O mundo à janela visto do Porto
* Valdemar Cruz
Acabam aqui estas crónicas. Retiro-me com palavras do autor dos autores. Aquele a quem meus olhos veem ungido pela genialidade absoluta
Numa longa conversa telefónica com Albuquerque Mendes, sugeria-me há dias o pintor, não sem alguma malícia, mas com muita graça, que aproveitasse o ocasional papel de cronista para, liberto das apertadas regras do jornalismo, dar largas à imaginação quando assumo o pérfido papel de “voyeur” e olho através da janela para a rua.
Seria tentador, pouco útil e nada comparável com os resultados da atitude de Ptolomeu I (305 a 282 antes da nossa era). Terá sido um dos maiores, mais interessantes e mais úteis “voyeurs” da História. Espreitava o fulgor cultural de Atenas com uma insolente inveja.
Soube, porém, transformar a cobiça num dos maiores e gloriosos projetos da antiguidade clássica. Quis fazer de Alexandria uma espécie de espelho da inalcançável Atenas. Criou o Museu de Alexandria e teceu uma estratégia de atração de todos os saberes. Soube, há mais de dois mil anos, criar uma antevisão do que viriam a ser os atuais centros de investigação e laboratórios de ideias.
Convidou todos os grande filósofos, cientistas, poetas e escritores da época. Por lá passaram o matemático Euclides, que formulou os teoremas da geometria; Erastótenes, que calculou o perímetro da Terra; Herófilo, pioneiro da anatomia; Arquimedes, inventor da hidrostática; Dionisio de Trácia, autor do primeiro tratado de gramática, além de muitos outros responsáveis por grandes revoluções teóricas, ou outras, como o rompimento do tabu da dissecação de cadáveres, fundamental para a evolução da medicina.
Como espaço central de todo aquele núcleo de sábios e pensadores reunidos numa mesma cidade, impunha-se a hoje mítica Biblioteca de Alexandria. Ptolomeu sonhava um espaço onde pudessem ser recolhidas as obras já produzidas em todas as culturas e línguas das diversas latitudes. Emissários foram enviados a todos os recantos do Império à procura dos papiros com o saber acumulado.
Seria uma antecipação da delirante e infinita “Biblioteca de Babel”, do conto de Jorge Luís Borges. Hipótese sonegada agora, com todas as bibliotecas públicas encerradas.
Salvam-nos as bibliotecas por cada um de nós construídas. A partir de hoje fecha-se esta janela. Acabam estas crónicas. O mundo continua lá fora. Cá dentro prossegue a viagem, sempre à descoberta de outros lugares e novas palavras escondidas nos livros da biblioteca da minha vida.
Retomarei a assumida e indecente atitude de “voyeur”, à procura de uma impossibilidade: o livro perfeito. Sei que jamais o encontrarei. Faz-se dessa procura o permanente desejo de leitura. E há tantos e tão bons escritores à espera de serem lidos.
É impossível nomeá-los. Reúno-os num só. Assim, e não obstante Mr. Richard Dalloway, marido da fascinante Mrs. Dalloway, criada por Virginia Woolf, dizer que nenhum homem decente deve ler os sonetos de William Shakespeare, retiro-me com palavras do autor dos autores. Aquele a quem meus olhos veem ungido pela genialidade absoluta.
É o soneto 30, na belíssima tradução de Ana Luísa Amaral, inserido na coletânea “31 Sonetos” de William Shakespeare, publicado pela Relógio D’Água:
Sempre que, debatendo no mais doce silêncio,
Convoco na memória tudo o que foi passado,
Suspiro pela ausência do que foi desejado
E assim gasto o meu tempo valioso em velhos prantos.
E os meus olhos se afogam, eu, que mal sei chorar,
Por amigos perdidos na morte sem idade,
E torno a lamentar amores antes sarados
E pranteio por tudo o que gastei do olhar.
Posso sofrer então por sofrimentos idos,
Contar de mágoa em mágoa, da forma mais dorida,
A minha triste história de queixas mais antigas
Cobrando, nova, a história, como nunca cobrada.
Mas quando, amigo meu, me vens ao pensamento
Recuperam-se as perdas e finda o sofrimento.
2020.04.20
https://expresso.pt/opiniao/2020-04-20-XX---Nenhum-homem-decente-le-sonetos-de-Shakespeare