segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Maria Stepánova: “O que Putin está a fazer é uma guerra de memória”


Entrevista Livros

Maria Stepánova: “O que Putin está a fazer é uma guerra de memória”

Aos 50 anos, Maria Stepánova é um dos nomes mais talentosos da actual literatura russa. Poeta, ensaísta, é autora de Memória da Memória, um livro desafiador de fronteiras de género.

Isabel Lucas

2 de Janeiro de 2023, 10:12


 Na sombra de um ensaio de Jacques Rancière, a narradora de Memória da Memória, lembra que “o objectivo da arte consiste em mostrar coisas invisíveis”. O seu único projecto literário em prosa passava por tentar dar visibilidade às pessoas da sua família no momento em que ela era a última dessa linhagem. “Parte substancial dos esforços dos meus avós foi feita precisamente para que ficassem invisíveis, para que alcançassem a imperceptibilidade almejada, para que se perdessem na obscuridade doméstica, para que se mantivessem afastados da grande história com as suas narrativas ultrapoderosas e os seus erros de milhões de vidas humanas.” Maria Stepánova, poeta, russa, 50 anos, pegou na invisibilidade da sua família e transformou-a num dos livros mais originais publicados neste ano em Portugal.

Apresentado como um romance, o livro funde ensaio, crónica, crítica de arte, poesia, num híbrido que é também um tratado político. Começa na intimidade de uma casa vazia. A dona, a tia Gália, morreu e deixou o pequeno apartamento atulhado de objectos de uma vida solitária. Ao lado da cama, uma arca escondia uma espécie de tesouro: diários de uma vida inteira, quase todos a elencar acontecimentos do quotidiano. “Era como se a intenção principal de cada apontamento, de cada volume preenchido ano a ano fosse precisamente a de deixar um testemunho seguro sobre a sua vida exterior, guardando a vida verdadeira, interior, para si própria. Mostrar tudo. Esconder tudo. Guardar eternamente.”

Os diários da tia Gália, no jogo de sedução entre o pouco que mostravam e o muito que ocultavam, servem a Maria Stepánova para iniciar o leitor no quebra-cabeças que se segue, evocando, em diferentes momentos da sua escrita fragmentária, trabalhos de outros autores como Todorov, Sontag, Celan, Pasternak, Pushkin, Borges, Proust, Barthes, Tolstói dependendo dos tópicos sobre os quais a sua reflexão incide: memória e linguagem, arte, política ou literatura.

O processo de escrita é o processo da sua reflexão, intimamente exposta, convocando os vários mecanismos de preservação da memória ao longo dos tempos — da imagem, à escrita, à oralidade, às redes sociais. E a certeza, logo no início: a de que nenhuma história chega até nós na íntegra. Isso não é impedimento para a busca. Só aumenta a ânsia da procura como refere a escritora nesta conversa a partir de Berlim, onde vive desde o início de Março, pouco depois de a guerra ter começado. “Nunca fez parte dos meus planos sair”, afirma ao Ípsilon um dia antes do Natal, num inglês carregado de sotaque russo, a língua que diz que deve ser reinventada porque se tornou uma língua de violência.

Ao colo está Rio Pequeno, a cadela que trouxe de Moscovo, a quem dirige palavras de conforto no mesmo russo com que escreve a sua poesia (tem cinco livros traduzidos em várias línguas fora do russo, sobretudo em inglês). Vê-a como uma forma de resistência.

Agora aprendeu a prosa, uma nova fisicalidade, o processo seduziu-a, e também na prosa fez piruetas com a forma. Evocando Sebald, escreve neste Memória da Memória: “Eu própria estou pronta a aceitar qualquer mistura do que existiu e não existiu, do documental e fictício”.

Memória da Memória saiu há cinco anos, chega agora a Portugal e ao lê-lo, com todas as menções à história do território que ele percorre, é inevitável não pensar no que está a acontecer actualmente e no significado que se acrescentou ao muito do que escreve. Isto remete a outra ideia: a da aparente circularidade ou repetição da história, neste caso a história da Rússia.

