* Nuno Pacheco
Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados agora “a
escrever como se fala.” Será?
9 de
Fevereiro de 2017, 8:00
No
título desta crónica não há uma única palavra correctamente escrita. No
entanto, se ultrapassarmos a estranheza da grafia, ele soará correcto. A que
propósito vem isto? De uma guerra que, sendo antiga, tem minado as actuais
discussões ortográficas. Chamem-lhes “sónicos” ou “foneticistas”, há muito que
alguns insistem na utilidade de “escrever como se fala” ou em submeter a
escrita à fonética. Já em meados do século XVIII, no seu Verdadeiro
Método de Estudar, Luís António Verney defendia: “Para que guardemos
certeza, ou verdade, em nossa escritura, assim devemos escrever como
pronunciamos & pronunciar como escrevemos.” Esta sugestão tinha um
pressuposto: “A simplificação da ortografia contribui para a democratização
cultural, na medida em que desvincula a escrita portuguesa das línguas
clássicas.” Não vingou.
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Mas a
“teoria” tem voltado mil vezes à carga. Defensável? Alguns exemplos, curiosos.
Gonçalves Viana, o mentor da feroz reforma ortográfica portuguesa de 1911,
reparou um dia que o simples nome “Hipólito” poderia, “sem alteração de
pronúncia”, escrever-se de 192 maneiras consoante as grafias usadas no século
XIX: Hypólito, Ypólito, Ipólito, Epólito, Hipolihto, Yppóllitho, etc. Já José
Pedro Machado escreveu, no seu opúsculo A Propósito da Ortografia
Portuguesa (1986) que casa pode escrever-se de várias
maneiras (também sem qualquer alteração de pronúncia), casa, cása,
caza, kasa, káza, kása, etc, “embora para a grafia oficial só uma pode ser
considerada correcta.” Portanto, com várias grafias, mantemos o som. Mas a
ortografia impõe um só modo de escrita num determinado espaço geográfico. Os
“sónicos” ou “foneticistas” viram esta lógica do avesso: se duas palavras
diferentes soam da mesma maneira, escrevam-se da mesma maneira. Assim se
justifica ótico/ótico por óptico/ótico ou ato/ato por acto/ato.
Ignorando a muito instrutiva etimologia, lá somos forçados “a escrever como se
fala.” Será?
Vamos
por partes. No inglês, por exemplo, knight (cavaleiro) e night (noite)
soam da mesma exacta maneira. Se na escrita tais palavras fossem igualizadas
perdia-se o sentido de cada uma, como se perde no português igualizando ato e acto, ótico e óptico.
Em francês, citando um texto de Raul Machado (1958), um mesmo som, semelhante
ao é aberto português, escreve-se de mais de vinte maneiras: er,
es, ès, et, êt, ets, est, aî, aie, aient, ais, ait, ay, etc. Se uma reforma
ortográfica tentasse um dia igualizá-las na escrita, jamais os franceses se
entenderiam.
Então
por que motivo se tenta em Portugal, impor tais mudanças? Para ficarmos iguais
ao Brasil, claro. Parece a velha anedota: então porque não ficamos? Simples:
porque se trata de uma mirabolante utopia sem possibilidade de concretização
prática. Ah, dizem alguns, mas a Língua Portuguesa é a única com duas
ortografias! Sim? Pois saibam que o Espanhol tem 21, o Inglês tem 18, o Árabe
tem 16, o Francês tem 15, o Sami tem 9, o Sérvio tem 8, o Alemão e o Chinês têm
5 cada e até o Mongol e Quechua andino têm cada qual 3 variantes. Ortográficas,
sim.
E para
quem acha que o inglês se escreve da mesma forma em todo o sítio, aqui vai uma
pequena lista das largas centenas de diferenças ortográficas entre o inglês
americano (o dos EUA) e o inglês padrão europeu (o de Inglaterra, já que na
Irlanda ou na Escócia há ainda outras variantes). A lista foi coligida também
pelo saudoso filólogo José Pedro Machado (1914-2005), na obra citada, e a
primeira palavra de cada conjunto é, aqui, a americana: color, colour;
center, centre; offense, offence; bark, barque; check, cheque; connection,
connexion; cipher, cypher; draft, draught; fuse, fuze; gray, grey; curb, kerb;
hostler, ostler; jail, gaol; kilogram, kilogramme; lackey, lacquey; mold,
mould; pigmy, pygmy; plow, plough; program, programme; quartet, quartette;
reflection, reflexion; story, storey. E muitos, mas mesmo muitos,
eteceteras.
O mesmo
sucedeu, sucede e sucederá entre o português europeu (o de Portugal) e o
americano (o do Brasil). Aliás, veja-se bem o ridículo da “unificação” proposta
pelo acordo ortográfico de 1990: de acordo com números “oficiais”, a grafia
portuguesa e brasileira era igual em 96% das palavras e com o acordo será
igual em… 98%! Ou seja: o actual caos ortográfico, as guerras e animosidades
inúteis que por aí vão, valem uns míseros dois por cento. Haverá nome para
isto? Há, e não é bonito. Mas vale a pena pensar no caso, seriamente. E agir em
conformidade.
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