Trazer nos versos a «consciência do mundo» - Evocação de Eugénio de Andrade (1923/2005) no centenário do seu nascimento
Eugénio de Andrade, pseudónimo literário de José Fontinhas Neto, nasceu em Póvoa de Atalaia, concelho do Fundão, a 19 de Janeiro de 1923. Filho de camponeses, o pai abandonou a família era Eugénio ainda criança. Aos oito anos, mudou-se com a mãe para Castelo Branco, numa passagem breve, fixando-se em Lisboa a partir de 1932. Na capital frequentará o liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro.
A vocação literária de Eugénio de Andrade foi precoce, começa a manifestar-se por volta dos seus doze, treze anos. O gosto pela leitura leva-o a frequentar as bibliotecas públicas de Lisboa, a descobrir o mundo vasto e fantástico da leitura dado que, diz-nos ele em Rosto Precário, «em casa havia apenas um só livro, uma Vida de Santos que ninguém lia». Jack London, Júlio Verde, todo o Eça, Alexandre Dumas, Tolstoi, Gorki, Junqueiro e Aquilino, fazem parte do roteiro das suas leituras de adolescente.
Inicia a escrita dos seus primeiros poemas por volta dos treze anos, arriscando enviar alguns deles a António Botto, ao tempo um poeta famoso quer pelo estilo quer pelo modo transgressor dos conteúdos, sobretudo a partir da publicação do seu livro Canções. Botto gosta dos poemas do jovem José Fontinhas e incentiva-o a escrever mais e a publicar. É a partir deste incentivo que publicará, em 1939, aos dezasseis anos, o seu primeiro poema, quase pueril, intitulado Narciso, poema «sobre a beleza que se contempla e se compraz em si mesma», confessará em Rosto Precário, poema em que a influência de Botto, as suas coordenadas estéticas, está muito presente.
Passará, a partir da publicação desse poema, a assinar os seus textos com o pseudónimo Eugénio de Andrade, com o qual passará a cunhar todos os títulos da sua vasta e poliédrica obra. Em 1942 publicará Adolescente, o seu livro de estreia. Mais tarde retirará este livro da sua bibliografia, considerando que a sua verdadeira voz poética ainda não estava nele presente. A verdade é que a influência de Botto, e de Pessoa, cuja poesia conheceu através do poeta de Baionetas da Morte, está, nesse livro inicial, muito vincada.
Uma voz própria e inconfundível
Eugénio procurava a sua identidade, uma voz que fosse sua e inconfundível, e essa voz começa a definir-se nos seus Primeiros Poemas (1940), que ele, simbolicamente, dedica a Fernando Pessoa. Esses magníficos versos transportam já os sinais da sua voz plena e futura, como em Canção, que se transformará num dos seus mais famosos e antologiados poemas: Tinha um cravo no meu balcão;/veio um rapaz e pediu-mo/- mãe, dou-lho ou não?//Sentada, bordava um lenço de mão;/veio um rapaz e pediu-mo/- mãe, dou-lho ou não?//Dei um cravo e dei um lenço,/só não dei o coração;/mas se o rapaz mo pedir/-mãe, dou-lho ou não?
Essa voz madura e ressonante, surge, já definida e vigorosa, no livro As Mãos e os Frutos, de 1948, livro que o tornará um poeta reconhecido e singular, aplaudido pela crítica e pelos leitores que, a partir deste, o descobrem. As Mãos e os Frutos é ainda hoje um dos seus títulos mais emblemáticos, ao qual se juntará, já nos anos 1960, essa obra-prima da nossa poesia contemporânea que é Ostinato Rigore.
Os temas e o léxico que farão parte constante do seu modo poético, estão já plenamente definidos e presentes em As Mãos e os Frutos, como o amor sem sombra de amargura, os madrigais, que ele vai buscar a Pêro Meogo, a natureza, as árvores, os pássaros, a água, os barcos, a noite, o fascínio pelo corpo, pelos corpos, a que José Saramago chamará «poesia do corpo, a que chega mediante uma depuração contínua», o amor pela mãe, o lirismo próximo da matéria dos sonhos, como neste belíssimo poema de amor ao qual Luís Cília daria música e voz, transformando-o numa das nossas canções dos anos sombrios, onde a vida e a esperança se misturam e vibram: Fecundou-te a vida nos pinhais./Fecundou-te de seiva e de calos. /alargou-te o corpo pelos areais/onde o mar se espraia sem contorno e cor.//Pôs-te sonho onde havia apenas/silêncio de rosas por abrir,/e um jeito nas mãos morenas/de que sabe que o fruto há-de surgir.//Brotou água onde tudo era secura./Paz onde morava a solidão/E a certeza de que a sepultura/é uma cova onde não cabe o coração.
