quinta-feira, 4 de julho de 2019

Claudio Daniel: A poesia angolana hoje


* Cláudio Daniel

Dia: 04/07/2019 às 01:38:10

A poesia angolana contemporânea aborda temas como o desencanto do mundo pós-utópico, as cicatrizes da guerra civil, as contradições sociais, a emancipação da mulher, o erotismo, a beleza das paisagens naturais, a herança dos mitos e práticas tribais na sociedade moderna e, claro, a própria linguagem poética. 

Por Claudio Daniel*

É uma poesia plural, diversificada, que utiliza recursos como o humor, os provérbios locais, a mescla do português com palavras de dialetos tribais e o diálogo intertextual com a poesia ocidental, destacando-se no quadro das literaturas africanas em língua portuguesa.

Apresentamos aqui um pequeno quadro desse rico florilégio, com poemas de cinco autores significativos das letras angolanas: Paula Tavares, Maria Alexandre Dáskalos, Lopito Feijoó, Abreu Paxe, José Luís Mendonça e Jorge Arrimar.


PAULA TAVARES

Rapariga

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi –

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo de deserto.

A falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescencia
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

(Do livro Ritos de Passagem, 1985)


O lago da lua

No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue
e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos para tomar

* * *

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

Ana Paula Ribeiro Tavares (Lubango, província da Huíla, Angola, 30 de Outubro de 1952) é uma historiadora e poeta angolana. Cursou História na Faculdade de Letras do Lubango (hoje ISCED, Instituto Superior de Ciências da Educação do Lubango), terminando-o em Lisboa. Em 1996 concluiu o mestrado em Literaturas Africanas. Atualmente, vive em Portugal, lecionando na Universidade Católica de Lisboa. Tanto a prosa como a poesia de Ana Paula Tavares estão presentes em várias antologias publicadas em Portugal, no Brasil, em França, na Alemanha, em Espanha e na Suécia. No Brasil, foi publicado um volume com a sua poesia completa, Amargos como os Frutos.


MARIA ALEXANDRE DÁSKALOS

Nasceu em mim uma fonte
nada sabia dessa água
até encontrar as margens
desta escrita
que quis fosse lisa
como pedra mármore

***

Um homem ao crepúsculo
sabe que os poetas e as mulheres
percorrem as ruas da cidade

na peregrinação dificílima do amor.
Esperam-nos em caves secretas
unguentos e odores tropicais
então, um homem tranquilo torna fácil a nudez.

***

O garoto corria corria
Não podia saber
Da diferença entre as flores.
O garoto corria corria
Fugia.
Ninguém lhe pegou ao colo
Ninguém lhe parou a morte.

***

E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz – esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.

Os deuses não assistiram a isto.

Maria Alexandre Dáskalos, poeta angolana, nasceu em Huambo, em 1957, filha do poeta e intelectual nacionalista Alexandre Dáskalos. Estudou nos colégios Ateniense e de São José de Cluny, formando-se em Letras. Em 1992, durante a guerra civil, mudou-se para Portugal, com a mãe e o filho. Atualmente, é jornalista na RDP África e mestranda em História Contemporânea. Publicou Do Tempo Suspenso (1998), Lágrimas e Laranjas (2001) e Jardim das Delícias (2003).


JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Esse país chamado corpo de mulher

Fundo um país com os fonemas imprevistos
no roteiro do teu corpo de mulher.
Um tigre espreita
a inocente plumagem de um pássaro
poisado na colina do teu púbis.
Os teus seios forjam nos meus lábios
o paladar íngreme da pedra subterrânea.
Então nasço asas nos ombros como as tangerinas mecânicas
que Leonardo da Vinci anteviu nos seus esquissos.
Diamante de carne que as redes do tempo cristalizaram
na geometria incisiva dos meus versos.
Coral de azeite finíssimo.
Demorada galáxia de metal ideográfico.
Marcaste o meu destino com o traço de sal nocturno e luminoso
do teu andar de rumba.
País selvagem
que o trote mitológico da savana anuncia
sobre o verão alucinante do asfalto
me derrotas com as armas da tua cópula fulminante
e me sepultas como um faraó calcinado
no sarcófago apertado do teu sexo
onde navega um concerto de peixes doces como o mar
branquiando a palavra nascitura entre as vogais do meu esperma.


