Primeiro nos EUA e depois no Brasil, o assalto aos símbolos do poder democrático por quem recusa, em nome do "povo", o resultado de escrutínios eleitorais coloca-nos perante a evidência de que democracia, justiça e bem são noções que variam de acordo com quem ganha ou perde - como no futebol.
Fernanda Câncio
10 Janeiro 2023
Neste domingo em Brasília, como a 6 de janeiro de 2021 no
assalto ao Capitólio, pudemos ver em direto, ou quase em direto, as imagens dos
assaltantes por si próprios, filmando tudo e filmando-se, através da partilha
orgulhosa nas redes sociais - como quem não coloca sequer a hipótese de estar a
cometer um crime e portanto a oferecer às autoridades as provas e identificação
necessárias para os encontrarem e processarem.
Podemos, é claro, explicar isso com a excitação, aliada à
falta de inteligência - ou ingenuidade, se quisermos ser caridosos. Mas sendo
do conhecimento geral que muitos dos assaltantes do Capitólio foram
identificados e acusados com base nas imagens partilhadas pelos próprios ou por
companheiros de assalto, talvez seja avisado pensar noutras explicações.
Além de todos os motivos tontos, que também existem, como o
da compulsão da selfie, aquelas pessoas querem mostrar-se naquele assalto
porque consideram estar a fazer algo heroico, pelo bem, e ter com elas, por
elas, muita gente, que pensam poder "levantar", contagiar, ganhar,
com a partilha. Não é só o assalto que é uma ação política - a partilha faz
parte da ação, como modo ostensivo de demonstrar que não só quem protagoniza
não aceita a ideia de estar a cometer um crime como despreza quem assim o possa
considerar. Porque, e o sequestro das cores do país e da sua bandeira como
símbolos do movimento significam isso, para quem ali está, aquele é "o
verdadeiro Brasil", o verdadeiro "povo".
Justamente, na entrada de um dos edifícios, ouve-se um dos assaltantes
dizer: "Já está tomado, estamos na casa do povo." Se
a casa é do povo, e se aquele é o povo, não há crime, pelo contrário; trata-se
de retomar legitimamente o que foi roubado, segundo o princípio básico da
democracia - um governo do povo, para o povo e pelo povo.
E nesse sentido não há nada mais simbólico que as filmagens
da entrada no Supremo Tribunal e da sua destruição, como o empunhar ante a
multidão, por um dos assaltantes, daquilo que sabemos agora ser uma cópia da
Constituição de 1988 (a filmagem começou por ser partilhada referindo que se
tratava do original).
Que vemos ali? Uma deslegitimação do regime através
da dessacralização da sua lei fundamental e do tribunal que tem por função
interpretá-la e aferir por ela quaisquer leis e práticas, ou uma pretensa
recuperação, pelo "povo" que os assaltantes creem representar, dos
princípios constitucionais que proclamam dar-lhes razão (um dos
artigos da Constituição tem sido sistematicamente invocado pelos bolsonaristas
como fundamento para um golpe militar)?
Na verdade, para aquelas pessoas, como para os assaltantes
do Capitólio, a convicção de que estão perante um roubo não tem sequer de se
fundar na ideia, alegada quer por Trump e trumpistas quer por Bolsonaro e
bolsonaristas, de que houve uma fraude eleitoral. Há uma espécie de conclusão
tautológica: se não foi ao seu lado, ao seu candidato, que foi
reconhecida a vitória, então a eleição não foi justa. Como para os fanáticos
futeboleiros, qualquer derrota só pode explicar-se por "roubo",
qualquer resultado que não o desejado só pode ser ilegítimo.
Assim, as mesmas regras e instituições que serviram para dar
a vitória a Trump e Bolsonaro deixam de ser credíveis quando são
derrotados. A democracia só é democracia se ganharem; as leis e os
tribunais só são para respeitar se prenderem Lula; quando o soltam passam a não
valer nada.
Os mesmos que exigiam "lei e ordem" e uma
"intervenção militar" para "repor a legalidade" podem então
escavacar edifícios públicos, roubar artefactos valiosos, esfaquear quadros,
defecar nos gabinetes, espancar polícias (os polícias que os enfrentaram;
também os houve) e os seus cavalos, num festim de ódio e absurdo.
Queremos acreditar que este espectáculo indecente terá o
efeito contrário do pretendido; que nos muitos milhões que votaram em Trump e
Bolsonaro - lembremos que perderam por muito pouco - há uma maioria que não se
revê nos assaltos de janeiro de 2021 e 2023. Que acontecimentos como estes
contribuem para enfraquecer a respetiva base de apoio, alienando muita gente, e
são por isso erros políticos - e Lula, depois de uma primeira reação
destemperada no domingo, soube esta segunda-feira corrigir o tom e o discurso
de modo a ir ao encontro de quem, não tendo votado nele, se queira demarcar do
ocorrido.
Aliás, de tal modo o que aconteceu pode revelar-se danoso
para o bolsonarismo que há quem esteja já a pôr a hipótese de que a aparatosa
ausência de reação policial em Brasília foi fruto de um maquiavelismo - o de
permitir que os vândalos agissem à vontade, de modo a que Bolsonaro e o seu
movimento caíssem em desgraça, perdendo apoio nacional e internacional.
É verdade que internacionalmente Bolsonaro viu até líderes
de extrema-direita como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni
demarcarem-se de modo inequívoco do sucedido (quiçá vêm daí as fortes dores de
barriga que, dizem-nos, o acometeram na Florida), e que o próprio, isolado,
amedrontado e sonso, acabou por fazer o mesmo. Mas aquilo a que assistimos nos
EUA e agora no Brasil (e mais ainda porque se repetiu no Brasil depois de
acontecer nos EUA, em óbvia remake do filme americano) não é
apenas um sinal daquilo que já sabemos - que no seio das democracias estão a
crescer exponencialmente movimentos cujo intuito, consciente ou inconsciente, é
derrubá-las, chegando ao paradoxo de exigir, como o fazem os
bolsonaristas, a implantação de ditaduras militares como "salvação"
do país e do próprio regime democrático.
Estes acontecimentos medonhos demonstram que a ideia de
democracia se transformou, para muita gente, num conceito plástico, vazio, que
não corresponde a qualquer conjunto de princípios. Uma espécie de fakedemocracia,
ou democracia alternativa - como as fake news e os factos
alternativos, é o que der jeito no momento.
https://www.dn.pt/opiniao/bem-vindos-a-fakedemocracia-15629461.html
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