* Álvaro Feijó
Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— “Quem merca os camarões” …
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar…
A Senhora dAgonia…
A quentura de Agosto…
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta…
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro…
e. . . “até mais ver” …
Vês! Eu sei a tua história…
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.
Textos e Obras Daqui e Dali, mais ou menos conhecidos ------ Nada do que é humano me é estranho (Terêncio)
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
quinta-feira, 22 de novembro de 2018
Manuel Freire: intervenção, música e poesia
- Manuel Pires da Rocha
Manuel Freire
O cantor é a voz dos poetas. Leitor e propagandista, useiro (e vezeiro, quando bom) das habilidades que são as da música, é dele a arte capaz de agitar pensamentos e emoções, ocultando-os (sendo preciso) na vibração das moléculas. Manuel Freire é leitor e é propagandista, mestre também no ofício de fundir palavras em melodias. E é também o timbre e o modo de cantar, grave e cheio, terno e incisivo, único e reconhecível entre a multidão de cantores em que, felizmente, Portugal calhou ser fértil.
Há 50 anos, num dos dias de 1968, entrava nas discotecas um pequeno disco de vinil preto de Manuel Freire que era, afinal, todo um programa de acção. As canções tinham por título Dedicatória (poema de Fernando Miguel Bernardes), Livre (poema de Carlos Oliveira), Eles (poema de Manuel Freire) e Pedro Soldado (poema de Manuel Alegre), mas três delas tomaram o nome que lhes foi dado pelos milhares de vozes que as cantaram. Dedicatória passou a ser Se Poeta Sou, Eles tornou-se Ei-los Que Partem, Livre ficou Não Há Machado Que Corte, e por estes nomes se deu cumprimento às cantigas que foram cantadas mil vezes, nos dias mais sombrios como nos mais luminosos. Só Pedro Soldado assim permaneceu, de tão clara ser a condição dos que se haviam de perder, em corpo ou em alma, nas ravinas da Guerra Colonial.
Manuel Freire trazia os flagelos da guerra e da emigração, a presença do povo e a luta pela liberdade para um palco de canções que ameaçava a compostura radiofónica em que reinavam as melodiosas distracções do nacional-cançonetismo. E levava as suas cantigas pelas colectividades, pelos encontros de democratas, pelas reuniões conspirativas onde marcavam encontro os afinados e os desafinados que, juntando vozes, iam somando cantigas às razões das suas lutas.
Como no Ateneu de Coimbra, no início dos anos de 1970, o salão cheio de gente. Era um tempo em que havia já mais canções do que as quatro daquele primeiro disco: Lutaremos Meu Amor, Sangue Não Dá Flor, Menina dos Olhos Tristes, Dulcineia. À entrada da Pedra Filosofal Manuel Freire dá conta, aos presentes, de um constrangimento que lhe tinha sido comunicado pelos dirigentes da colectividade: o Exame Prévio não lhe permite cantar o poema de Gedeão. É, porém, sabido - e ali se confirmaria -, que as canções grandes reagem com surpreendente facilidade aos impedimentos de ocasião, assim haja quem lhes justifique a função. A ordem censória proibia Manuel Freire de cantar, mas não de tocar. Naquele ajuntamento de insurrectos cantaram os que ali estavam, acompanhados à viola pelo silenciado cantor.
Ao longo dos 50 anos que decorreram desde a publicação do primeiro disco, Manuel Freire nunca foi só-cantor-compositor, repartindo-se por ofícios de outros entendimentos, desde a indústria à Sociedade Portuguesa de Autores. Nada que o tenha impedido de cantar em todo o lado, no Continente e nas Ilhas, nos países africanos por cuja independência também foi combatente, nas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Por todo o lado se faz acompanhar por António Gedeão, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Eduardo Olímpio, Sidónio Muralha, José Saramago, Vitorino Nemésio e os que mais virão.
Manuel Freire abre o livro, procura o poema, encontra os sons que o saibam dizer. Mas quando canta «não há machado que corte a raiz ao pensamento», há 50 anos como hoje, não se limita a ser a voz do poeta – é a voz da nossa voz.
http://www.avante.pt/pt/2347/argumentos/152240/Manuel-Freire.htm
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terça-feira, 20 de novembro de 2018
Ary dos Santos - Tourada
TOURADA (Festival da Canção 1973)
TOURADA
Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.
Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.
Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.
Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.
Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram as canções.
José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas
(organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho).
Lisboa, Edições Avante, 1995.
Escrita no final de 1972, "Tourada" foi a canção escolhida para representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção 1973, interpretada em português por Fernando Tordo.