Sim. Para mim é um saber devastador. A Historia chegar ao ponto em que um homem parece replicar acontecimentos catastróficos. No decorrer da História somos atraídos por toda a espécie de coincidências e correspondências. Com a História russa essa tendência parece ser ainda maior. É uma dança onde há demasiada História. Mas resisto muito à ideia de que a Rússia tem uma tendência especial para reproduzir não exactamente os mesmos acontecimentos, mas talvez uma certa constelação, uma certa relação entre os que estão no poder e a população do país.

O facto de certos acontecimentos tenderem a repetir-se pode ser apenas um resultado natural do enquadramento imperial em que a Rússia existe. Mas fala-se numa espécie de maldição, e há pessoas que não param de se interrogar: será que a Rússia está condenada a este estado de opressão e repetição? A minha resposta foi sempre que não. Ninguém está condenado a repetir-se a si mesmo, e há sempre uma maneira de se sair disso. Por agora, vemos a Rússia e parte da Europa presas à mesma constelação. Mas tenho a sensação de que o que está a acontecer não é uma guerra contemporânea, não é explicável em categorias geopolíticas. É outra coisa. O que Putin está a fazer é uma guerra de memória.

A que chama guerra de memória?

Tenho pensado muito na memória da Guerra Fria, sobretudo em países como a Rússia ou a Polónia, que estão tentar construir uma memória completa ao adoptar uma certa versão da história e prometer uma pena para os que não a apoiarem ou para quem apontar incongruências acerca de alguns acontecimentos que não sejam reconhecidos pela polícia de estado. Por exemplo, a Polónia está a criminalizar todas as menções a cidadãos polacos envolvidos no Holocausto durante a ocupação alemã.

A Rússia está a prometer consequências sérias para aqueles que compararem a União Soviética dos anos trinta e quarenta à Alemanha de Hitler, ao ponto de a visão da História promovida pelo estado ser profundamente problemática para a população. Há uma guerra promovida por um estado e parte da população discorda do abuso de poder por parte desse estado; um abuso que se apoia na promoção de uma versão da História em relação ao país vizinho. E está a fazê-lo usando qualquer coisa parecida com a velha guerra de trincheiras.

Já não é a memória da Guerra Fria, mas continua a ser uma memória de guerra. Os métodos são bem arcaicos. Há um anacronismo nesta guerra. Não vemos drones, nem novos instrumentos de guerra. E sabemos que a Rússia soube usá-los na Síria. Mas agora o que fizeram foi praticamente uma encenação de algumas memórias, ou talvez de alguns filmes sobre acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Só que na Rússia. Ataques, bombardeamentos. Se no dia 7 de Agosto de 1941 começaram a bombardear Kiev, agora, uns oitenta anos depois, a Rússia volta a bombardear Kiev usando os mesmos métodos, a mesma lógica. É bizarro.

Memória da Memória

Autoria: Maria Stepánova
Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Editora: Relógio d’Água
432 págs., 22€

 

Tenho a convicção de que Putin e os seus apoiantes estão profundamente insatisfeitos por viverem no século XXI. E não é que quisessem apenas viver no século XX, mas era mais fácil organizarem as suas máfias debaixo da mesa e continuarem como se nada fosse, numa sociedade em que não havia qualquer espécie de activismo, movimentos de mulheres, blá blá... Era apenas o grande jogo oligarca dos que estão no poder. Não sabemos o que vai sair daqui, mas acho que estamos sob uma grande ameaça.

