* Alfredo Barroso
«O BRAVO SOLDADO CHVEIK», UM CRETINO GENIAL, EVOCADO PELO ALFREDO BARROSO EM TEMPOS QUE JÁ LÁ VÃO...
Foi em Janeiro de 1972 que li pela primeira vez «O bravo soldado Chveik», a obra-prima do escritor checo Jaroslav Hasek (1883-1923). Devorei-a em três dias, quando já só me faltavam três meses para começar a cumprir o serviço militar obrigatório. É fácil de imaginar o efeito que tão perniciosa leitura produziu no meu bestunto. Apresentei-me em Mafra, no quartel dentro do convento, tentando arvorar «uma expressão tão estúpida como a do arquiduque Carlos, herdeiro do trono austríaco». Mas, ao contrário do bravo soldado Chveik, não logrei iludir ninguém. Duramente treinado para defender a pátria e o império, fui rapidamente promovido a oficial miliciano, ao cabo de seis meses. E só a revolução do 25 de Abril, que ocorreu precisamente dois anos depois de eu ter entrado em Mafra, me impediu de conhecer a África, tal como o bravo soldado Chveik desejaria ter conhecido a Rússia durante a Grande Guerra: arriscando a pele, mas de borla.
Não admira que Josef Chveik, o genial personagem criado em 1911 por Jaroslav Hasek, seja considerado uma espécie de herói nacional checo. Rechonchudo e de baixa estatura, o rosto é rubicundo e afável, o sorriso é bem-aventurado e honesto, o olhar é fervoroso e ardente, tão radiante como o de uma criança. O aprumo francamente militar, a imbecilidade aparente e a ingenuidade desarmante aliam-se a um zelo inexcedível e a uma verborreia inesgotável. O valente soldado Chveik é uma autêntica picareta falante que exaspera os seus superiores até à exaustão e assim vai demolindo, pouco a pouco, o edifício da autoridade e da burocracia, com um optimismo irresistível e hilariante.
«Este tipo é um cretino?» - pergunta, às tantas, um coronel ao sargento-ajudante. «Às Vossas ordens, meu coronel, sou um cretino!» - responde o bravo soldado Chveik, antecipando-se ao sargento-ajudante com uma inefável candura. Mas um cretino genial, que sai ileso de todas as catástrofes - tanto as que ele provoca como as que lhe caem em cima - e assim consegue sobreviver à Grande Guerra e à derrocada do Império Austro-Húngaro. Jaroslav Hasek exprime, através de Chveik, o carácter do povo checo e o seu impressionante poder de desagregação. Quem leu as suas aventuras e conhece os checos diz que foi assim que eles deram cabo dos austríacos: «com a força da tenacidade, gota a gota, até ao esgotamento final», transformando a águia imperial num galináceo.
Nada resiste ao humor e ao sarcasmo de Jaroslav Hasek: nem os militares; nem o clero; nem os políticos, sejam eles conformistas ou revolucionários; nem as monarquias; nem as repúblicas; nem os impérios. Fundou o «Partido do Progresso Moderado Dentro dos Limites da Lei», mas foi peremptório: «É totalmente falso que eu tenha sido preso duas vezes. A verdade é que fui preso três vezes!». Quando colaborou na Rússia com os bolcheviques, sobrepôs sempre a ironia à militância e ao discurso oficial da Revolução. Era anarquista e boémio. Não espanta que tenha morrido na mais absoluta miséria.
(Publicado no «Diário de Notícias» em 17 de Novembro de 2006)
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