No seu livro seguinte, Os Amantes Sem Dinheiro (1949), Eugénio escreve num texto introdutório, referindo-se à sua terra de nascimento e aos anos que aí viveu, revelador de alguns dos aspectos, das memórias afectivas e das relações mais fecundas e perenes, a relação de amor/libertação com a progenitora é paradigmática, presentes na sua obra poética: Da casa da Eira só me lembro do quartito que se seguia à cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem minha mãe às vezes me deixava a guardar. […] Uma manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. – Ó mãe, mãe… - Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fechada. […] E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, que a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.
Em Os Amantes Sem Dinheiro, Eugénio inscreve uma série de poemas intemporais, que são ainda hoje referenciais do seu universo poético. Poemas como Os Amantes Sem Dinheiro, que dá título ao livro, Poema à Mãe e Adeus, constituem-se na sua vasta obra poética momentos raros e sublimes, que levaram Óscar Lopes a considerá-lo o mais perfeito dos poetas portugueses, sendo também o de maior público, e Eduardo Lourenço a referir a sua obra como A primeira e a mais pura expressão da poesia como arquitectura do real, a mais límpida manifestação da entrega sem reservas aos sortilégios do “puro poético”.
Coordenadas poéticas
A negação do luxo, da superficialidade, do egoísmo da vida contemporânea, a denúncia do acessório, da futilidade e dos horrores da guerra, são outras das coordenadas que a sua poesia também manifesta. No livro de 1951, As Palavras Interditas, escreve no poema Não é Verdade, a sua indignação: Não é verdade tanta loja de perfumes, não é verdade tanta rosa decepada,/tanta ponte de fumo, tanta roupa escura,/tanto relógio, tanta pomba assassinada//Não quero para mim tanto veneno,/tanta madrugada varrida pelo gelo,/nem olhos pintados onde morre o dia,/nem beijos de lágrimas no meu cabelo. No poema que dá título ao livro, gritará a revolta e a solidão do nosso flutuante e amargo modo de estar vivo, numa linguagem que veicula o que é humano, como bem o entendeu Óscar Lopes: Dói-me esta água, este ar que se respira,/ dói-me esta solidão de pedra escura,/estas mãos nocturnas onde aperto/os meus dias quebrados na cintura.//E a noite cresce apaixonadamente./Nas suas margens nuas, desoladas,/cada homem tem apenas para dar/um horizonte de cidades bombardeadas.
Já profissional do Ministério da Saúde, teve uma breve passagem por Coimbra (1943/1946), onde estabelece amizade com Miguel Torga e convive com outros poetas e críticos de gerações e opções estéticas diversas, como Carlos de Oliveira, Paulo Quintela, Afonso Duarte e Eduardo Lourenço. No entanto, a sua filiação literária, depois das influências iniciais de Botto, Pessoa e Casais Monteiro, mais Rimbaud, Lorca, Walt Whitman, estabelece-se com os poetas do denominado grupo dos independentes, ou seja, dos poetas que não pertenciam às duas correntes literárias então dominantes: o neorrealismo e o presencismo. Poetas como Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, Natália Correia e António Ramos Rosa, nascidos entre 1919 (Sena e Sophia), 1923 (Natália) e 1924 (Ramos Rosa), terão pertencido a esse inorgânico grupo, tendo apenas em comum, com maior ou menor expressão, a sua preclara oposição ao regime fascista. As produções poéticas destes autores não deixaram, a espaços, de reflectir esse posicionamento cívico de um modo genérico, embora, e por vezes, ideologicamente confuso.
