sexta-feira, 9 de julho de 2021

José Gameiro - Querida escrivaninha

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA, 

* José Gameiro   

Não te vou abandonar na rua, como se faz aos tarecos velhos, à espera que alguém os leve

Na hora da despedida acho justo escrever-te e agradecer tudo o que viveste comigo ao longo destes muitos anos. Desculpa a minha ignorância, não percebo nada de estilos de móveis, sei que tens classe com a tua madeira nobre, os teus pés com aplicações em bronze, mas para mim será sempre a minha inha, como te chamei desde criança.

Sim, porque na altura, os pais não deixavam fazer os trabalhos de casa esparramados nos sofás ou deitados na cama. Não havia redes sociais que nos distraíssem dos deveres, mas nesta hora devo falar verdade, nas tuas gavetas escondia o “Cavaleiro Andante”, o “Tintim” e o “Zorro”, que lia às escondidas. Não me recordo com que idade comecei a usar-te, talvez oito, nove anos. Mas lembro-me bem que as primeiras cartas de amor que escrevi, tive-te como companheira.

Eram em papel grosso, enviadas em envelopes forrados e escritas com tinta permanente, numa caneta Parker, que o meu avô me tinha oferecido, quando fiz a 4ª classe. Quando chegava o fim do verão, poucos amores resistiam à distância e, era por carta, que acabavam. Com uns amigos, criámos um modelo tipo, ainda hoje utilizado por alguns...

És boa demais para mim, não te mereço, nunca irás ser feliz na minha companhia...

Claro que acontecia ser “despedido” antes de enviar a carta. Nessa circunstância a resposta também estava tipificada. Mudas de namorado, como quem muda de camisa, não me mereces, continua assim que não vais longe.

O machismo misturado com o despeito não conseguiam esconder a zanga, muito maior do que a mágoa. E a inha lá continuava a assistir a estas parvoíces adolescentes, impávida e serena.

Também foste testemunha das minhas falhadas incursões pela poesia, quando me sentava à tua frente a tentar escrever poemas parvos, que depois enviava para o Juvenil do “Diário de Lisboa”, onde passavam pelo crivo exigente do Mário Castrim. Rapidamente percebi que as rimas não eram o meu forte e fiquei-me pelos poemas práticos, tipo, “por ti o meu coração tem taquicardia e arritmia”. Acho que o primeiro abandono a que te vetei foi quando entrei para Medicina. Podes ter pensado que terá sido por termos muitos e grandes livros, podes ter sido influenciada pela “voz do povo” que diz que o curso é muito difícil, desculpa, mas agora vou-te contar toda a verdade.

O curso não é dos mais fáceis, mas permite uma vida muito boa. Pelo menos no meu tempo, uma boa nota a Anatomia, que exigia 18 horas de estudo diário, durante dois meses, garantia praticamente o curso. Os livros eram grandes, mas a verdadeira razão de te ter abandonado foi que não podias ter quatro pessoas à tua volta... Cada disciplina tinha o seu campeonato de bridge e também as suas sabatinas. Desculpa, inha, ficaste reduzida a depósito de canetas e lápis velhos, papéis abandonados e clipes que um dia seriam usados, mas que nunca saberia onde os tinha guardado.

Quando saí de casa dos meus pais abandonei-te pela primeira vez, mas ficaste à guarda de quem me criou e visitava-te todas as semanas. Nem sempre olhava para ti, eu sei, no entanto, renasceste quando vieram os netos. Quando os avós brincavam com os miúdos aos ovos da Páscoa, ou no Natal havia um presente mais especial, era dentro de ti que estavam guardados. Apesar de todas estas justificações reconheço que não soube reconhecer tudo o que fizeste por mim na minha infância e juventude. É quase como a ingratidão que, em certas fases da vida, tontas, sentimos por quem nos cá trouxe.

Não te vou abandonar na rua, como se faz aos tarecos velhos, à espera que alguém os leve, vais ter um destino mais elegante. Depois de ouvir os meus filhos, todos estiveram de acordo, deves ir para casa de quem seja capaz de cuidar de ti e estimar-te, tal como foi o comboio elétrico e um dia irá a biblioteca.

Vais ser licitada e o teu valor transformado em mais uma viagem.

https://expresso.pt/opiniao/2021-07-09-Querida-escrivaninha-b502487a

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