinco Esquinas”, de Mario Vargas Llosa
L
eio tudo o que Vargas Llosa escreve. Tudo e não deixo passar muito tempo; leitor fiel, espero sempre o próximo livro. Desta vez, foi uma desilusão. Cá fico à espera do próximo e passo a explicar.
Recentemente, discutindo o lugar de vultos de direita na cultura moderna (o tema era Céline, o que é certamente um caso extremo de um grande escritor que era não só anti-semita como pró-petainista e pró-nazi, mas poderiam ter sido discutidos os exemplos de Ezra Pound, ou os casos diferentes de Fernando Pessoa ou de Almada Negreiros) apresentei também o caso de Vargas Llosa, certamente diverso dos anteriores, até porque o seu tempo é outro. A questão é relevante porque ele a tornou relevante: ele foi esquerdista e pró-castrista (visitou Portugal na leva de entusiasmo que trouxe Sartre e Beauvoir, entre tantos outros, logo depois do 25 de Abril), depois reaccionário e liberal, para agora se distanciar um pouco do seu activismo político, que o levou mesmo a uma falhadíssima candidatura à presidência do seu país – e foi sempre um grande escritor.
Será então que a sua visão do mundo, que tanto mudou, influenciou ou moldou a escolha dos seus temas, ou a sua escrita? A resposta só pode ser afirmativa. E, no entanto, os livros são de tal grandeza que ganham vida, os personagens são figuras verdadeiras na sua história, a escrita é sem concessões a facilidades. É isso a marca da literatura gigante.
“A Guerra do Fim do Mundo”, um dos meus preferidos, é um monumento. Como os seus leitores sabem, é a história da revolta de Canudos, que foi contada por Euclides da Cunha, mas em Vargas Llosa foi romanceada num épico deslumbrante sobre a realidade da vida dos camponeses no sertão, sobre o milenarismo e a utopia religiosa que procurava uma libertação espiritual e da vida dos escravos e sofridos da terra, nos últimos dias do século XIX. É um dos poucos exemplos da grande literatura que demostra que só um drama é capaz de narrar uma revolução popular e que nos sabem fazem sentir esse tempo de grande tragédia.
Vargas Llosa tratou de novo a utopia no livro que se seguiu à “Guerra”, “A História de Mayta”, mas também mais tarde, n’“O Sonho do Celta”, talvez em ambos os casos com menos esplendor. Quando aqui chegou, já vinha de créditos firmados: livros anteriores, como a “Casa Verde” ou “Conversa na Catedral”, já tinham demonstrado o talento enorme do escritor.
E, se há um discurso político nos seus livros, é uma pulsão popular e contra tiranias: na “Festa do Bode” procura um ajuste de contas histórico com um ditador, com a memória do regime sinistro de Trujillo na República Dominicana – e o fim do ditador. O seu último livro, “Cinco Esquinas”, é um outro ajuste de contas, desta vez com o ex-presidente do seu país, Fujimori, que governou num período de repressão e guerrilha, e que veio a ser condenado muito mais tarde por corrupção. A história é vivida em dois universos: o de duas famílias da burguesia peruana e o de um pasquim infame, um jornal manipulador que vai acabar por constituir uma ameaça contra o poder do tirano, apressando a decadência do regime e do seu executante, o “doutor”, o chefe do serviço secreto. A história amorosa entre as distintas e ociosas senhoras pode surpreender a leitora e o leitor habitual de Vargas Llosa, porque encontrarão um erotismo e suave atrevimento que é novidade no autor. Mas a trama é ingénua, com a transfiguração de uma jornalista do pasquim na coveira do regime, passando de um jornalismo de sarjeta para uma grande causa vingadora. Falta nisto tudo alguma da força sincera e arrebatadora dos anteriores livros de Vargas Llosa, por isso adivinho que os leitores ficarão decepcionados quando fecharem a última página. Assim aconteceu comigo, confesso.
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