* Carlos Coutinho
JULGO que toda a gente possui nos subterrâneos da consciência casos insolúveis que, de vez em quando, vêm cá cima fazer doer. Eu, pelo menos, tenho alguns. O mais próximo é o ultimo olhar do meu infinitamente afetuoso Pinguço, quando o entreguei ao veterinário para o ajudar a morrer adormecido e sereno.
Já lá vão 5 anos, mas ainda sinto uma enorme compressão no peito sempre que me lembro daqueles dois pontos escuros, aguados, muito abertos para mim, a brilharem tristíssimos, talvez com pena do seu dono que lhe murmurou um adeus muito dorido.
Tirei-o do sofrimento incurável em que ele entrara, mas ainda pago um alto preço emocional por essa decisão apenas racional.
Outro caso é o daquele frio que sinto nos lábios sempre que recordo o beijo que depus na testa marmórea de um tio meu muito querido que tantas vezes me havia pegado ao colo quando eu era menino. Foi na capela funerária de Vila Real. Viajei a noite quase toda para lá chegar.
O meu tio Alberto havia sido atropelado na estrada da Cumieira por uma condutora inexperiente. Estava agora à sua volta a nossa família inteira, mas não consigo ver o rosto nem ouvir os murmúrios de qualquer dos nossos parentes ali reunidos pela primeira vez, só que pelas piores razões. Apenas percebo a inumanidade do frio que tocou para sempre os meus lábios.
Há mais casos assim dolentes e inapagáveis na minha memória, mas um sufocante pudor impede-me agora de os trazer a este apontamento. E, tenho de me refugiar no passado que me moldou e fez a todos nascer e sermos o que somos.
Há 66 anos, por exemplo, embarquei com mais 15 militares em rendição individual no "Infante D. Henrique”, um paquete de luxo com 300 metros de comprimento e piscina a bordo que me levou a Moçambique.
Lisboa estava tão cabisbaixa naquele dezembro gélido que só vejo xailes, samarras de gola peluda, sobretudos grossos e capotes, gente a tiritar em Alcântara com aquele chiasco de cortar orelhas. Também oiço os gritos das gaivotas misturado com os acenos inaudíveis de centenas de pessoas no cais que se acotovelavam nas despedidas desfraldando lenços para quem se apinhava no convés do navio.
E agora vejo que, afinal, nada disto é compatível ou sequer associável àquele 24 de Julho de 1833 que deu o nome a uma avenida de Lisboa e foi épico quando o Duque da Terceira retomou a capital atravessando o Tejo depois de derrotar os miguelistas na Batalha da Cova da Piedade, em Almada.
Também acontece que o dia 24 de Julho de 1414 é tido geralmente como a data provável da realização do Conselho Régio de D. João I, em Torres Vedras, para deliberar sobre a expedição destinada à conquista de Ceuta, marcando o início da expansão marítima portuguesa.
Por outro lado, recordo que em 1810, depois da chegada a Almeida do exército napoleónico comandado por Massena, aconteceu o chamado Combate de Coa, junto a uma ponte que ainda lá estará muito envergonhada e também, 119 anos depois, entrou em vigor um pacto internacional que, como se sabe, nunca foi cumprido, o Pacto Kellog-Briand, em que se renunciava à guerra como um instrumento de política externa, assinado pela primeira vez em Paris, em 27 de agosto de 1928, pela maioria das principais potências mundiais.
Em 1943, dois meses antes de eu nascer, exatamente a meio da II Guerra Mundial, começou também neste dia a “Operação Gomorra” em que aviões britânicos e canadianos bombardearam Hamburgo de noite e foram diurnamente seguidos pela aviação norte-americana na destruição da cidade.
Quando esta operação genocida foi dada por concluída, já em novembro, tinha consumido 9 mil toneladas de explosivos que mataram mais de 50 mil pessoas em casa e destruíram 280 mil edifícios.
Dois anos depois, por retaliação assumida como tal por Churchill, os mesmos fizeram o que alguém ainda considera como “holocausto de Dresden”. Aqui foram despejados, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, com Hitler já derrotado e humilhado em todos os teatros de guerra, 3 900 toneladas de novos explosivos que mataram 25 mil pessoas, quase todas civis e de todas as condições sociais, idades e géneros, além de arrasarem completamente uma das cidades mais ricas da Alemanha em património histórico e cultural.
Espero que russos e ucranianos não sigam agora este exemplo tão democrático e ocidental, também seguido pelos mesmos de sempre na Coreia, no Vietname, no Iraque, na Síria, etc. E, se o fizerem, ao menos que imitem igualmente a RDA que reconstruiu Dresden fielmente, milímetro a milímetro, em poucos anos, sem dispor de qualquer Plano Marshall.
Mas, quem talvez contasse tudo isto muito melhor que eu seria Alexandre Dumas, o de “Os Três Mosqueteiros” e de “O Conde de Monte Cristo” que, se ainda fosse vivo, hoje faria 200 anos.
P. S. Há apenas um problema indisfarçável, mas perdoável, julgo eu: é que estamos hoje no dia 30 de Junho, uma data sem memórias que valha a pena recordar e eu senti que é urgente, mesmo muito urgente, esconjurar o perigo que a Ucrânia está a correr. À falta de melhor recurso, antecipei para hoje o dia 24 do mês que amanhã começa. Estou perdoado?
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