No seu livro podemos falar de duas memórias paralelas: a colectiva e a privada. No modo como o lemos, começamos pela memória privada, a de pessoas da sua família, e dela viajamos pelo que podemos chamar de memória do mundo ou tentativa de indagação da memória do mundo. No fim do livro, a narradora escreve: “O herói imagina-se um produto da linhagem, o seu resultado imperfeito; mas na realidade ele é senhor da situação. A sua família fica entregue ao arbítrio do narrador, tudo se passará como ele o contar, os familiares são seus reféns.” E mais à frente: “O herói tenta fazer jogo duplo: comportar-se como os seus parentes sempre se comportaram — na sombra. Mas o autor não pode ficar na sombra; por mais que tente, este livro é sobre ele.” Não é sobre o herói porque ele não existe, mas sobre o autor, Maria Stepánova?

Esse pavor é meu. Este é um livro de não-ficção porque não inventei ou acrescentei qualquer espécie de enredo. Não é um trabalho de jornalismo, mas é uma tentativa de escrever o que aconteceu como aconteceu. Comecei a escrever fisicamente este livro quando tinha dez anos. No meu arquivo, havia um caderno escolar de 1982, e nas primeiras linhas preenchidas com a minha caligrafia colorida estou a lidar com os mesmos assuntos e muitas vezes com as mesmas histórias. Tentei escrever algumas histórias que a minha mãe me contou, mas eu queria era escrever um livro e tudo começou de forma muito pomposa. Claro que era um esforço tremendo, imenso, muito longe das minhas possibilidades.

Lembra-se das primeiras frases?

Ohh, não; não das palavras exactas. Esse livro está em Moscovo e agora estou em Berlim. Era pomposo de uma forma muito infantil, do tipo: “Eu, Maria Stepánova, estou aqui para escrever a história da nossa famosa família.” E a frase estava cheia de cores. Depois parei. Era demasiado. As expectativas acerca de mim mesma eram excessivas. Mas é estranho porque sempre soube que, em algum momento, iria escrever este livro, e não o olhava como parte do meu trabalho literário.

Tive necessidade de inventar um novo género em parte porque não gosto de restrições de género, mas também porque isso me aborrece. Enquanto alguém que vem de um país com regras restritas e cortinas de ferro sempre tentei transgredir. O original russo tem uma definição de género diferente

Porquê?
Porque sempre pensei em mim, acima de tudo, como poeta, e talvez quase de modo exclusivo. Quando me perguntavam o que pensava de escrever prosa respondia dizendo que a minha poesia tinha a quantidade necessária de prosa de que eu precisava. Portanto, não foi qualquer coisa que tivesse feito para mudar a minha presença na literatura. Talvez fosse o oposto, uma espécie de obrigação, uma coisa que sentia que devia há muito tempo à minha família e tinha de o fazer.

Claro que isso me interessava e desde criança fui recolhendo histórias dispersas em envelopes, pedaços de papéis, em diferentes blocos de notas. Precisava de juntar toda essa informação, como também as minhas próprias memórias. Resumindo, estava interessada, mas isso requeria muito esforço. Pelo meio percebi que teria de mudar a estrutura do livro e a minha abordagem. E tinha medo, porque quando comecei a pensar nisso tinha dez anos...

E refere que a sua mãe estava lá para lhe contar histórias. além disso, refere uma outra ideia de memória: “a memória tinha outro sentido, alheio para mim: não era um objectivo de uma viagem dolorosa, mas uma simples consequência da duração — a vida produzia-a como uma secreção, e esta engrossava-a com a passagem do tempo, sem incomodar ninguém.”
Antigamente a minha mãe estava viva, assim como muitos outros familiares. E eu podia sempre perguntar e ter uma resposta. Com o passar do tempo, já ninguém estava vivo. E quando fui pesquisar até as respostas que a minha família costumava ter, muitas não eram precisas e outras eram mesmo falsas. Por outro lado, havia muitos períodos de silêncio. A história do meu bisavô tinha muitos espaços em branco, outras vezes apareciam histórias muito distorcidas.