Colocado profissionalmente no Porto, como inspector administrativo do Ministério da Saúde, será nessa cidade que parecia um sindicato de viúvas, na expressão de João Villaret, que irá estabelecer-se a partir de 1950, aí vivendo até ao final dos seus dias, sendo considerado um dos seus mais ilustres habitantes. Aí conhecerá José da Cruz Santos, esse mestre das edições exemplares, seu editor e cúmplice, tendo grande parte da sua obra sido publicada pela mítica editora Inova.
Poeta como pedreiro
Em várias entrevistas, Eugénio fala-nos da revolução dos cravos e do País em que muita coisa mudou e assume no livro Epitáfios, o seu posicionamento político, em belos e simbólicos poemas, como este O Comum da Terra, tocante tributo a Vasco Gonçalves, recordando também os dias altos e fulgurantes de Abril, mas já a denunciar as margens que o incendiavam: Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas/Quem conheça o sul e a sua transparência/também sabe que no verão pelas veredas/da cal a crispação da sombra caminha devagar./De tanta palavra que disseste algumas/se perdiam, outras duram ainda, são lume/breve arado ceia de pobre roupa remendada./Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão/era morada e instrumento de alegria.//Esse eras tu: inclinação da água. Na margem/vento areias mastros lábios, tudo ardia.
Neste mesmo livro, mais um dos seus poemas antológicos, escrito ainda nos dias sombrios do caetanismo, mas já inundado pelas águas inquietas do porvir, anunciador das palavras que é urgente semear, palavras que aguardam na noite o sol e o vinho que haveríamos de beber em redor do fogo: Elegia das Águas Negras Para Che Guevara – Olhos apertados pelo medo/aguardam na noite o sol onde cresces,/onde te confundes com os ramos/de sangue do verão ou o rumor/dos pés brancos da chuva nas areias.//A palavra, como tu dizias, chega/húmida dos bosques: temos que semeá-la;/chega húmida da terra: temos que defendê-la;/chega com as andorinhas/que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.//Cada palavra tua é um homem de pé,/cada palavra tua faz do orvalho uma faca,/faz do ódio um vinho inocente/para bebermos contigo/no coração em redor do fogo.
Um outro poema ainda, intenso e magoado, que nos fala de José Dias Coelho e de Catarina, da morte de ambos às mãos do puro ódio fascista: […] dizias: espaço diurno onde o rumor/do sangue é um rumor de ave -/repara como voa, e poisa nos ombros/da Catarina que não cessam de matar.//Sem vocação para a morte, dizíamos. Também/ela, também ela a não tinha. Na planície/ branca era uma fonte: em si trazia/um coração inclinado para a semente do fogo.//Catarina ou José – o que é um nome?/Que nome nos impede de morrer,/quando se beija a terra devagar/ou uma criança trazida pela brisa?
Ao lermos estes poemas de Eugénio, e os significantes que os estruturam, apetece-nos dizer como Ramos Rosa: Rei Midas do verbo: palavra que tocasse virava ouro de lei.
Tradutor de Lorca, das Cartas Portuguesa, atribuídas a Mariana Alcoforado, dos poemas de Safo; organizador de diversas antologias; Prémio Camões, em 2001, Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, prémios da Crítica e da APE; poeta da plenitude e da esperança, poeta maior de um firmamento de notáveis, Eugénio de Andrade considerava que o seu trabalho de poeta seria um ofício equiparado ao de um pedreiro, profissão que fora a do seu avô: Ele usava o granito como material, as suas casas estão ainda de pé; o neto trabalha com poeira, sem nenhuma pretensão de desafiar o tempo.
Quando as palavras de um poeta nos tocam, esse acto em construção, primordial do ser, o poema é substância e argila. Pode moldar a nossa forma de entender e de habitar o mundo e dar-nos consciência do modo como o podemos transformar. Eugénio de Andrade é um desses raros poetas. Por isso, connosco caminha. Para sempre.
Bibliografia: Obras de Eugénio de Andrade; Prefácio de Óscar Lopes para Antologia Breve – Inova, 1972; A Poesia Portuguesa nos Meados do Século XX, de Maria de Fátima Marinho, Caminho, 1987; Incisões Oblíquas, de António Ramos Rosa, Caminho, 1987; Cifras do Tempo, de Óscar Lopes, Caminho, 1990.
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