Pode ser que o mundo acabe na semana que vem

Pode ser que o mundo acabe na semana que vem.
O que é que eu posso fazer senão conhecer até à exaustão
todas as coisas que fazem de ti um verão denso e humífero?
Cantar sem vacilar por exemplo esse teu ar breve
de pequena vissapa de luz.
A mim pouco importa o destino do universo
saber se os planetas estão na mão de algum deus subatómico
ou se um meteorito beija a Terra por amor ou por acaso.
Pode ser até que o mundo se acabe na semana que vem.
A mim basta conhecer
uma a uma essas colónias de sede e de êxtase
que o teu sangue construiu com apoteose e presciência
em cada ossatura do teu porte
uma a uma essas luas térreas de sedução
que a savana do teu riso faz refém em cada sequência do teu
andamento galáctico.
A mim basta saber que a simples historicidade do teu cio
sempre desenha um pendor de pássaro
na frágil película da minha humanidade.
Pode ser que o mundo acabe na semana que vem.
Macacos me mordam se mesmo assim eu não te levo (hoje ainda)
nos meus ombros a chupar gelado de múcua
para espanto crucial da cidade.
Pode ser que o mundo acabe na semana que vem.
No grau zero da escrita ainda a vogal preta dos teus olhos
erguerá a sua esfinge
e o enigma dos nossos ventres siameses ainda
levantará as areias inverosímeis do deserto.

José Luís Mendonça nasceu em 1955, no Golungo Alto, província do Kwanza Norte, Angola. Poeta e jornalista, é funcionário da Unicef em Angola, onde exerce o cargo de assistente de informação. Colabora em diversas publicações de seu país e no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Portugal. Ingressou na União dos Escritores Angolanos em 1984. Publicou os livros de poesia Chuva Novembrina (1981), Gíria de Cacimbo (1987), Respirar as Mãos na Pedra (1991), Quero Acordar a Alva (1996), Se a Água Falasse (1997), Logaríntimos da Alma - Poemas de Amar (1998) e Ngoma do Negro Metal (2000).

JORGE ARRIMAR
 
1. de que montanha?

não sei de que montanha sou
se daquela que transporto em mim, toda em mim,
um meteoro vindo do espaço há mil anos
se daquela que me habita há um segundo,
o segundo tempo depois do primordial (es)pasmo


2. álbum de recordações

uma velha buganvília
a embeber tudo numa névoa roxa
e minha bisavó sentada no terreiro
a refrescar-se nas tardes mornas
com leques de bambu e palma

3. infância
o deserto que atravessamos
não é nosso. somos estrangeiros
nas suas dunas. só os cactos
vieram connosco, agarrados
aos pés da infância

4. Esconderijo
entre ábacos de ébano
e dados de marfim
um velho chinês procura-me
com dedos de bambu
o carácter que me possui
é um esconderijo de silêncios

5. Imbondeiro
há frutos
nos ramos do imbondeiro
a penugem que libertam
cobre os pássaros que voam para o céu
da boca

6. ressureição da dança
é da terra que chega a seiva,
o sangue das plantas que, morrendo,
mais se enraízam.
da próxima vez que te vir
de pés nus a lavrar o chão
acertarei o passo contigo
na dança
dos homens que estão antes
dos mais antigos que a memória guarda

Jorge [Manuel de Abreu] Arrimar nasceu em S. Pedro da Chibia, Angola. Publicou dez títulos de poesia e cinco de ficção. Encontra-se representado em diversas antologias, nomeadamente Antologia de Poetas de Macau (Macau), Divina Música (Portugal), Ovi-sungu – 13 Poetas de Angola (Brasil), Poetas da Ásia Portuguesa (EUA); participa em várias revistas literárias, das quais se destacam Eufeme (Portugal), Seixo Review (Canadá), Literatas (Moçambique), Textos & Pretextos (Portugal), Zunái (Brasil).


LOPITO FEIJOÓ

Sabedoria VIII

Vende-se uma pátria incompleta
chamam-lhe
país que estamos com ele.

Carcaça com centro. Sem norte nem sorte
pois a bota nunca bate com a perdigota
no atribulado e atropelado sul do sul.

CONSELHO: Leve somente a geofísica
a parte material está destroçada
a espiritual em fios de recuperação!


Sabedoria XVI

Os sábios nem tudo sabem
os deuses têm deuses também
os corruptos facilmente corroem
e as víboras vigiam novinhas vizinhas.

Quem rouba não rouba tudo
quem mata não mata o todo
quem perde ganha também
e quem ganha nem tudo apanha.

Os sábios os deuses e os corruptos
urgentes, mais as víboras dementes
por demais impacientes…
eternamente neste mundo de inocentes!