Depois do livro pronto voltei a consultar arquivos, mas não consegui nenhuma fotografia dele e continuo sem saber como morreu e quando morreu, o que é emblemático: ser capaz de encontrar algumas coisas, mas haver coisas cruciais que permanecem no escuro. Isso influenciou o conceito do livro. Quando eu era criança esperava um livro com uma narrativa linear e tornou-se evidente que não podia funcionar dessa maneira. Tinha de contar a história com todas as suas ausências, os seus espaços vazios. Por isso o livro é tão estranho.

É apresentado como um romance, mas desafia todos os géneros. Tem ensaios, memória, crítica de arte, poemas e uma estrutura fragmentada.

Tive necessidade de inventar um novo género em parte porque não gosto de restrições de género, mas também porque isso me aborrece. Enquanto alguém que vem de um país com regras restritas e cortinas de ferro sempre tentei transgredir. O original russo tem uma definição de género diferente. Em russo é roman; romance é uma obra local entendida como um cântico. Quis as duas coisas juntas. Tinha em mente o conceito de um romance familiar, onde uma pessoa de uma certa idade tenta inventar uma história para si e para a sua família, imaginando um enquadramento diferente que a torne mais excitante ou fascinante.

No caso, é complicado porque não é um romance convencional. Mas penso nele como qualquer coisa que tem um enredo e muitos contextos que se tornam vivos através da prosa. Se calhar por isso é um romance. E se for, então é um bildungsroman, um romance de formação; o género que descreve a evolução de uma pessoa de um ponto a outro, a jornada de uma pessoa através de factos, experiências, que mudam o seu comportamento ou atitudes. Nesse sentido, é um romance porque o que acontece à narradora através da viagem pela escrita da história da família alterou-a. Não sei se para melhor ou para pior. Mas é a história de uma pessoa.

A dado momento do livro a narradora acha-se diante de uma certeza, a da impossibilidade de contar aquela história.

Isso é que torna o trabalho fascinante. Quando estamos a lidar com a memória nunca sabemos quem está a enganar quem; a memória e a nossa obsessão com a memória alimentam-se de uma ânsia ou falta profundas; da ânsia de encontrar alguma coisa e de estabelecer algumas ligações com pessoas ou acontecimentos do passado. Mas sendo a ânsia tão profunda, a psique encontra maneiras de se enganar e de nos enganar na crença de que existe a solução para um enigma ou para uma falta.

Acho que não somos capazes de refazer o passado, mas que isso não nos deve impedir de continuar a tentar. O que importa é a ânsia, a procura e não o resultado. Sabemos que não somos capazes de ressuscitar os mortos. E sim, a nossa memória é sempre enganosa, muitas vezes totalmente ficcionada. Há uma história que gosto de contar e que li algures. Um estudante americano está a escrever um trabalho sobre a memória e regressa a casa dos pais para o Natal. Quer fazer uma experiência. A família está reunida à volta da mesa, estão a partilhar memórias e a dado momento o estudante pergunta se se lembram de quando ele se perdeu no supermercado aos quatro anos. Ninguém se lembrava, mas ele continuou a juntar detalhes até que alguém disse que se estava a lembrar, e mais alguém deu mais detalhes e ficaram convencidos que o incidente acontecera.

No dia seguinte o estudante disse que tinha inventado tudo e que o fez por causa de um trabalho em que queria mostrar como a memória podia ser traiçoeira; a família disse que ele estava enganado, que ele se tinha mesmo perdido aos quatro anos num supermercado, mas como não se lembrava, inventou-o baseado em memórias subterrâneas. Acho que é assim que a memória funciona. Começa a partir de nada, como uma pérola cresce numa concha. É impossível prever resultados, mas se há um grão de areia numa concha há a possibilidade de que ele se transforme.