A canção tem uma letra que foi claramente entendida em Portugal como uma metáfora em que se comparava a tourada ao decrépito regime ditatorial do Estado Novo, a canção é uma crítica à sociedade portuguesa daquele tempo:
Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.
Na letra faz-se uma crítica ao snobismo e hipocrisia da sociedade:
Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...
Critica-se as contradições existentes na sociedade e os lucros de alguns:
Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
Na letra faz-se uma alusão à chamada Primavera marcelista, uma pretensa mudança efetuada no governo de Marcelo Caetano (mudavam os nomes, por exemplo, censura passou a ter o nome de "exame prévio", mas na prática pouco mudava):
estamos na praça da Primavera.
Não se percebeu como é que a censura vigente na época, não conseguiu entender a mensagem transmitida pela letra que era uma crítica mordaz/sátira ao regime.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tourada_(canção)
A contestação ao Estado Novo e o 25 de Abril foram os momentos mais marcantes no que diz respeito à música de intervenção. Temas como "Grândola Vila Morena", de Zeca Afonso ou a "Tourada" de Fernando Tordo, tornaram-se intemporais e fizeram história.
Canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a revolução de Abril de 1974 como canções de intervenção são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada , possuem uma mensagem universalista, livre de qualquer constrangimento social.
A canção de intervenção tem um valor pedagógico notável, na forma como alerta o povo para as prepotências existentes, que constrangem o seu dia-a-dia. Não raro, a verdadeira mensagem era "camuflada" nos seus versos para poder passar pelo crivo da censura.
Carla Brito, “A canção enquanto arma - Música de intervenção” in Estórias da História, 23-03-2011
Em 1973, mais uma vez ganhou o Festival RTP da Canção com “Tourada”, uma das letras mais polêmicas entre as que ganharam o grande prêmio em toda a história do Festival. Na verdade, entre as concorrentes deste ano contavam-se quatro canções de autoria de Ary dos Santos.
É preciso abrir aqui um parêntesis na trajetória de Ary dos Santos para comentar-se que embora ele tivesse encontrado vários intérpretes para seus poemas, nenhum deles – nem mesmo Amália Rodrigues – foi tão importante para sua obra como poeta como o foi Carlos do Carmo. Entre as inúmeras colaborações entre os dois destaca-se, sobretudo, “Estrela da Tarde”, uma das mais belas composições de toda a música portuguesa.
Carlos do Carmo define assim Ary dos Santos (Ary dos Santos: O Homem, o poeta, o publicitário: fotobiografia, Alberto Bemfeita, Lisboa, Caminho, 2003. p. 81) : “... insubstituível, não me refiro só ao aspeto afetivo, à amizade, refiro-me igualmente ao lado profissional. Tenho a convicção de que, num momento muito particular da nossa história (Abril de 74) – sendo um momento de libertação, tem cicatrizes ainda hoje difíceis de avaliar dada a sua proximidade, e que envolvem inúmeras contradições de sentimentos, ódios, paixões, encantos e desencantos – Zé Carlos fez com que a canção portuguesa simples, a canção do quotidiano, que poderão chamar de ligeira, nunca mais fosse a mesma desde que resolveu escrever para ela. ... Tenho vindo a constatar que algumas das pessoas que escrevem para canções, têm talento, mas estão muito aquém do que ele escrevia.
… Dizia que era poeta e nada percebia de música, mas de facto ele era um músico excelente, pela capacidade que tinha de entender a harmonia das palavras nas canções.” E ainda: “O Zé Carlos e o Fernando Tordo formavam uma dupla perfeita. … Esses casamentos são raros, só acontecem a espaços. Por exemplo, no Brasil houve duplas assim: a do Vinícius de Morais com o Tom Jobim ... O Zé Carlos tinha um outro dom importante. Na Lisboa dele, para além do figurino arquitetónico da cidade, estava sempre associado o elemento humano.
As figuras de Lisboa, que ele sabia descrever espetacularmente, devia-se à sua grande capacidade de observação. Ele era o que nós vulgarmente chamamos de umaesponja. Absorvia tudo o que o cercava.
... Outra das suas facetas por que sempre tive enorme apreço era o lado frontal. A frontalidade com que assumia a sua homossexualidade: sem tabus nem esquemas. Assumida numa época muito difícil, de grandes transformações sociais na vida portuguesa. Foi uma atitude de coragem que o dignifica e que não é para qualquer homem.”
