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21 DE NOVEMBRO DE 2021
Os primeiros contos ficaram na gaveta, porque os amigos o
desencorajaram, mas, ao fim de 40 anos de carreira literária, Mário de Carvalho
tornou-se uma voz maior da literatura portuguesa.
São assinalados 40 anos de carreira literária de Mário de
Carvalho na próxima segunda-feira. Créditos/ Lusa
Desde que publicou os primeiros textos, Contos da
sétima esfera (1981), nunca mais precisou de tomar a iniciativa de
levar os textos a qualquer lado, porque passou a ser sempre solicitado, até
hoje, 40 anos depois de iniciada uma carreira literária em que experimentou
todos os géneros, menos a poesia, que considera «demasiado nobre para [o seu]
alcance».
Para assinalar este percurso literário, Mário de Carvalho
vai ser homenageado na segunda-feira, na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
Recuando quatro décadas nas suas memórias, o escritor
recorda, em entrevista à agência Lusa, o início desta caminhada,
fortemente alimentada pela banda desenhada, pela biblioteca do pai e pelos
amigos, mas também por estes desencorajada.
«Fui escrevendo uns contos, já desde há algum tempo que
escrevia, desde os anos [19]60/70. Escrevi algumas coisas que mostrei a amigos
meus que me desencorajaram: ‘Os surrealistas já fizeram isto há muitos anos,
deixa-te disto’. E eu deixei».
Mas a necessidade de escrever foi-se impondo, como um
«impulso difícil de contrariar», o de lançar no papel as ideias, as situações,
as personagens que lhe ocorriam.
Mário de Carvalho, hoje com 77 anos, acredita que isso teve
que ver com o seu «mundo de leituras«, porque em jovem foi «um voraz leitor de
toda a espécie de livros».
Assim, foram-se somando os contos até que os levou à editora
Vega, na altura dirigida pelo escritor João de Melo, que gostou dos textos.
«A partir daí, foram editados e passei a ser solicitado, ou
seja, tenho ideia de que nunca tomei a iniciativa de levar os meus textos a
qualquer lado, porque houve sempre alguém que mos pediu até hoje, livro após
livro, editora após editora», contou.
Na altura já exercia advocacia, a área em que se licenciou e
para a qual tinha a vida orientada.
«Os contos foram surgindo a pouco e pouco e, na altura, de
um advogado que escrevia livros, passei a ser um escritor que também era
advogado», até que finalmente deixou a advocacia.
A escrita ficcional impôs-se-lhe por gosto e sente que a
certa altura adquiriu facilidade em criar situações e personagens,
confrontando-as sempre com o que já conhecia, quer da literatura, quer da Banda
Desenhada.
«Fui um leitor fiel e constante de uma revista que se
chamava Cavaleiro Andante e de outra que circulava muito entre
miúdos que era o Mundo de Aventuras. Isto fornecia-me um manancial
de personagens, de situações complicadas, de avanços e recuos», recorda.
Para o então jovem Mário de Carvalho, era «muito
interessante essa consulta semanal do Cavaleiro Andante, a troca de
impressões com os colegas que liam a mesma revista», e isso deu-lhe «alguma
agilidade na conceção de personagens e de situações dramáticas».
Mas também havia as «leituras sérias», e cedo começou a ler
Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro.
«O meu pai tinha uma biblioteca grande, boa, e deixava-me
mexer nos livros à vontade, a não ser em alguns livros que depois percebi que
tinham um caráter erótico, que estavam numa estante lá em cima, num ponto onde
não conseguia chegar. De resto facultava-me os livros e eu andava com eles,
levava-os para o liceu e para onde quisesse, e ia lendo sempre».
Mais tarde foi apresentado a Jorge Luis Borges, que o deixou
«absolutamente fascinado», e a outros autores latino-americanos, mas sempre foi
um leitor muito variado.
«Era capaz de ler Sob a bandeira da coragem, de
Stephen Crane, ao mesmo tempo tentar ler O Malhadinhas, do Aquilino
– e digo tentar porque não era nada fácil -, mas também ia avançando para o Eça
e algum Camilo Castelo Branco».
Mário de Carvalho reconhece que havia um contexto que
facilitava tudo, o facto de os seus amigos também serem bons leitores, o que
proporcionava que trocassem e comentassem livros.
«Encontrávamo-nos todos os dias e, entre as muitas coisas sobre que se conversava, nomeadamente política, também se conversava sobre livros, e os livros circulavam».
Ao longo da sua vida literária, o escritor já passou por vários géneros, diz que tem «o gosto de borboletear», varia muito e muda de registo, o que, confessa, lhe dá algum prazer.
Tem andado pelo conto, pelo romance e por várias épocas,
conforme o que se lhe apresenta, mas nunca escreveu poesia, nunca teve «esse
atrevimento».
«Não sei quem foi que disse, que isto da poesia é mais da
arte da magia do que outra coisa. Não é propriamente literatura, é magia e eu
de mago não tenho nada, por isso não, nunca, a não ser, talvez, na adolescência
tenha feito um poema ou outro, como os outros faziam, mas nunca me atrevi a ir
para esse terreno, que me parece demasiado nobre para o meu alcance».