Sabedoria XXX

Homem que é homem não amiga jacaré
Mulher de verdade não saltita na maré.
Toda vaidade implica os cabelos no lugar
limpa, rendilhada e arrumada, varanda
Temperada e asseada cozinha humilde.

Homem velho é pau de embondo. Então:
encosta-te ao velho homem enquanto SER
saberás de muitos, passados e dolorosos anos.

Qualquer sóbria mulher tem
só o tamanho dos profundos universos
não amiga jacaré nem saltita na maré
do alto da sua pegajosa vaidade, guiar-te-á
santificando o nobre, caminho das estrelas!

Lopito Feijoó, nome literário de João André da Silva Feijó, nasceu em Malanje (Angola) em 1963. Estudou Direito em Luanda, na Universidade Agostinho Neto (UAN). É deputado (reformado) da Assembleia Nacional de Angola. Publicou diversos livros de poesia, entre eles Me Ditando (1987), Rosa Cor-de-Rosa (1987), Cartas de Amor (1990), Na Idade de Cristo. Poesia Declamada em CD (1997), O Brilho do Bronze – Haikais (2005) e Imprescindível Doutrina Contra (2017). Tem livros traduzidos para o francês, inglês e italiano e colaborou publicações de Angola, Portugal, França, Espanha, Brasil, Estados Unidos e outros países.


ABREU PAXE


Nkalu a maza: Tigela de sentidos
A mbuta bavova vô

descalçadas e fraternos no aço há braços e botas também o carvão preto

aceso em brasa vermelho nos cristais dum denso signo a mbuta enquanto saliva

se levantam essas águas do rio correm para o sul as fontes precisam de

montanhas

os vales de um banho seco prisioneiro bavova vo as bactérias

desta garrafa da taça de vinho comia de botas vermelhas de ferida

e tudo começa com os olhos destas bocas destas espingardas desta guerra

ouro preto benigna meu mundo congelado o seu lugar de tanque a cama no lugar

da geografia do meu desenhado espaço jardins todo o gesso requerido

Sul e Norte a mina mu-ntu o distante e perto Oeste e Este as linhagens

ampliam-se

feito artérias tomam o corpo por inteiro e nele abrem os ventrículos e

as aurículas

circulam todas as frutas e sabores no vale e nas montanhas por exemplo
mangas, mamões,

bananas, testículos, seios, pénis, vagina o arquejante altar os mais
velhos disseram assim.


Kuna ketwalwaka ko

eu e a estela mais escuros estes ventos claros no nilo clara a cerveja

loira não mexia na minha panela garantia que se contém como deus pagão

o texto de música muito delicada a página a pauta violando ordens tácitas

do dia da noite escava pressentida carne a terra árvores de mim

eemente clara convém e contém o escuro escorre e não nos impede de sonhar

feito sol a noite do dia cinzento morcego inflama nos ossos das dentadas

transfigura o metal reside kuna ketwalwaka kó a chegada além uma nova

expectativa

escuta tudo sobre onde ainda nós não chegamos

como quem vem dum cruel lugar incontinente unifico todos os gritos de lá


Zulu dya bwa

mezaya e palantada falava sem sol com o sol da luz

esticando um gato fio de seduções os sonhos todos sem arrumação

essa esquina se não é atum é sovaco de manga outra vez

esse atum que não é esquina ou toque de cabritos obrigação diária

uma página uma janela uma paisagem desestruturados todas

enquanto boca os vidros desvendados pontual um só dedo

espelhos os corpos intervalos não coagulados de estrume, nem de esterco

o céu em queda se lhe contassem fechaduras

mezaya falava palantada que era a lâmpada a passagem de luz

fontes de obtenção de conhecimentos visuais esses Límpidos lampejos

teu sono os braços de luz teu leito ainda descortinado.

Abreu Castelo Vieira dos Paxe nasceu em 1969 no vale do Loge, município do Bembe (Angola). Licenciou-se no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa. É docente de Literatura Angolana nesta mesma instituição e membro da União dos Escritores Angolanos (UEA), onde é secretário para as atividades culturais. É técnico de comércio externo pela escola de comércio. Publicou A Chave no Repouso da Porta (2003), que venceu o Prêmio Literário António Jacinto. No Brasil, foi publicado nas revistas Dimensão (MG), Et Cetera (PR) e Comunità Italiana (RJ), e em Portugal, na antologia Os Rumos do Vento (Câmara Municipal de Fundão).




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