Mauro Neves Jr., “Ary dos Santos: Poeta da Revolução, Poeta do Fado”
in Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, nº 40, 2005.
http://folhadepoesia.blogspot.com/2013/08/tourada-festival-da-cancao-1973.html
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domingo, 18 de novembro de 2018
Jorge de Sena - Noutros Lugares
* Jorge de Sena
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que aos mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam para sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
e que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que aos mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam para sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
e que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2018
Se houvesse Correios em Caria, mandava esta carta para Belém
16/11/2018
por Fernando Camilo Ferreira
Sr. Presidente,
Escrevo-lhe de Caria, vila de mais ou menos 800 habitantes, no Concelho de Belmonte, à beira da Serra da Estrela. A vida aqui é boa. Aqui, tudo o que a terra dá é bom. O resto, nem por isso.
Anunciaram-nos há pouco que a GNR vai passar a funcionar apenas das 9 às 5, para assuntos administrativos. A mim parece-me mal. Por um lado porque, se é para tarefas administrativas, não precisamos da GNR: Temos alguns rapazes e algumas raparigas que ainda não foram para a Suíça, sequer para Lisboa, nem mesmo para a Covilhã. Sabem mexer num computador e, por um salário modesto, podem cumprir as tarefas administrativas que a GNR vai cumprir. É só poupança para o Estado. Só em fardas, bote-lhe a conta. E em pistolas, que ainda por cima escusam de ser roubadas, que é uma coisa que acontece, nem se fala. Para não falarmos no quartel que, só em luz, deve custar para cima de um dinheirão. Tenho a certeza de que a Junta arranja lá uma salinha para os pequenos, como já fez para instalar uma espécie de Correios que é o que temos desde que fecharam os verdadeiros.
Aqui tudo fecha. Quer ver? Temos um Centro de Saúde, com um médico dedicado, competente e paciente, que é o que se quer. Ele farta-se de dizer, como na televisão, que temos de nos vacinar contra a gripe. Mas no Centro não há enfermeiro e, portanto, não há quem dê a injecção. Quer dizer, não há sempre, que à Terça-feira vem cá uma senhora colher sangue para as análises que o Doutor manda fazer e acho que também dá injecções. A senhora enfermeira, acho que é enfermeira, trabalha para uma empresa muito grande, a quem o Governo paga para fazer o que o Governo não quer, ou não pode fazer por nós. Dizem que sai mais barato, mas eu duvido. E, quando tínhamos enfermeiro no posto, ele dava as injecções, fazia curativos, ajudava os mais velhos e evitava um grande gasto em ambulâncias para ir às urgências à Covilhã de cada vez que alguém escorregava na calçada. Se calhar, se fizessem as continhas todas, ia-se ver e até saía mais em conta.
Como já disse, também fecharam os Correios. E, agora, também fecharam os de Belmonte. Agora, se quisermos ir ao correio, temos de ir à Covilhã. São 13 km. O que não há é transportes. Há tempos, fecharam a linha do comboio da Beira Baixa, e perdemos o transporte que tínhamos para a Covilhã ou para a Guarda. Um taxi para a Covilhã custa para cima de 17€, 34€ com a volta. E, ainda por cima, temos de ajudar a pagar os transportes lá de Lisboa e do Porto, uma coisa que eles lá têm, passe social ou lá o que é. Veja o Senhor que, dantes, quando os Correios pertenciam a todos e davam lucro, uma carta era deitada no correio num dia e, no dia seguinte, estava aqui na caixa de cada um. Agora, a conta da água, para vir de Belmonte a Caria, 7 quilometrozitos de coisa nenhuma, demorou, em Outubro, 11 dias e toda a gente, que por aqui é quase sempre de boas contas, passou pela vergonha de pagar fora do prazo.
A GNR aqui faz-nos muita falta. Os soldados já não são como eram dantes, assim macambúzios e barrigudos. Coitados, não sabiam mais. Não senhor. Agora são assim uns rapazes bem apessoados (e raparigas também, já mo afiançaram, mas aqui nunca apareceu nenhuma, mas eu cá acho bem), de boas falas, muito amigos de ajudar quem precisa. E, com aqueles carros a dar a volta à vila, com a pistola no cinto, sempre metem respeito.
E depois há outra coisa. Nós precisamos de muita coisa, nestas terras. Mas aquilo de que mais precisamos são pessoas. Gente nova. Os Correios, a GNR, um enfermeiro, um ou dois professores. Porque precisamos de que a menina dos correios se embeice por um soldado da GNR, que o enfermeiro engrace com uma das professoras, e que se volte a namorar na nossa terra. Disso é que precisamos.