Os seus novos poemas têm a ver com a guerra, os seus ensaios têm pensamentos políticos. Tudo é impublicável. Isto é uma coisa a que não está habituada. Era muito nova quando a União Soviética caiu e com ela caiu a censura Lorena Sopena/Europa Press via Getty Images

 

Há uma questão que atravessa o livro: “aquilo que resta de nós quando nós próprios deixamos de existir”? Porque é que esta pergunta é tão importante?
Acho que muitas vezes não tem resposta no mundo contemporâneo. Nos séculos anteriores era mais fácil as pessoas saberem, ou preverem; tinham uma fotografia mental do que lhes iria acontecer, o que iria acontecer às suas almas, o que iria acontecer aos seus corpos mortos e ao seu legado. Tudo estava claramente descrito. Parece um pouco contraditório, mas sem elas continuava a ser um mundo habitável, especialmente ao longo dos últimos dois séculos alguma coisa mudou na nossa relação com a morte.

Sebald escreve que estamos a atirar os nossos mortos cada vez para mais longe de nós, para fora das fronteiras do humano, para fora das cidades. Já não ficam ao lado da igreja mais próxima, mas numa qualquer cidade de pedra construída para eles, bem isolada, vedada, de modo a prevenir que os mortos saiam e voltem para nós. Tenho uma grande preocupação com a questão do legado humano num momento em que até o modo como controlamos a nossa própria vida deixa de nos pertencer. Hoje deixamos marcas por todo o lado, mas elas serão apenas lixo tal a profusão do arquivo. Quando somos escritores, os nossos parentes continuam a controlar os direitos sobre as nossas palavras, mas há qualquer coisa que não pode ser monitorizada e é essa a essência do ser humano.

Falou de Sebald. Mas há Proust, Borges, todos os escritores em que se apoiou e que trabalharam sobre a memória. Até que ponto eles a acompanharam neste trabalho?

É engraçado, nunca sabemos o suficiente acerca dos que nos são mais próximos. É natural. E pode parecer estranho, mas sabemos muito mais acerca de Proust ou de Sebald ou Tsvetáeva ou Borges do que sobre as nossas avós. Muitas pessoas têm a sorte de passar mais tempo com elas, mas ainda assim, as pessoas que estamos a ler tornam-se como que nossos parentes.

Essa ideia aparece logo no início do livro, quando a narradora descreve a entrada na casa da tia. “Os armários povoavam-se daqueles livros que, ao chegarmos de visita, cumprimentamos como parentes: Mataram a Cotovia, um Salinger de capa preta com a figura do rapaz, lombadas azuis da ‘Biblioteca do Poeta’, Tchékhov em cinzento, Dickens em verde.” Até que ponto essas memórias das leituras que fizeram nos podem ajudar a lidar com as nossas próprias memórias?

Acho essa pergunta muito bonita. De alguma maneira ajuda-nos a entender as nossas pessoas, os nossos familiares e o mundo em que viveram com uma maior lucidez. Quando temos de lidar com esses grandes espaços vazios a única coisa com que somos capazes de os preencher é com a memória de outras pessoas, porque viajaram pelos mesmos territórios, lidaram com sentimentos semelhantes, leram os mesmos jornais. São diferentes, mas em certa medida são os mesmos nesse sentido da partilha de experiências num momento; pertencem a essa imensa continuidade dos contemporâneos. Não são capazes de preencherem o vazio, mas ajudam-nos a explicar a nossa vida através das vidas dos que nos eram próximos. Não os usamos como um exemplo, mas como um corredor imaginário. É bom ter uma trajectória.

Escreve: “o ofício do observador é a apropriação / assimilação do alheio.” Esse é também o ofício do escritor que se quer apropriar do alheio e chegar a um sentido.

Talvez não seja chegar a um sentido, mas a alguma essência. Debaixo da roupa das nossas vidas existe um desejo profundo de nos tornarmos outra pessoa. Por isso é que nos sentimos tão envolvidos nas histórias de outras pessoas. Nos filmes, na literatura, jornais, blogues. Queremos ser qualquer coisa tão diferente que nem somos capazes de nos imaginar dessa forma. Mas ainda assim essa ânsia persiste, a ideia de uma transformação completa noutra pessoa, ou pode nem ser uma pessoa, pode ser um pássaro, uma vaca um extraterrestre. A ideia de deixarmos a nossa própria forma e transcender outra entidade é sedutora.

