Opinião
* Isabela Figueiredo
Escritora, vencedora do Prémio Urbano Tavares Rodrigues
Tenho pactuado com uma ilegítima apropriação do tempo e trabalho do cliente. Quero ser atendida por pessoas verdadeiras
09 janeiro 2025
Não há burguesa arruinada que não sonhe com pechinchas em saldos. De maneira que lá fui, com pouco tempo, mas cheia de boa vontade. Olho para os carros de roupa pendurada em cabides, onde é necessário passar dezenas de peças até encontrar uma ao meu gosto e tamanho, como olharia para as prateleiras de uma loja de bricabraque ou de velharias e antiguidades. Tanto mundo! A peça solta e única, injustamente rejeitada por causa de uma cor berrante ou de um feitio estrambólico, ou seja, pela sua singularidade, é um brinde e uma vitória.
Estou consciente de que o pronto a vestir barato tem a marca da sociedade de consumo e se tornou politicamente incorreto. Mas uma pessoa, uma vez por ano, tem direito ao seu prazer culposo. Ao gesto vão, superficial, à descida ao povão mais trash. Por favor. Para me desculpar, declaro que a Agustina partilhava este gosto. Encontrei-a nos saldos do Chiado, quando foi diretora artística do Teatro Nacional D. Maria II. Esgaravatava numa caixa de lenços, écharpes e cachecóis, com entusiasmo, absorta nas delícias dos estampados e materiais. Permaneci a uma distância segura para não ser detetada, contemplando o seu prazer de final de tarde. Também imagino a Adília Lopes a perder-se numa loja de saias e casacos de mau gosto, alardeando boa disposição folclórica, mas não creio que gostasse de saldos. Não tinha paciência nem tempo a perder com vulgaridades. A Adília não era vaidosa, não queria parecer coisa alguma.
Visitei o Cortefidel. Comprei umas calças que não estavam em saldo para combinar com duas camisolas que estavam e que as pediam. Segui para a Lanydore e analisei a mercadoria. Muita coisa para senhoras de certa idade, que toda a gente sabe não ser o meu caso. Tudo em bom, mas muita renda, muito veludo sem rasgo de talento. Avancei para a Tara, onde a qualidade varia muito. Mas surpreendem-me alguns cortes, cores e materiais. Comprei umas leggings tcharan, que usarei com camisolas largas e acessórios surpreendentes, para finalmente compreenderem que sou superelegante e descontraída.
Percorri a loja, que é enorme, para chegar à caixa. O que existia em lugar de caixa era um espaço com oito computadores. Fiquei a olhar como um astronauta que não tirou o curso
Mas na Tara aconteceu-me uma surpresa: após escolher, percorri a loja, que é enorme, para chegar à caixa e pagar. Quando a encontrei, ao contrário das lojas anteriores, não havia quem prestasse assistência aos clientes. Não acredito que não existisse uma pessoa, mas não estava visível. O que existia em lugar de caixa era um espaço com oito computadores. Fiquei a olhar para o cenário metálico como um astronauta que não tirou o curso. Procurei ajuda. Só havia clientes e máquinas. Respirei fundo e dispus-me a lidar com a situação. Aproximei-me de um terminal e analisei o dispositivo. Procura perceber para que serviam os orifícios x e y, mais o tanque, que parecia um tanque para lavar roupa. Entretanto, a máquina leu o código de barras das minhas leggings, sem o ter encostado. Atentei no leitor de códigos, um espelho negro, sem compreender. A máquina pediu-me para avançar, o que fiz. Quer fatura-recibo? Clique em “sim”. Qual é o seu número de contribuinte? Digite. Qual é o seu código postal? Digite. Quer saco? Quer grande ou pequeno? Se não quer, avance. Quer pagar assim, assado ou frito e cozido? Se for assim, encoste o cartão de débito ao terminal. Estamos a imprimir a sua fatura. Agora, encaixe o alarme na abertura com o formato da imagem e proceda de forma análoga para o soltar. Soltou? Encaixe no depósito. Obrigada e boa viagem.
Fiquei pasmada. Saí da loja pensando que tinha realizado um trabalho que não me pertencia. Não tenho de digitar o meu número de contribuinte nem de tirar alarmes. Há funcionários para esse serviço que dão pelo nome de funcionários de caixa. Esta loja abusou do meu apetite pelas leggings. Devia ter saído quando vi que os funcionários tinham sido substituídos por terminais automáticos. O mais grave foi naquele momento, foi o meu sentido crítico ter ficado anestesiado pela euforia dos saldos. Fiquei pensativa e zangada. Recuei no tempo e lembrei-me que na Decatone, de desporto, também fui surpreendida por máquinas semelhantes, embora com assistente. Mais: no Le Roi Merlã e no Ocham, há muito tempo que o faço. Quantas vezes passei códigos de barras e lancei dados nas estúpidas máquinas que nos dizem “ponha o produto” e “tire o produto”? Percebi que tenho pactuado com o que penso ser uma ilegítima apropriação do tempo e trabalho do cliente. Tenho validado esse sistema. Não hesito em afirmar que deveríamos abdicar de consumir em lojas que nos pedem, não só que lhes paguemos, mas que trabalhemos para elas. Não nos cabe e a quantidade de postos de trabalho que eliminam é devastadora. Quero ser atendida e fazer perguntas a pessoas verdadeiras, que respondam com a sua natural simpatia, indiferença ou antipatia.
Avancei para a Pull&Fear, sem interesse. Deambulava, pensativa. Ao passar num certo ponto da loja deparo-me com o mesmo cenário: cinco caixas de pagamento automático na qual cada cliente trabalhava aplicadamente. E pensei “que tal boicotarmos estas lojas?” Que tal deixar de frequentar as que não aceitam dinheiro, só cartão ou vice-versa? São inaceitáveis práticas comerciais que desrespeitam o consumidor. Mais importante do que a ação das associações de defesa do consumidor é a nossa. Pensemos nisto a sério.
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