É por isso que lhe escrevo. Para lhe pedir um favor. Aí em Lisboa há muitos soldados da GNR. Se precisarem de mais soldados noutro sítio, mandem os que aí estão. Eu também gosto de ver a fanfarra da GNR a desfilar à frente do carro do Sr. Presidente. Mas, em tempo de necessidade, vão-se os anéis e fiquem os dedos. E os anéis são os seus tocadores de charamelas e timbales. Os dedos são os nossos soldados, que são hoje a única recordação que temos de que aqui também é Portugal.
https://aventar.eu/2018/11/16/correios-em-caria/#more-1294731
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Fernando Camilo Ferreira
terça-feira, 13 de novembro de 2018
Óscar Lopes - Todos os amores são de perdição
13.11.2018 às 8h00
Na
primavera de 1955, Óscar Lopes, preso nos calabouços da PIDE no Porto, escreveu
uma carta/ensaio de amor agora revelada
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Carta/ensaio
de amor escrita há 63 anos por Óscar Lopes quando estava preso nos calabouços
da PIDE no Porto, encontrada agora no meio de papéis do espólio do professor e
ensaísta, revela uma intensa digressão filosófica sobre o conceito de amor
texto
foto
De Óscar Lopes há ainda uma imensa
história por contar, radicada, por exemplo, na escassa poesia publicada pelo
professor e ensaísta (1917-2013) e na muita poesia que se lhe adivinha em todo
o seu percurso de intelectual empenhado, marcado por um grande fascínio pelo
saber científico, pelas matemáticas, pela linguística ou pela literatura. O seu
espólio continua a ser estudado e descoberto. Pelo meio aparecem preciosidades,
como a carta/ensaio de amor que se supõe ter sido escrita na primavera de 1955.
Estava então preso nos calabouços da PIDE no Porto e supõe-se que terá sido
dirigida a sua mulher, Maria Helena Madeira. Mesmo se, em rigor, pode ser vista
como uma carta de um amor imenso, intenso, dirigido à mulher como ser global.
Descoberta por Manuela Espírito Santo,
autora de “Retrato de Rosto”, a fotobiografia de Óscar Lopes publicada no final
do ano passado, a carta deambulava, sem rumo, sem data, local ou destinatário,
numa torrente de papéis constituída por notas de apoio às aulas, fichas de
leitura, correspondência, manuscritos e tudo o mais que preenche o acervo do
professor. A única referência ao ensaio de amor até agora encontrada deve-se a
Eduardo Prado Coelho, numa carta datada de 2 de maio, muito provavelmente
escrita na década de 1960.
Reprodução
de uma das folhas datilografadas do texto de Óscar Lopes
“Dantes o espaço não tinha um centro.
Ganhou-o agora; um olhar, um remoinho de coisas inapreensíveis a que chamo tu.
Mas é um centro inquieto. És tu, ou talvez antes, qualquer coisa que só alcanço
por ti. É, sob essa voz estridente de desespero e disfarce, uma outra voz
inaudível mas infinitamente certa. É, sob esses gestos de fuga e atordoamento,
o medo que para ti represento, um medo afinal ao encontro, ao impossível
encontro de dois mundos condenados à incoincidência”.
Começa assim uma carta que, poucas linhas
abaixo, proclama: “Sabemos que o amor é sempre de perdição por essência, que
nunca o podemos medir com a vida; sobra sempre aquele resto que tanto dói e nos
revolta sem causa. E a impossibilidade moral de comunhão física entre ambos
dá-nos, por isso, ao menos, a imensa e difícil alegria trágica de viver a
incomensurabilidade do amor, sem ser preciso romanceá-lo. Não confundimos a
tragédia de essência com as fórmulas romanescas; o monte dos vendavais está-nos
no sangue”.
À sensação de totalidade junta-se a noção
de perda, porque àquela a quem se dirige (“Tu és o tu que digo a tudo o que
tenho amado”), não pode deixar de oferecer palavras intensas como estas:
“Amo-te como se tem um enorme desgosto.”
Pouco depois, acrescenta: “Quero-te porque
existes, porque não posso enganar-me, que eu amo como só se pode amar com a
certeza de estar certo; mas tudo o que tem valor neste mundo é filho de um amor
de suor e agonia, sobre a cama de todo um infinito a separar-nos, e a ligar-nos
por isso mesmo”.