Fala em lacunas, espaços por preencher, mas também da invisibilidade. O que não se pretende que fique na memória, o que a história quer apagar. Um dos capítulos chama-se ‘O Judeuzinho Esconde-se’, nele menciona como a cultura enraizada leva a que se apague essa marca. Isso está em Proust, Thomas Mann ou mesmo em Pasternak. Mas também na sua bisavó judia.

Esse capítulo foi difícil de escrever no sentido em que é uma história ou um saber que me acompanha desde muito nova. Nasci em 1972, na União Soviética com a sua versão estatal e oficial acerca do anti-semitismo. Por exemplo, na universidade havia uma quota que não permitia que muitos judeus entrassem ao mesmo tempo, a mesma coisa nos locais de trabalho. E havia um anti-semitismo enraizado nas nossas vidas privadas. Eu teria uns 7 ou 8 anos, e os meus pais explicaram-me de uma maneira muito clara que éramos de alguma maneira diferentes e que essas diferenças eram também obrigações e que eu tinha de ser perfeita nalguma coisa porque isso seria uma protecção para me permitir sobreviver.

Quando era adolescente relaxei um pouco. Eram os tempos da Perestroika e havia muita esperança no futuro. Mas essa sensação de ser diferente no mundo soviético explica em parte a minha questão acerca de que diferença é essa, porque não éramos religiosos. Na União Soviética, a identidade judaica não era acerca da observação de certos cultos religiosos; era uma noção que levávamos connosco ao longo dos anos e nada mais, mas era muito importante. Como era um tema delicado, manteve-me sempre consciente e interessada. E muito surpreendida ao descobrir — em especial entre as duas guerras mundiais — um ambiente de invisibilidade que de alguma forma tornava os judeus extremamente visíveis. Muitas vezes para si mesmos.

Quando uma pessoa tenta esquecer a sua identidade para passar por um russo melhor, um francês melhor, um alemão melhor, isso alimenta um ódio interno e mais uma vez a ânsia de se tornar outra pessoa. E ler escritores que amamos que participaram dessa lógica?! Por exemplo, Proust, que tratou do conceito de ser judeu, ou Pasternak, que olhou para o seu judaísmo como uma praga, como uma ferida, como qualquer coisa má que lhe aconteceu. É terrível. Aconteceu com os judeus mais tarde na Shoah, a mesma maldição que foi imposta à população judia indiscriminadamente, estivesse ou não convertida ao cristianismo. Era impossível escapar a si mesmo.

Refere a dificuldade em encontrar uma linguagem que se ajuste às falhas da memória. Acha que com este livro ficou mais próxima dessa linguagem?
Sim e não. Quando terminei o livro senti uma espécie de alívio. Nos últimos capítulos falo dessa espécie de fardo que carregava comigo como uma mala muito pesada. Quando finalmente estava pronta para guardar a mala no armário, senti uma espécie de alívio. Missão cumprida. Lidara com o peso, com as dores, com as histórias, e estava finalmente livre. Mas depois percebi que terminava a missão, mas a pergunta, a enorme pergunta a que queria a responder não está respondida, precisa de outro ângulo. E agora é preciso encontrar outro ponto e outra possibilidade para começar a falar e talvez outra linguagem, porque uma nova pergunta pede uma nova linguagem.

