Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol, membro da chamada Geração de 27, autor de livros como o Romancero gitano (1928), Poeta em Nueva York(1940) e Llanto por Ignacio Sánchez Mejía (1935). Morreu fuzilado, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, por ser homossexual.
É um dos autores fundamentais da poesia do século 20 e exerceu influência em diversos autores de língua espanhola, como Pablo Neruda. Sua lírica incorporou temas e recursos poéticos que vão das canções populares espanholas até a cultura cigana andaluza, o barroco de Góngora e o surrealismo.
Letras Vermelhas traz esta semana em Prosa, Poesia & Arte sete poemas de Federico extraídos do livro Poeta em Nova York, traduzidos pelo poeta brasileiro Claudio Daniel.
Apesar de trazer sempre poemas de jovens poetas, Letras Vermelhas inova e agora abordará também o trabalho de poetas estrangeiros, cuja tradução tenha sido feita por poetas brasileiros. Nesta primeira publicação Claudio Daniel apresenta Federico Garcia Lorca.
Leia os poemas na íntegra:
Volta de passeio
Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até a serpente
e as formas que buscam o cristal,
deixarei crescer meus cabelos.
Com a árvore de cotos que não canta
e o menino com o branco rosto de ovo.
Com os animaizinhos de cabeça rota
e a água esfarrapada dos pés secos.
Com tudo o que tem cansaço surdo-mudo
e borboleta afogada no tinteiro.
Tropeçando com meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!
1910
Intermédio
Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.
Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.
Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.
Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.
Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!
Fábula e roda dos três amigos
Henrique,
Emílio,
Lorenzo.
Estavam os três gelados:
Henrique pelo mundo das camas;
Emilio pelo mundo dos olhos e das feridas das mãos,
Lorenzo pelo mundo das universidades sem telhados.
Lorenzo,
Emilio,
Henrique.
Estavam os três queimados:
Lorenzo pelo mundo das folhas e das bolas de bilhar;
Emílio pelo mundo do sangue e dos alfinetes brancos;
Henrique pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados.
Lorenzo,
Emílio,
Henrique.
Estavam os três enterrados:
Lorenzo em um seio de Flora;
Emílio na hirta genebra que se esquece no copo;
Henrique na formiga, no mar e nos olhos vazios dos pássaros.
Lorenzo,
Emílio,
Henrique,
foram os três em minhas mãos
três montanhas chinesas,
três sombras de cavalo,
três paisagens de neve e uma cabana de açucenas
pelos pombais onde a lua pousa plana sob o galo.
Um
e um
e um.
Estavam os três mumificados,
com as moscas do inverno,
com os tinteiros que o cão urina e o vilão despreza,
com a brisa que gela o coração de todas as mães,
pelas brancas quedas de Júpiter onde os bêbados merendam a morte.
Três
e dois
e um.
Eu os vi perdidos chorando e cantando
por um ovo de galinha,
pela noite que mostrava seu esqueleto de tabaco,
por minha dor cheia de rostos e pungentes lascas da lua,
por minha alegria de rodas dentadas e látegos,
por meu peito turvado pelas pombas,
por minha morte deserta com um só passeador equivocado.
Eu havia matado a quinta lua
e bebiam água pelas fontes os leques e os aplausos,
Leite morno encerrado das recém-paridas
agitava as rosas com uma larga dor branca.
Henrique,
Emílio,
Lorenzo.
Diana é dura
mas às vezes tem as tetas nubladas.
Pode a pedra branca pulsar com o sangue do cervo
e o cervo pode sonhar pelos olhos de um cavalo.
Quando se fundiram as formas puras
sob o cri-cri das margaridas,
compreendi que haviam me assassinado.
Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,
abriram os tonéis e os armários,
destroçaram três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram.
Porém se soube que a sexta lua fugiu torrente acima,
e que o mar recordou de imediato
os nomes de todos os seus afogados.
Poema duplo do Lago Eden
Nuestro ganado pace, el viento espira
Garcilaso
Era minha voz antiga
ignorante dos densos sumos amargos.
Eu a adivinho lambendo meus pés
sob as frágeis folhas molhadas.
Ai, voz antiga de meu amor,
ai, voz de minha verdade,
ai, voz de meu flanco aberto,
quando todas as rosas manavam de minha língua
e a céspede não conhecia a impassível dentadura do cavalo!
Está aqui bebendo meu sangue,
bebendo meu humor de menino pesado,
enquanto meus olhos se quebram no vento
com o alumínio e as vozes dos bêbados.
Deixai-me passar pela porta
onde Eva come formigas
e Adão fecunda peixes deslumbrados.
Deixai-me passar, homenzinhos de cornos,
ao bosque do espreguiçar
e dos alegríssimos saltos.
Eu sei o uso mais secreto
que tem um velho alfinete oxidado
e sei do horror de uns olhos despertos
sobre a superfície concreta do prato.
