* Carlos Coutinho
Água mole...
AO invés de Camões, de Camilo e de Pessoa, que brotaram de
Lisboa e, para medrarem ricamente frutuosos, foram enraizar-se e mamar
nutrientes noutros solos por esse mundo fora, Aquilino, Torga e Saramago eram
portugueses de nascença, mas só aportaram à capital dos terramotos e das
alfaces quando já sabiam sopesar as palavras que os produziram, na serrana e
beirã Sernancelhe, na vinhateira e sabrosina S. Martinho de Anta e numa
Azinhaga muito chã, ribatejana e taurina.
Camilo até foi meu vizinho em Vila Real e Camões proveio de
uma família de Chaves, aquela herança romana que não dista muito do meu talhão
duriense de semeadura, o pedante e piroso 'terroir', como agora se apelida, à
francesa, o terreno onde a vinha ainda vinga para dar uvas.
E tudo isto para dizer, na fala mais generalizada dentro do
nosso indefeso idioma pós-redes sociais, que não me espanto com a notícia de
que “a Área Metropolitana de Lisboa é a região com mais abandono escolar no 3.º
ciclo”, apesar de ser a parte de Portugal onde os jovens têm menos dificuldade
de transporte e há qualquer escola mais perto da sua residência. Vem esta
desgraça no relatório anteontem divulgado pela Direção-Geral de Estatísticas da
Educação e Ciência (DGEEC) que agora me chegou às mãos: “Situação após 3 anos dos
Alunos que Ingressaram no 3.º Ciclo do Ensino Básico”.
Especifica a DGEEC que os “desaparecidos” são quase 4% dos
possíveis, o dobro dos também desaparecem da escola antes do fim do 3.º ciclo.
E “outro fosso que tende a estreitar-se é o que separa o desempenho dos rapazes
do das raparigas, embora a diferença entre eles continue a ser significativa.
Entre as raparigas, a taxa de conclusão em tempo normal (dados de 2012-2021),
situou-se nos 90%, enquanto nos rapazes ficava nos 84%.
E, como uma desgraça nunca vem só, lá vou eu juntar um caso
sintomático que ocorre bem perto de mim: na área da União de Freguesias de
Alhandra, S. João dos Montes, Calhandriz e Sobralinho, com 15 137 utentes do
Serviço Nacional de Saúde, desapareceram há muito os médicos de família e não
se vê jeito de voltar a haver alguns nos próximos tempos.
Está convocada pelo PCP, para esta tarde, uma manifestação de
protesto junto ao fanado Centro de Saúde de Alhandra. Perece que voltámos à era
de Soeiro Pereira Gomes, quando ele dedicou um romance maravilhoso aos “filhos
dos homens que nunca foram meninos”.
( A não perder)
A título de adenda ao meu apontamento de anteontem, respigo
para aqui um interessante artigo de Eduardo Febbro (osbarbarosnet.blogs.com
) que acaba de me ser enviado pelo meu amigo Manuel Cardoso.
É tão longo quanto imprescindível.
As razões de renúncia do Papa Bento XVI e perceber o contexto
da pedofilia na Igreja Católica
Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa
Bento XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem
ao México e a Cuba. Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da
École Pratique des Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama
"uma continuidade pesada" de seu predecessor, João Paulo II, descobriu
em um relatório elaborado por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais
nos quais a igreja havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras
fratricidas pelo poder, roubo massivo de documentos secretos, luta entre
fações, lavagem de dinheiro.
O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato
sem limites nem moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações,
traições, artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas
e privilégios a frente das instituições religiosas.
Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob
o mandato de Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta.
Joseph Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres
pedófilos, mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas. Bento XVI
foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de João Paulo II:
"desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando vários textos
importantes que redigiu: a condenação das teologias da libertação dos anos
1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da doutrina da igreja sobre
os temas da vida; o Splendor veritas, um texto fundamental redigido a quatro
mãos com Wojtyla".