Escrever prosa põe-nos num lugar de maior visibilidade. Isso faz-me ter pena da poesia em geral, porque acho que nos momentos mais obscuros — e estamos a viver tempos sombrios — a poesia torna-se muito mais “útil” porque a poesia é a linguagem que nos ajuda a sobreviver”

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Em inglês o título do livro é In Memory of Memory, em português é Memória da Memória. Não sei russo. O que se aproxima mais do que quis dizer?
Esse é um problema dos tradutores e também meu. O título original russo combina os dois significados. Em russo são duas palavras idênticas e significam as duas coisas. In memoriam, e as múltiplas memórias da memória. Eu não quis especificar o significado mais importante, cada leitor está apto para decidir o que melhor se ajusta. Esse título ambíguo foi uma decisão consciente, mas para mim o primeiro significado, in memoriam, a noção de dizer adeus à memória, tornou-se mais profunda da minha parte.

Porquê?
O que sei agora acerca da memória é que põe a pessoa diante de um número diferente de possibilidades e se nos deparamos com uma falha não podemos saltar, nem tornear. Somos incapazes de recuperar as nossas memórias perdidas; somos incapazes de voltar atrás; somos incapazes de distinguir entre o real e histórias imaginárias. Estamos praticamente encurralados nessa obsessão, nesse amor não correspondido por aqueles que já não estão cá. E cada história de memória é desde o início uma história de amor pelos amantes perdidos. Sim, este livro é um adeus à memória.

Define-se sobretudo como poeta, mas foi com esta prosa sobre a memória que alcançou o maior reconhecimento internacional. O livro foi nomeado para o International Booker Prize, está a ser muito traduzido. Isso fê-la olhar para a escrita, e para o seu projecto literário de forma diferente?

De certa forma é o que acontece quando um poeta começa a escrever prosa. Há várias razões para isso: a poesia não é tão popular, é mais difícil de traduzir e tem um clube mais restrito de praticantes. Escrever prosa põe-nos num lugar de maior visibilidade. Isso faz-me ter pena da poesia em geral, porque acho que nos momentos mais obscuros — e estamos a viver tempos sombrios — a poesia torna-se muito mais “útil” porque a poesia é a linguagem que nos ajuda a sobreviver. Foi assim no período da Segunda Guerra Mundial. Nos campos de concentração saber alguns poemas ou partes de poemas ajudava as pessoas a resistir. Dizer poesia alto, junto de outras pessoas, era precioso.

A poesia é portátil. Podemos andar por aí com um número de poemas na cabeça e cada poema é como um país diferente, um lugar diferente, uma casa, um lugar que podemos habitar. É diferente com a prosa. Temos algumas memórias das leituras, mas não somos capazes de decorar Dom Quixote para o lembrar na cela de uma prisão. Acho que em certos momentos as pessoas se viram para a poesia. Recomendo para estes dias. A poesia ajuda. Dá-nos uma segunda camada. Mas houve qualquer coisa que não pude prever: gostei bastante do processo de escrever prosa.

Foi a descoberta?

Sim. Eu não sabia. Adorei a fase da pesquisa, adorei a necessidade diária de me movimentar em direcção a alguma coisa para tentar chegar a alguma descoberta. Há uma fisicalidade diferente da da poesia. Por isso agora estou a meio da escrita de outro livro. É prosa, é diferente. É também um género distorcido, qualquer coisa entre um romance ortodoxo e uma coisa totalmente diferente. É um espaço seguro para estar porque agora não sou capaz de escrever muito, de escrever efectivamente. Mas ter coisas na cabeça, fazer esboços impede que eu enlouqueça neste tempo de guerra e de catástrofe. É bom saber que tenho coisas para fazer e só poderia ser prosa.


Maria Stepánova, poeta, russa, 50 anos, pegou na invisibilidade da sua família e transformou-a num dos livros mais originais publicados neste ano em Portugal DR

 

Não é o momento para escrever poesia?

Deveria ser um momento para escrever poesia, mas como acontece sempre em tempos de grandes acontecimentos colectivos, podemos escrever mas não somos capazes de avaliar a nossa escrita. O poema pode ser apenas uma tentativa de gritar, e a poesia é suposto ser outra coisa, não apenas uma confissão, não apenas um manifesto. Escrevi alguns poemas aqui e ali ao longo do ano, mas continuo sem os publicar porque quero ter a certeza de que são a coisa certa. Em especial agora quando a língua russa precisa outra vez de se reinventar. Um grupo de pessoas transformou-a numa língua de opressão e de violência.

