terça-feira, 13 de novembro de 2018

Óscar Lopes - Todos os amores são de perdição

13.11.2018 às 8h00

Na primavera de 1955, Óscar Lopes, preso nos calabouços da PIDE no Porto, escreveu uma carta/ensaio de amor agora revelada
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Carta/ensaio de amor escrita há 63 anos por Óscar Lopes quando estava preso nos calabouços da PIDE no Porto, encontrada agora no meio de papéis do espólio do professor e ensaísta, revela uma intensa digressão filosófica sobre o conceito de amor

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De Óscar Lopes há ainda uma imensa história por contar, radicada, por exemplo, na escassa poesia publicada pelo professor e ensaísta (1917-2013) e na muita poesia que se lhe adivinha em todo o seu percurso de intelectual empenhado, marcado por um grande fascínio pelo saber científico, pelas matemáticas, pela linguística ou pela literatura. O seu espólio continua a ser estudado e descoberto. Pelo meio aparecem preciosidades, como a carta/ensaio de amor que se supõe ter sido escrita na primavera de 1955. Estava então preso nos calabouços da PIDE no Porto e supõe-se que terá sido dirigida a sua mulher, Maria Helena Madeira. Mesmo se, em rigor, pode ser vista como uma carta de um amor imenso, intenso, dirigido à mulher como ser global.
Descoberta por Manuela Espírito Santo, autora de “Retrato de Rosto”, a fotobiografia de Óscar Lopes publicada no final do ano passado, a carta deambulava, sem rumo, sem data, local ou destinatário, numa torrente de papéis constituída por notas de apoio às aulas, fichas de leitura, correspondência, manuscritos e tudo o mais que preenche o acervo do professor. A única referência ao ensaio de amor até agora encontrada deve-se a Eduardo Prado Coelho, numa carta datada de 2 de maio, muito provavelmente escrita na década de 1960.

Reprodução de uma das folhas datilografadas do texto de Óscar Lopes
“Dantes o espaço não tinha um centro. Ganhou-o agora; um olhar, um remoinho de coisas inapreensíveis a que chamo tu. Mas é um centro inquieto. És tu, ou talvez antes, qualquer coisa que só alcanço por ti. É, sob essa voz estridente de desespero e disfarce, uma outra voz inaudível mas infinitamente certa. É, sob esses gestos de fuga e atordoamento, o medo que para ti represento, um medo afinal ao encontro, ao impossível encontro de dois mundos condenados à incoincidência”.
Começa assim uma carta que, poucas linhas abaixo, proclama: “Sabemos que o amor é sempre de perdição por essência, que nunca o podemos medir com a vida; sobra sempre aquele resto que tanto dói e nos revolta sem causa. E a impossibilidade moral de comunhão física entre ambos dá-nos, por isso, ao menos, a imensa e difícil alegria trágica de viver a incomensurabilidade do amor, sem ser preciso romanceá-lo. Não confundimos a tragédia de essência com as fórmulas romanescas; o monte dos vendavais está-nos no sangue”.
À sensação de totalidade junta-se a noção de perda, porque àquela a quem se dirige (“Tu és o tu que digo a tudo o que tenho amado”), não pode deixar de oferecer palavras intensas como estas: “Amo-te como se tem um enorme desgosto.”
Pouco depois, acrescenta: “Quero-te porque existes, porque não posso enganar-me, que eu amo como só se pode amar com a certeza de estar certo; mas tudo o que tem valor neste mundo é filho de um amor de suor e agonia, sobre a cama de todo um infinito a separar-nos, e a ligar-nos por isso mesmo”.

Óscar Lopes junto da sua biblioteca
A intensidade do amor plasma-se numa constatação: “Amei sempre em tudo, e em qualquer corpo, o teu sorriso em mim já tão antigo.” Ciente de que “vivemos num mundo feito para deuses, mas não somos deuses”, Óscar Lopes prossegue: “Tu és hoje para mim o verso, a frase, a certeza fixada, a evidência da nossa divindade humana e real, pulverizada em tantos instantes a reaver. És o alfabeto com que leio a presença real no mundo de tudo o que os mitos prometem sem saber o que dizem.”
Àquele rosto “que dá expressão e sentido a tudo quanto existe”, o autor assegura: “Eu amo, porque te amo (e amo neste meu amar-te) toda esta leva de condenados à morte que temos sido desde as células mais antigas; e quando te beijo sem boca, que é o que faço todos os momentos, quando as minhas mãos se fazem olhar e te poisam levemente no corpo, há a amargura de um fim que é mais do que o nosso; é uma cólera represa a conspirar contra todas as cruzes dos cemitérios.”
Certo de que “não existe o que se chama um amor feliz (seria um contentamento apenas contente)”, parte desta evocação de Camões para a constatação de que “a nossa gloriosa espécie inventou o amor”. Porém, prossegue mais adiante: “tudo o que na terra e no mar nos aturde e delicia de mistério não basta, como imagem, para traduzir esta tão simples, e até imaginária explosão do teu corpo, num rito a que renuncio, mas que, simples amor, se me faz consciência.”
Há um amor absoluto a percorrer aquelas páginas datilografadas onde se escreve: ”Não existo como Adão masculino, porque nunca estarei completo fora de uma identidade contigo que, no entanto, passa pelo meu desejo, portanto pela evidência de seres radicalmente outra como a luva na mão. E não existo como Adão de Eva incluída, porque (ai de nós!) há entre ti e mim, como entre todos os que também dizem eu (e não sei amar como a ti), toda aquela infinita distância tu-eu que muda de sentido para cada um de nós mas subsiste sempre como relação invencível”.
Já muito perto do final da longa carta/ensaio, Óscar Lopes desabafa: “Odeio e estilhaço todos os espelhos em que me veja direta ou inversamente contente, e até em que simplesmente me veja (eu que não existo), na epopeia de uma matéria humanizada cuja eloquência mais viva é hoje a dos seus ritmos.”
A concluir, um apelo: “Ajuda-me a fazer essa alma. E que o teu sorriso tão antigo, sorriso de toda a mãe, irmã, namorada que me resta, me olhe desde essa esperança, a mais inominável e a mais certa, a quem emprestaste o teu rosto.”

A carta com as emendas do professor e ensaísta
A carta foi agora divulgada num opúsculo editado pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, da qual Óscar Lopes foi ativo dirigente. Contém um posfácio de José Manuel Mendes e um prefácio de Lídia Jorge. Aí, a escritora sublinha que o professor e ensaísta “produziu um texto misto, que parece ter sido escrito em estado de êxtase, dirigido não a uma mulher concreta mas a uma mulher total, presente e ausente, passada e futura, amante, amada, filha e mãe, seu destino e sua própria causa, o que significa, e o texto várias vezes o refere, “tratar-se de uma torrente de escrita dirigida à Mulher Total, uma conceção próxima da forma como os neoplatónicos a descreviam e de como os românticos mais evanescentes a concebiam”.


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