Esses dois textos citados pelo especialista francês são um compêndio
prático da visão reacionária da igreja sobre as questões políticas, sociais e
científicas do mundo moderno.
Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa
desde 2003, tem em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um
dragão que simboliza a lealdade o lema diz "dar testemunho da
verdade".
Mas a verdade, no Vaticano, não é uma moeda corrente. Depois
do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do papa e das
obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria qualquer Estado.
Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso contratou o jornalista
estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e ex-integrante da agência
Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke tinha por missão melhorar a
deteriorada imagem da igreja. "Minha ideia é trazer luz", disse Burke
ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de claro na cúpula da igreja
católica.
A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada
pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma
operação sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação
contra o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para
empurrar Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa
de frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks
fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de
paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.
Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo
suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os
tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre,
saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger
empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os
partidários fascistoides e ultrarreacionários do Monsenhor Levebvre e, por
conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógrada que, de
Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.
Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus
retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier
assinala a respeito que o papa "se deixou engolir pela opacidade que se
instalou sob seu reinado". E a primeira delas não é doutrinária, mas sim
financeira.
O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das
querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas
maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por
João Paulo II, que, para muitos especialistas, explica a crise atual.
Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore
Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de
Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do
Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação
da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento
XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras
mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como
objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano.
As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem
de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando
a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo
norte-americano Paul Marcinkus, o chamado "banqueiro de Deus",
presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.
João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do
Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois
devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro "não
contabilizado" do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade,
algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias
jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e
investimentos mafiosos, além de vários cadáveres.
No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na
ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do
Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que
incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida
como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.
Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e
só permaneceu três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante
em 2012 por supostas "irregularidades" em sua gestão. Tedeschi saiu
do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa, justamente no
momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta violação das
normas contra a lavagem de dinheiro.
Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio
da guerra entre fações no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou
a elaborar um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas
secretas onde se escondia dinheiro sujo de "políticos, intermediários,
construtores e altos funcionários do Estado".
Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da Cosa Nostra,
tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.
Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o
Vaticano diz que o banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por
conselheiros do banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor
Bertone, um inimigo pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais
que fiscaliza o funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela
difusão de um "documento" que o vinculava ao vazamento de documentos
roubados do papa.
Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas
do banco do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita
renúncia do papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs
reacionários e ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para
defender sua fação.
A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu
processo de decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos:
corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de poder
que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual e
decadente da própria decadência do sistema.
À tarde
JÁ estive algumas vezes, extasiado, na beira setentrional da
muralha de Valença, avaliando as maravilhas dilucidáveis das margens próximas
do remansoso Minho e, mais além, o suave ondulado com os diversos tons de verde
na Galiza fértil.
Nunca imaginei que a formidável barreira de granito vertical
que eu tinha sob os pés e que fora edificada séculos antes, só para dizer aos
espanhóis que talvez não fosse boa ideia tentarem atravessar o rio com
intenções de conquista. Alguma vez me passaria pela cabeça que, também no
extremo Norte de Portugal, era possível adaptar um velho anexim popular,
fazendo-o demonstrar que “água mole em pedra dura tanto dá que até fura?” Ou
derruba, se for muralha. Mas foi o que aconteceu na madrugada do dia 1.
Também já passei dúzias de vezes na estrada que liga a Régua
ao Pinhão, de manhã, de tarde e de noite. No inverno, na primavera, no verão e
no outono. Com o Douro à esquerda, na ida para leste, e à direita, para poente.
E vi por aí uma dezena de derrocadas. Perigosíssimas algumas, não poucas vezes,
mas como a da noite da Passagem de Ano, nenhuma.
Donde concluo que, de ambos os lados deste rio amansado pelas
barragens e pelos bons conselhos, tudo continua imutável. Tanto a beleza
estonteante das paisagens e da água navegável, como o risco de um automóvel com
música e gente dentro ficar espalmado no asfalto sob centenas de toneladas de
pedregulhos e terra molhada.
Valença - água mole em muralha dura tão dá que até a derruba
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