Um poeta é um grande poeta quando consegue ultrapassar a sua realidade local, para falar do universal e do que pertence a todos. Nesse sentido, não é difícil se enxergar nas poesias de Esperança no Musseque – Poemas sobre Angola, primeiro livro de N’dualu Polo, pseudônimo de Fontes Nuno Eduardo Paulo, poeta angolano, biólogo, radicado no Brasil.
Por Adrienne Kátia Savazoni Morelato*
N’dualu Polo se propõe, em seu exílio, contar a história e falar dos problemas do seu país como se lá estivesse, ao mesmo tempo em que está aqui no Brasil. Pois esses problemas não serão diferentes dos daqui em nosso país. Esperança no Musseque pretende ser a voz dos excluídos, representando toda e qualquer periferia no mundo. A voz dos marginalizados que habitam os musseques e que se recheiam ainda de esperança.
“Os representantes do povo são deputados do luxo” é um verso do poema Assembleia Insensível de Angola, que poderia servir totalmente para o nosso país. Ao falar da Angola, Fontes Paulo/N’dualu Polo não deixa de falar do Brasil. Há uma conexão estreita entre os dois países que é explorada no livro, principalmente quando o autor quer redescobrir suas raízes e mostrar as origens da cultura afro-brasileira, sua ancestralidade: “Voltar à terra, à cultura e às nossas tradições” porque “a origem é a origem da humanidade”, o que faz com que o poeta conclua que foi o seu povo que colonizou o mundo.
Angola é o sétimo maior país em território da África, seu segundo maior produtor de petróleo e o quarto maior produtor de diamantes do mundo. Apesar de toda essa riqueza, é um país com uma grande desigualdade social. A maioria de sua população vive nos musseques, a poucos minutos do centro comercial, lugar sem infraestrutura e sem saneamento básico.
Mas, mesmo com tantas dificuldades, N’dualu Polo descreve que o seu povo, os do musseque, tem um jeito próprio de olhar a vida que se traduz em alegria e esperança: “Minha história é linda”, diz o título do poema, que continua: “povo que preserva as raízes da nossa identidade / Somos o povo do continente da diversidade / Cultural, de etnias entrelaçadas numa unidade. Ubuntu”. E é a palavra Ubuntu, a qual não tem tradução em nossa língua, a que expressará melhor a mensagem desse livro.
Esperança no Musseque é, antes de tudo, um livro de poesias que critica essencialmente os valores individualistas e materialistas do mundo ocidental, na qual o indivíduo se sobrepõe ao coletivo: “Oh! Mundo tão moderno... / Que fica difícil achar alguém fraterno...”. Ubuntu é exatamente o contrário – é a força da coletividade e a ligação que o indivíduo tem com o seu todo, com o seu lugar e com as pessoas. Todos são o que são porque estão intimamente ligados – você só tem um eu quando se junta ao outro.
Por isso, N’dualu Polo procura em seus poemas valorizar a cultura ancestral africana, aquela que nos deu o cafuné, o moleque, o borocoxô, o quitute, o samba e as miçangas, nosso jeito corporal de ser, de aproximar, de dançar e de tocar. Chegou a hora, como ele mesmo diz, de reverter o jogo, descolonizar também na literatura, algo que pode fazer surtar a Casa-Grande: “Agora é o afrocentrismo”.
Pulsa o corpo negro em seus poemas, há gingado, há o batuque, o ritmo marcado na pele, traços do fenótipo mais lindo, voz que não se cala e o cabelo carapinha que se torna chique, valorizando o que se deve e o que merece ser valorizado: “A nossa história foi interrompida / nosso corpo e alma despida”. Enquanto isso, a dor e o sofrimento são vencidos tanto pelo ritmo da dança e da música quanto pela poesia. Esperança no Musseque é esse grito de luta, resistência – canto de um poeta com o seu povo e também com o nosso povo!
Leia abaixo três poemas de Esperança no Musseque:
ESPERANÇA E CONFIANÇA
O mar do oceano que nos separou
É apenas um detalhe em nossas trajetórias
O passado glorioso de nossas histórias
Sempre nos ligam no presente…
O tempo nos empurra para frente
A nossa história foi interrompida
Nosso corpo e alma despida
Das mazelas e cicatrizes dos crimes
Hediondos contra nossa humanidade
Resistimos em nome de nossa unidade
Vencemos toda vossa crueldade
E as lutas dos ancestrais orgulham nossa identidade
Por essa razão veneramos a ancestralidade…
Espalhando paz, amor e muita esperança
Essa é a nossa maior herança…
A VIDA NO QUIMBO
Uma vida simples, vivida no campo
De origem humilde da zona rural
Um estilo de vida sem excesso
Moradia de pau-a-pique
Que não precisa de bens de luxo
Um fogão a lenha
Para fazer os quitutes da terra
Um quimbo que produz
Seu próprio sustento
Comida orgânica e saudável
O Quimbo é um luxo à parte
Tudo aqui é feito com carinho e amor
O Quimbo é resistência da nossa cultura
De um modo de vida ancestral
Onde o ancião é sempre uma referência
Dentro da comunidade
As nossas tradições resistem…!!!
CARAPINHA CHIQUE
A elegância e essência da carapinha chique
Faz parte de sua origem
Ela define sua essência
Seu cabelo, carapinha chique é resistência
Ela ressignifica a sua cultura
Resiste à violência
É um traço cultural, é nossa vivência
Tranças corrediças com vários adereços
Suas missangas ao longo dos carrapitos
Tranças corridinhas exaltam a beleza natural
Carrapitos que definem o seu belo
Carapinha é obra rara
Que tem a ver com sua identidade
Herança de nossa ancestralidade
Tem um acabamento incomparável
Chama atenção e é inigualável
Carapinha chique
Cabelos naturais, símbolo de nossa beleza
É a mãe África, ela significa:
Resistência
Existência,
É o belo de nossa negritude.
* Adrienne Kátia Savazoni Morelato, mestre e doutora em Estudos Literários pela Unesp, é professora da rede estadual de São Paulo
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