Uma pessoa que escreve em russo tem de estar profundamente consciente, atenta, em relação ao facto de que deve ser feita qualquer coisa em relação à linguagem. Isso vai exigir muito esforço e poder e tempo. Sei que essa não é uma especificidade da língua russa; que é o que acontece a todas as línguas imperiais, têm um enorme potencial de violência. Essa herança está a tornar-me mais um problema do que uma fonte. Mas há outra coisa, porque para mim a cultura russa nunca foi uma coisa isolada, foi sempre parte de um continente, por isso não há uma grande diferença entre Mandelstam e T.S. Eliot. Sempre me senti herdeira de muitas tradições. Não sinto que pertenço a uma cultura nacional. Penso na cultura europeia, na cultura mundial. Não gosto de me sentir trancada entre fronteiras de uma certa tradição seja de que origem for.

O que agora se designa por cultura russa está a tentar fechar-nos no nosso russianismo, insistindo que é uma tradição muito diferente, que temos maneiras diferentes de fazer as coisas. Sinto-me presa e rebelo-me. Ou melhor, não tenho nada a ver com essa perspectiva e ver que ela pode ser partilhada por muitos dos meus compatriotas é trágico. Ver um país consciente ou inconscientemente fechar-se em si mesmo, sem noção do outro, da alteridade, é muito triste, desesperante.

Vem de uma longa e muito rica tradição literária. É apontada como uma das vozes mais talentosas e potentes da actual literatura russa. Como se vê nesse papel, a de herdeira de grandes obras e ao mesmo tempo uma voz ouvida na actualidade que “carrega” essa memória?

Ao longo dos últimos 300 dias tudo mudou. Eu vivia muito confortável em Moscovo, no que considerava o meu jardim. Agora esse campo transformou-se num campo minado; tudo é explosivo e tudo traz violência.

Vive em Berlim.

Sim. E nunca planeei sair de Moscovo. Ando à procura de uma palavra para o que fiz, porque emigrar é demasiado pomposo e estou a tentar arrumar na minha cabeça o que me aconteceu. Eu trabalhava muito pela Europa, mas nunca senti que queria morar noutro lugar. Adoro Moscovo, mas agora tudo é diferente e sair nem sequer é uma forma de protesto. Para pessoas como eu, sair é uma necessidade porque não consigo continuar a viver como escritora na Rússia.

Claro que não posso publicar nada relacionado com a guerra, directa ou indirectamente, mas mesmo além disso este livro que estou a escrever agora é uma prosa documental baseada numa história real do século XIX. A principal ideia é a de manter as coisas unidas. Mas acontece que as minhas heroínas são lésbicas e o que possa ter a ver com pessoas LGBTQIA+ num ângulo positivo é criminalizado na Rússia. Por isso, uma coisa que eu estava a pensar como um romance algo aborrecido com uma escrita diarística é transformado num crime contra o estado, o que é bizarro e até mesmo divertido de certo modo. Ou seja, acho que não estaria em perigo fisicamente se tivesse ficado na Rússia, pelo menos agora, mas seria impedida de publicar qualquer coisa que escrevesse.

Os meus novos poemas têm a ver com a guerra, os meus ensaios têm pensamentos políticos. Tudo é impublicável. Isto é uma coisa a que não estou habituada. Como referi, eu era muito nova quando a União Soviética caiu e com ela caiu a censura. Li sobre ela, mas talvez não a tivesse entendido. Agora ela existe e tenho de saber escapar-lhe.

https://www.publico.pt/2023/01/02/culturaipsilon/entrevista/maria-stepanova-putin-guerra-memoria-203293


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