OPINIÃO
O doido da família
O que se pede hoje aos discípulos de Jesus é que tenham suficiente loucura
para não se acomodarem à lógica dos donos deste mundo.
10 de Junho
de 2018, 6:24
1. A Catalunha continua a ser notícia
por vários motivos, sobretudo por razões de ordem política. Os meios de
comunicação portugueses não foram excepção, mas esqueceram a grande homenagem à
figura marcante da cultura catalã actual e de significação universal.
A Generalitat de Catalunya i l'Ajuntament de Barcelona estão a celebrar, em
2018, o Ano de Raimon Panikkar (1918-2010), centenário de um sábio do nosso
tempo [1]. Filho de pai indiano e hindu e
de mãe catalã católica
romana, nasceu em Barcelona, viveu na Índia e morreu rodeado da beleza em
Tavertet.
Era padre, cientista, filósofo, teólogo e místico. Sem deixar de ser
católico integrou, na sua identidade, vários elementos de outras crenças
religiosas. Como diz Ignasi Moreta, editor das suas Obras Completas,
das quais já saíram dez volumes, "era uma ponte entre o Oriente e o
Ocidente, entre as Letras e as Ciências, entre as expressões do Cristianismo,
do Induísmo, do Budismo e do Pensamento Secular".
Esta forma de viver, pensar e escrever evoca Ramon Llull (1232-1315), o
escritor, filósofo, poeta, missionário, teólogo, o símbolo cultural da
Catalunha. Nascido em Palma de Maiorca, na encruzilhada de três culturas –
cristã, islâmica e judia –, foi o criador da língua catalã literária, mas
também se exprimia, com elegância, em castelhano, latim, árabe e Langue d’oc.
Acerca de R. Panikkar surge sempre a pergunta: mas ele era católico ou
hindu? Não se pode dizer que fosse católico pela mãe e hindu pelo pai. A
religião não é uma herança de ordem genética. O sincretismo religioso foi
sempre mal visto, pois não parece exprimir uma identidade, mas uma confusão.
Talvez sim, talvez não. Não se exigiu aos primeiros discípulos de Jesus a
renúncia à condição judaica. Começaram por ser todos judeus de várias
tendências. O problema nasceu quando as portas e janelas, que a prática de
Jesus abriu, passaram a ser fechadas às outras tradições religiosas. Paulo de
Tarso, judeu de pura cepa, não aceitou que se fizesse depender a graça de Deus,
manifestada em Jesus de Nazaré, da condição judaica. A salvação não estava
ligada a uma condição étnica nem religiosa. Era universal como a graça de Deus,
que não faz acepção de pessoas e povos.
2. Quem abriu todos os horizontes foi
Jesus de Nazaré que viajou pouco, mas sabia muito. No texto do Evangelho de
hoje [2], existe uma polémica duríssima sobre esta questão. Começa com um
desentendimento familiar tão profundo que até julgavam que ele estava doido. É
dito textualmente: "ao verificarem o seu comportamento, os parentes saíram
para o deter, pois diziam, está fora de si." Qual era a
estranheza? A casa de família estava invadida por quem não era da família. A
família estava sem casa.
Mais adiante, voltaremos às razões desta confusão toda. No mesmo texto, é
dito que ele estava pior que doido, estava possesso de Belzebu. Era este que
lhe dava poder para expulsar os demónios.
Jesus observa aos escribas que estão a ser completamente parvos,
pois, se é Satanás a expulsar Satanás, é o império do diabo que se autodestrói.
Neste ponto, não é capaz de passar adiante: "tudo será perdoado aos
filhos dos homens, os pecados e blasfémias que tiverem proferido, mas quem
blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão, será réu de pecado para
sempre." Os senhores da inteligência da vontade e da acção de Deus estavam
a negar a evidência em nome da sua cegueira. Não há pior cego do que aquele que
não quer ver, como mostrará mais tarde [3].
S. Marcos vai radicalizar a questão central do universalismo cristão. Jesus
perturba a família que se quer fechar sobre si mesma. Os filhos de Deus não são
apenas os da própria família.
Maria e os familiares vão tentar encontrar-se com Jesus para esclarecer
esta situação. Diz o texto: "entretanto, chegaram a sua mãe e os seus
irmãos, que ficaram fora e mandaram-no chamar. A multidão estava sentada à sua
volta quando lhe disseram, a tua mãe e os teus irmãos estão lá fora à
tua procura e, olhando para aqueles que estavam à sua roda,
declarou: eis a minha Mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de
Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe."
Estava mesmo doido. Os limites do cristianismo não são as outras religiões
ou os ateísmos, etc.. São os que não reconhecem que ser irmão é a vocação de
todo o ser humano. Assim se responde aos que criticam Raimon Panikkar. O
cristianismo só tem um limite: a exclusão do outro, religioso ou
não.
3. Em nome do cristianismo, em nome
da sua exclusiva posse da verdade, foram muitas vezes condenadas as outras
religiões, pois a verdade e o erro não merecem o mesmo respeito.
Do anátema passou-se à tolerância. Não eram igualmente verdadeiras mas,
para superar as guerras de religião, o melhor era suportá-las. Mal menor.
O pluralismo humano e cultural apontava para algo mais positivo. Nasceu a
teologia sobre as outras religiões, baseada na pergunta: qual a significação
que a diversidade religiosa pode ter no plano de Deus?
Quando as religiões eram atacadas pelos mestres da suspeita,
alguns teólogos insistiram em mostrar que o cristianismo estava imune a esse
negativismo, pois não era uma religião. Nesta astúcia há algum fundamento. Por
fim, surge o diálogo inter-religioso como uma bênção. Se a
forma de viver como humanos é o diálogo, e fora do diálogo não há salvação, as
religiões devem dar o exemplo que lhes tem faltado.
Por vezes, as mesas-redondas que o devem favorecer, com a preocupação
de vender o seu peixe e mostrar as virtudes da própria
religião, esquecem o próprio diálogo. Este, para ser frutuoso, deve implicar em
todos a respectiva autocrítica e a vontade de conversão, de reforma. Um diálogo
autêntico altera os que nele intervêm. Não pode ceder à lógica dos debates
partidários, preocupados em vencer o adversário. Se a lógica do diálogo
inter-religioso é a escuta e a busca, é normal que os participantes possam
dizer no fim: estamos melhores, podemos continuar e alargar o caminho da
unidade na diferença.
O que se pede hoje aos discípulos de Jesus de Nazaré, o doido da
família, é que tenham suficiente loucura para não se acomodarem à
lógica dos donos deste mundo, à do carreirismo eclesiástico, à do poder das
religiões e que não atraiçoem o Pai Nosso que rezam de mãos dadas na Missa. Ou
será que Deus fora da Missa deixa de ter família?
[1] Raimon
Panikkar. Centenari d’un savi del nostre temps, FocNou, 2018, n.º 483. Ano
XLV
[2] Mc 3, 20-35
[3] Jo 9
[2] Mc 3, 20-35
[3] Jo 9
Colunista
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