Óscar
Lopes junto da sua biblioteca
A intensidade do amor plasma-se numa
constatação: “Amei sempre em tudo, e em qualquer corpo, o teu sorriso em mim já
tão antigo.” Ciente de que “vivemos num mundo feito para deuses, mas não somos
deuses”, Óscar Lopes prossegue: “Tu és hoje para mim o verso, a frase, a
certeza fixada, a evidência da nossa divindade humana e real, pulverizada em
tantos instantes a reaver. És o alfabeto com que leio a presença real no mundo
de tudo o que os mitos prometem sem saber o que dizem.”
Àquele rosto “que dá expressão e sentido a
tudo quanto existe”, o autor assegura: “Eu amo, porque te amo (e amo neste meu
amar-te) toda esta leva de condenados à morte que temos sido desde as células
mais antigas; e quando te beijo sem boca, que é o que faço todos os momentos,
quando as minhas mãos se fazem olhar e te poisam levemente no corpo, há a
amargura de um fim que é mais do que o nosso; é uma cólera represa a conspirar
contra todas as cruzes dos cemitérios.”
Certo de que “não existe o que se chama um
amor feliz (seria um contentamento apenas contente)”, parte desta evocação de
Camões para a constatação de que “a nossa gloriosa espécie inventou o amor”.
Porém, prossegue mais adiante: “tudo o que na terra e no mar nos aturde e
delicia de mistério não basta, como imagem, para traduzir esta tão simples, e
até imaginária explosão do teu corpo, num rito a que renuncio, mas que, simples
amor, se me faz consciência.”
Há um amor absoluto a percorrer aquelas
páginas datilografadas onde se escreve: ”Não existo como Adão masculino, porque
nunca estarei completo fora de uma identidade contigo que, no entanto, passa
pelo meu desejo, portanto pela evidência de seres radicalmente outra como a
luva na mão. E não existo como Adão de Eva incluída, porque (ai de nós!) há
entre ti e mim, como entre todos os que também dizem eu (e não sei amar como a
ti), toda aquela infinita distância tu-eu que muda de sentido para cada um de
nós mas subsiste sempre como relação invencível”.
Já muito perto do final da longa
carta/ensaio, Óscar Lopes desabafa: “Odeio e estilhaço todos os espelhos em que
me veja direta ou inversamente contente, e até em que simplesmente me veja (eu
que não existo), na epopeia de uma matéria humanizada cuja eloquência mais viva
é hoje a dos seus ritmos.”
A concluir, um apelo: “Ajuda-me a fazer
essa alma. E que o teu sorriso tão antigo, sorriso de toda a mãe, irmã,
namorada que me resta, me olhe desde essa esperança, a mais inominável e a mais
certa, a quem emprestaste o teu rosto.”
A
carta com as emendas do professor e ensaísta
A carta foi agora divulgada num opúsculo editado pela
Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, da qual Óscar Lopes foi
ativo dirigente. Contém um posfácio de José Manuel Mendes e um prefácio de
Lídia Jorge. Aí, a escritora sublinha que o professor e ensaísta “produziu um
texto misto, que parece ter sido escrito em estado de êxtase, dirigido não a
uma mulher concreta mas a uma mulher total, presente e ausente, passada e
futura, amante, amada, filha e mãe, seu destino e sua própria causa, o que
significa, e o texto várias vezes o refere, “tratar-se de uma torrente de
escrita dirigida à Mulher Total, uma conceção próxima da forma como os
neoplatónicos a descreviam e de como os românticos mais evanescentes a
concebiam”.
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Análise Literária,
António Pedro Ferreira,
Epístolas,
Expresso,
Óscar Lopes,
Valdemar Cruz
segunda-feira, 12 de novembro de 2018
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
Vladimir Maiakovski - Meu Maio
* Vladimir Maiakovski
A Todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado.
A Todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeirode Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário – Este é o meu Maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o Maio que eu quero!
Sou terra –
O Maio é minha era!
A Todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado.
A Todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeirode Maio!
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário – Este é o meu Maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o Maio que eu quero!
Sou terra –
O Maio é minha era!
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Poesia,
Vladimir Maiakóvski
quinta-feira, 8 de novembro de 2018
Manuel Alegre - Nambuangongo, meu amor
* Manuel Alegre
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
e a cabeça cortada e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo
Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu.
Tu não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo
tempo exactamente em cima do nosso tempo.
Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
e a cabeça cortada e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo
Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.
Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu.
Tu não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.
Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.
É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo
tempo exactamente em cima do nosso tempo.
Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.
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Poesia
quarta-feira, 7 de novembro de 2018
Sophia de Mello Breyner Andresen - Esta gente
* Sophia de Mello Breyner Andresen
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"
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