quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Carlos Coutinho - Valença - água mole em muralha dura tão dá que até a derruba

* Carlos Coutinho

Água mole...

AO invés de Camões, de Camilo e de Pessoa, que brotaram de Lisboa e, para medrarem ricamente frutuosos, foram enraizar-se e mamar nutrientes noutros solos por esse mundo fora, Aquilino, Torga e Saramago eram portugueses de nascença, mas só aportaram à capital dos terramotos e das alfaces quando já sabiam sopesar as palavras que os produziram, na serrana e beirã Sernancelhe, na vinhateira e sabrosina S. Martinho de Anta e numa Azinhaga muito chã, ribatejana e taurina.

Camilo até foi meu vizinho em Vila Real e Camões proveio de uma família de Chaves, aquela herança romana que não dista muito do meu talhão duriense de semeadura, o pedante e piroso 'terroir', como agora se apelida, à francesa, o terreno onde a vinha ainda vinga para dar uvas.

E tudo isto para dizer, na fala mais generalizada dentro do nosso indefeso idioma pós-redes sociais, que não me espanto com a notícia de que “a Área Metropolitana de Lisboa é a região com mais abandono escolar no 3.º ciclo”, apesar de ser a parte de Portugal onde os jovens têm menos dificuldade de transporte e há qualquer escola mais perto da sua residência. Vem esta desgraça no relatório anteontem divulgado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) que agora me chegou às mãos: “Situação após 3 anos dos Alunos que Ingressaram no 3.º Ciclo do Ensino Básico”.

Especifica a DGEEC que os “desaparecidos” são quase 4% dos possíveis, o dobro dos também desaparecem da escola antes do fim do 3.º ciclo. E “outro fosso que tende a estreitar-se é o que separa o desempenho dos rapazes do das raparigas, embora a diferença entre eles continue a ser significativa. Entre as raparigas, a taxa de conclusão em tempo normal (dados de 2012-2021), situou-se nos 90%, enquanto nos rapazes ficava nos 84%.

E, como uma desgraça nunca vem só, lá vou eu juntar um caso sintomático que ocorre bem perto de mim: na área da União de Freguesias de Alhandra, S. João dos Montes, Calhandriz e Sobralinho, com 15 137 utentes do Serviço Nacional de Saúde, desapareceram há muito os médicos de família e não se vê jeito de voltar a haver alguns nos próximos tempos.

Está convocada pelo PCP, para esta tarde, uma manifestação de protesto junto ao fanado Centro de Saúde de Alhandra. Perece que voltámos à era de Soeiro Pereira Gomes, quando ele dedicou um romance maravilhoso aos “filhos dos homens que nunca foram meninos”.

( A não perder)

A título de adenda ao meu apontamento de anteontem, respigo para aqui um interessante artigo de Eduardo Febbro (osbarbarosnet.blogs.com

) que acaba de me ser enviado pelo meu amigo Manuel Cardoso. É tão longo quanto imprescindível.

As razões de renúncia do Papa Bento XVI e perceber o contexto da pedofilia na Igreja Católica

Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama "uma continuidade pesada" de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um relatório elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre fações, lavagem de dinheiro.

O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e privilégios a frente das instituições religiosas.

Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II: "desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla".

Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.

Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que simboliza a lealdade o lema diz "dar testemunho da verdade".

Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. "Minha ideia é trazer luz", disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja católica.

A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.

Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistoides e ultrarreacionários do Monsenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógrada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa "se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado". E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.

O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano.

As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norte-americano Paul Marcinkus, o chamado "banqueiro de Deus", presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro "não contabilizado" do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres.

No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.

Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por supostas "irregularidades" em sua gestão. Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das normas contra a lavagem de dinheiro.

Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre fações no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas onde se escondia dinheiro sujo de "políticos, intermediários, construtores e altos funcionários do Estado".

Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.

Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um "documento" que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.

Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua fação.

A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos: corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e decadente da própria decadência do sistema.

À tarde

JÁ estive algumas vezes, extasiado, na beira setentrional da muralha de Valença, avaliando as maravilhas dilucidáveis das margens próximas do remansoso Minho e, mais além, o suave ondulado com os diversos tons de verde na Galiza fértil.

Nunca imaginei que a formidável barreira de granito vertical que eu tinha sob os pés e que fora edificada séculos antes, só para dizer aos espanhóis que talvez não fosse boa ideia tentarem atravessar o rio com intenções de conquista. Alguma vez me passaria pela cabeça que, também no extremo Norte de Portugal, era possível adaptar um velho anexim popular, fazendo-o demonstrar que “água mole em pedra dura tanto dá que até fura?” Ou derruba, se for muralha. Mas foi o que aconteceu na madrugada do dia 1.

Também já passei dúzias de vezes na estrada que liga a Régua ao Pinhão, de manhã, de tarde e de noite. No inverno, na primavera, no verão e no outono. Com o Douro à esquerda, na ida para leste, e à direita, para poente. E vi por aí uma dezena de derrocadas. Perigosíssimas algumas, não poucas vezes, mas como a da noite da Passagem de Ano, nenhuma.

Donde concluo que, de ambos os lados deste rio amansado pelas barragens e pelos bons conselhos, tudo continua imutável. Tanto a beleza estonteante das paisagens e da água navegável, como o risco de um automóvel com música e gente dentro ficar espalmado no asfalto sob centenas de toneladas de pedregulhos e terra molhada.

Valença - água mole em muralha dura tão dá que até a derruba 

2023 01 04

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