Porém não quero mundo nem sonho, voz divina,
quero minha liberdade, meu amor humano
no canto mais escuro da brisa que ninguém deseje.
Meu amor humano!
Esses cães marinhos se perseguem
e o vento espreita troncos descuidados.
Oh, voz antiga, queima com tua língua
esta voz de folha de Flandres e de talco!
Quero chorar porque tenho vontade
como choram os meninos do último banco,
porque eu não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha,
mas um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado.
Quero chorar dizendo meu nome,
rosa, menino e abeto à margem deste lago,
para dizer minha verdade de homem de sangue
matando em mim a burla e a sugestão do vocábulo.
Não, não, eu não pergunto, eu desejo,
minha voz libertada que me lambe as mãos.
No labirinto de biombos é minha nudez quem recebe
a lua de castigo e o relógio coberto de cinzas.
Assim eu dizia.
Assim eu dizia quando Saturno deteve os trens
e a bruma e o Sonho e a Morte estavam me buscando.
Estavam me buscando
ali onde mugem as vacas que têm patinhas de pajem
e ali onde flutua meu corpo entre os equilíbrios contrários.
Céu Vivo
Eu não poderei queixar-me
se não encontrei o que buscava.
Próximo das pedras sem sumo e dos insetos vazios
não verei o duelo do sol com as criaturas em carne viva.
Porém eu irei à primeira paisagem
de choques, líquidos e rumores
que tresanda a menino recém-nascido
e onde toda superfície é evitada,
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.
Ali não chega a geada dos olhos apagados
nem o mugido da árvore assasinada pela lagarta.
Ali todas as formas guardam entrelaçadas
uma só expressão frenética de avanço.
Não podes avançar pelos enxames de corolas
porque o ar dissolve teus dentes de açúcar,
nem podes acariciar a fugaz folha do feto
sem sentir o assombro definitivo do marfim.
Ali sob as raízes e na medula do ar,
comprende-se a verdade das coisas equivocadas.
O nadador de níquel que espreita a onda mais fina
e o rebanho de vacas noturnas com patinhas vermelhas de mulher.
Eu não poderes queixar-me
se não encontrei o que buscava;
porém irei à primeira paisagem de umidades e pulsações
para entender que o que busco terá seu alvo de alegria
quando eu voar mesclado com o amor e as areias.
Vôo fresco de sempre sobre leitos vazios,
sobre grupos de brisas e barcos encalhados.
Tropeço vacilante pela dura eternidade fixa
e amor ao fim sim alvorecer. Amor, Amor visível!
Eden Mills, Vermont. 24 de agosto de 1929.
Paisagem com duas tumbas e um cão assírio
Amigo,
levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio
As três ninfas do câncer estiveram dançando,
meu filho.
Trouxeram umas montanhas de lacre vermelho
e uns lençóis duros onde o câncer estava dormindo.
O cavalo tinha um olho no pescoço
e a lua estava num céu tão frio
que teve de rasgar seu monte de Vênus
e afogar em sangue e cinza os cemitérios antigos.
Amigo,
desperta, que os montes ainda não respiram
e as ervas de meu coração encontram-se em outro lugar.
Não importa que estejas cheio de água do mar.
Eu amei por muito tempo um garoto
que tinha uma plúmula na língua
e vivemos cem anos dentro de uma navalha.
Desperta. Cala. Escuta. Ergue-te um pouco.
O uivo
é uma longa língua roxa que deixa
formigas de espanto e licor de lírios.
Já vêm até a rocha. Não alargues tuas raízes!
Aproxima-se. Geme. Não soluces em sonho, amigo.
Amigo!
Levanta-te para que ouças uivar
o cão assírio.
Valsa nos ramos
Homenagem a Vicente Aleixandre por seu poema
O vale
Caiu uma folha
e duas
e três.
Um peixe nadava pela lua.
A água dorme uma hora
e o mar branco dorme cem.
A dama
estava morta no ramo.
A monja
cantava dentro da toronja.
A menina
ia do pinho à pinha.
E o pinho
buscava a pequena pluma do trinado.
Porém, o rouxinol
chorava suas feridas ao redor.
E eu também
porque caiu uma folha
e duas
e três.
E uma cabeça de cristal
e um violino de papel
e a neve apodrecia com o mundo
se a neve dormisse um mês,
e os ramos lutavam com o mundo
um a um
dos a dois
e três a três.
Oh duro marfim de carnes invisíveis!
Oh golfo sem formigas do amanhecer!
Com o muuu dos ramos,
com o ai das damas,
com o croo das rãs,
e o gloo amarelo do mel.
Chegará um torso de sombra
coroado de laurel.
Será o céu para o vento
duro como uma parede
e os ramos desgalhados
irão dançando com ele.
Um a um
ao redor da lua,
dois a dois
ao redor do sol,
e três a três
para que os marfins durmam bem.
http://www.vermelho.org.br/noticia/266001-1
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