A escrita de Mário de Carvalho também é feita de obsessões,
de certos temas que se impõem e que não o deixam descansar enquanto não estão
prontos.
Foi o caso de um livro que o «obcecou durante anos» e
que seria publicado mais tarde com o título O livro grande de Tebas,
Navio e Mariana, e que teve que ver com uma reminiscência que tinha desde
miúdo: estava a ver uma revista policial e havia uma referência à cidade de
Tebas, e esse nome ficou-lhe «a ressoar durante anos».
A mudança de registo literário em Mário de Carvalho
relaciona-se sempre com o tema que escolhe tratar, e o autor afirma ter muito
cuidado em manter uma linguagem adequada ao assunto e à época, estudando
previamente para isso, se for o caso: «Tenho cuidado na seleção de vocábulos,
mas também o próprio ritmo das frases é diferente».
«Temos que ter cuidado com isso e procurar encontrar um tom,
o ritmo, ler coisas de época e procurar cumprir o pacto com o leitor, o célebre
pacto com o leitor, ou seja, se eu estou a escrever sobre o século XVIII,
estamos no século XVIII e não há frases, nem realidades posteriores. Se estou a
escrever sobre os anos 20, estamos no mundo dos anos 20 e penso que o leitor
espera isso, que o autor se informe e não entre pela inverosimilhança».
Sobre uma apreciação que por vezes é feita às palavras que
utiliza, como sendo difíceis, Mário de Carvalho considera não ser muito
correta, pois limita-se a utilizar as palavras que lhe parecem adequadas à
situação que está a ser tratada, para «acentuar mais matizes e procurar certos
efeitos».
«Não tenho nenhuma pretensão de deslumbrar com palavras
difíceis, de forma nenhuma. As palavras que utilizo não são difíceis para mim
nem para outras pessoas da minha geração e, portanto, se alguém não as conhece,
o problema não é meu, o problema é que as pessoas estão muito ligadas ao
vocabulário básico elementar das televisões e das rádios, quando o nosso
vocabulário atual é muitíssimo mais versátil e muitíssimo mais rico e está lá
para ser empregado, não está para ser omitido».
Se isso significa vender menos livros, é algo que não o
aflige, porque não é essa a razão por que escreve: «Interessa-me prosseguir
este caminho de uma literatura que já tem oito séculos, que não é de agora, e
de vez em quando não é mau darmos uma espreitadela para aquilo que está lá para
trás e que nos formou».
Os trovadores, os homens do renascimento, escritores
«perfeitamente fascinantes, como Gil Vicente», ou o «espantoso mestre da língua
e da clareza» Padre António Vieira são alguns dos autores que de vez em
quando revisita.
Olhando para trás, não tem razões de queixa: «Nunca fui um
chamado best seller, mas os meus livros têm-me corrido
razoavelmente e tanto que, ao fim de 40 anos, eu ainda estou para aqui», já com
«uma certa tranquilidade», sem essa «efervescência e emoção de outros tempos».
«As coisas seguem o seu ritmo e penso que, sem falsas
modéstias, há um lugar marcado na nossa literatura que não é minha, não fui eu
que inventei, são oito séculos, e eu sinto-me a trabalhar nessa base, sou uma
voz que se soma a oito séculos de experiência literária e de avanços e recuos
neste campo da literatura».
Nascido em Lisboa, em 1944, combatente da ditadura, que o
levou à prisão, Mário de Carvalho estreou-se na literatura aos 37 anos,
com Contos da sétima esfera, publicados em 1981.
Desde então, entre romance, novela, conto, ensaio, crónica,
teatro e literatura para a infância, soma mais de 30 títulos, entre os quais se
encontram Um deus passeando pela brisa da tarde, A inaudita
guerra da avenida Gago Coutinho, Os alferes, Era bom
que trocássemos umas ideias sobre o assunto, Apuros de um
pessimista em fuga, Fantasia para dois coronéis e uma piscina e Se
perguntarem por mim, não estou seguido de Haja harmonia.
Os prémios chegaram desde logo com as primeiras obras, como
o Prémio Cidade de Lisboa e o Prémio D. Dinis, atribuídos ainda durante a
década de 1980.
Entre outros, recebeu os Grandes Prémios de Romance e
Novela, Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), o prémio
do PEN Clube Português, de narrativa e de ensaio, o prémio internacional Pégaso
de Literatura, o Prémio Fernando Namora, por duas vezes, o Grande Prémio de
Literatura dst e o Prémio Vergílio Ferreira, de carreira, da Universidade de
Évora.
Em 2020, recebeu, pela quarta vez, um grande prémio da APE,
este de Crónica e Dispersos Literários, pelo livro O que eu ouvi na
barrica das maçãs.
No ano passado publicou igualmente Epítome de
pecados e tentações, uma nova coletânea de contos e novelas.
Lusa
https://www.abrilabril.pt/cultura/interessa-me-prosseguir-este-caminho-de-uma-literatura-que-ja-tem-oito-seculos