ANDRÉ LAMAS LEITE
OPINIÃO
Tristes os povos e as cúrias que se
refugiam no saber livresco para, amiúde, ocultarem a falta de saber de
experiência feito, o conhecimento dos outros, a inteligência emocional, a
empatia, as hoje ditas soft skills, amiúde mais importantes que uma
licenciatura.
29 de Abril
de 2018, 11:23
Ao ler a mais recente exortação apostólica de Francisco, Gaudete et
exsultate!(Alegrai-vos e exultai!, Mt 5, 12), dada
no Dia de São José, com o seu tão humano apelo à santidade na vida quotidiana,
não pude deixar de pensar nas críticas que têm sido dirigidas ao sucessor de
Pedro e em um conjunto de vícios de que padecem tantos sectores da nossa
sociedade, em especial as Universidades.
Em surdina, ou nem tanto, muitos criticam Francisco por não ter a dimensão
intelectual de Bento XVI. Não sei bem o que é isso e não me lembro de me terem
alguma vez ensinado que no CV de um Papa tem de constar uma
série de pós-doutoramentos em qualquer um dos ramos em que se divide a
Teologia. Aliás, conhecemos todos grandes sacanas diplomados, afogados em graus
académicos e que pouco mais fazem que infernizar a vida dos demais. Eça, sempre
ele, captou-o na perfeição: é o tipo (ou a tipa) que não cumprimenta a senhora
da limpeza e que selecciona com quem se relaciona em função do que lhe podem
render em prebendas económicas ou de ascensão social. É o indivíduo que se
fecha num discurso hermético em aulas soporíferas, propositadamente ou – quase
sempre – por não ter nada a transmitir, excepto uma espécie de “masturbação
mental” circular, um conjunto de palavras bonitas, adquiridas em dicionários de
antanho, que podem até captar alguma atenção junto de aprimorados estetas, mas
que não cumprem o seu objectivo.
Outra marca desta pretensa superioridade, típica do Direito, é a nota de
rodapé. O texto pode até não conter uma ideia ou um bom resumo do estado da
arte, mas está enxameado de citações, tanto mais valiosas quanto mais páginas
encherem e mais autores estrangeiros convocarem. E não se pense que existe sempre
uma ligação incindível entre o texto e a nota de rodapé que, na verdade, devia
limitar-se a complementar e a ilustrar o primeiro. Nada disso. Formou-se uma
espécie de convenção não escrita no sentido em que esse espaço lúdico é usado
para demonstrar conhecimento ou erudição sobre aspectos que só levemente – às
vezes, nem de raspão – contendem com o essencial da mensagem. E se houver
citações em Alemão, é o delírio, como se apenas aquele povo tivesse sido dotado
de inteligência e a coisa mais banal em qualquer ramo de Direito, quando
escrita na língua germânica, ganha logo outra pátina.
Voltemos a Francisco. Lemos que uma parte da Cúria está insatisfeita com a
tal falta de pátina, com um alegado exagero na abertura ao mundo e à reflexão
sobre a mudança de alguns aspectos atinentes a regras provenientes da Tradição
e não das Escrituras. Como assistimos à pretensa defesa do actual Papa pelo
Emérito, que terá escrito sobre Francisco que o seu pensamento teológico é
profundo, o que teria sido encarado como uma espécie de crítica velada. Faltam
notas de rodapé a Francisco. Ao ler esta e outras exortações apostólicas de
Bergoglio, entendo-as, nelas reconheço o ser humano como eu que me leva a
reflectir sobre as hipóteses que tenho de mudar, lentamente, passo a passo,
admitindo os meus lados mais escuros e, depois, tentando iluminá-los à luz da
mundividência cristã.
Para além de relembrar que Francisco é Jesuíta e que esta congregação não é
propriamente conhecida por ser constituída por patetas, a soberba intelectual
dos críticos, que, como disse, se repete nos demais campos societais, é a
melhor prova que o caminho para a santidade começa por renunciar a essa soberba
e aceitar a humildade. O conhecimento só existe ao serviço dos outros e, que eu
saiba, a importância de um Papado não se mede pelas notas de rodapé de
encíclicas, exortações apostólicas ou cartas pastorais. Mede-se pela capacidade
de exemplo, de motivação, de denúncia, de perdão, de amor e misericórdia
infindos, verdadeiro eixo de toda a mensagem cristã.
Tantas e tantos que sentiram o apelo à santidade e nem sequer sabiam ler ou
escrever. E, no entanto, foram capazes de actos tão nobres e humanos que nem
sequer passariam pela cabeça de gente que, como em Portugal, adora os títulos
académicos, verdadeiro sinal de país terceiro-mundista. Lembro-me sempre do que
me contou a minha prima Arabela (Paula para a família mais próxima), uma vez
que foi ao cabeleireiro, em Coimbra, cidade dos “doutores”. Uma certa senhora
tentou passar-lhe à frente. Obviamente, a minha prima perguntou à cabeleireira
a razão de não ser seguida a ordem de chegada. “A Sra. é Dra. e tem pressa para
um compromisso”. A minha prima, que não se deixa ficar, atirou rapidamente:
“Não sabia que para vir ao cabeleireiro era preciso trazer a certidão de
habilitações! Também sou licenciada e cheguei primeiro”. E que não fosse, como
é evidente.
Tristes os povos e as cúrias que se refugiam no saber livresco para,
amiúde, ocultarem a falta de saber de experiência feito, o conhecimento dos
outros, a inteligência emocional, a empatia, as hoje ditas soft skills,
amiúde mais importantes que uma licenciatura. Entendamo-nos: o estudo é
essencial para nos prepararmos a ler e intervir sobre o mundo, mas não pode ser
escudo que oculte um coração mirrado ou a prepotência de tantos. A substância
sobre a forma, sempre. Se qualquer um de nós tiver de escolher outrem para
trabalhar ou para um qualquer tipo de relação – seja Papa, ou uma mulher ou
homem “comuns” –, por certo prefere alguém que tenha espaço para aprender,
eventualmente menos preparado do prisma técnico, mas que consideramos “boa
pessoa”. Os crápulas serão sempre crápulas e um trabalhador que ainda tem de
aprender, dali a algum tempo, é alguém competente e um bom ser humano. É isso
que engrandece qualquer CV.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
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