quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

 

Trazer nos versos a «consciência do mundo» - Evocação de Eugénio de Andrade (1923/2005) no centenário do seu nascimento

ª Domingos Lobo


Jorge Pi­nheiro

Eu­génio de An­drade, pseu­dó­nimo li­te­rário de José Fon­ti­nhas Neto, nasceu em Póvoa de Ata­laia, con­celho do Fundão, a 19 de Ja­neiro de 1923. Filho de cam­po­neses, o pai aban­donou a fa­mília era Eu­génio ainda cri­ança. Aos oito anos, mudou-se com a mãe para Cas­telo Branco, numa pas­sagem breve, fi­xando-se em Lisboa a partir de 1932. Na ca­pital fre­quen­tará o liceu Passos Ma­nuel e a Es­cola Téc­nica Ma­chado de Castro.

A vo­cação li­te­rária de Eu­génio de An­drade foi pre­coce, co­meça a ma­ni­festar-se por volta dos seus doze, treze anos. O gosto pela lei­tura leva-o a fre­quentar as bi­bli­o­tecas pú­blicas de Lisboa, a des­co­brir o mundo vasto e fan­tás­tico da lei­tura dado que, diz-nos ele em Rosto Pre­cário, «em casa havia apenas um só livro, uma Vida de Santos que nin­guém lia». Jack London, Júlio Verde, todo o Eça, Ale­xandre Dumas, Tolstoi, Gorki, Jun­queiro e Aqui­lino, fazem parte do ro­teiro das suas lei­turas de ado­les­cente.

Inicia a es­crita dos seus pri­meiros po­emas por volta dos treze anos, ar­ris­cando en­viar al­guns deles a An­tónio Botto, ao tempo um poeta fa­moso quer pelo es­tilo quer pelo modo trans­gressor dos con­teúdos, so­bre­tudo a partir da pu­bli­cação do seu livro Can­ções. Botto gosta dos po­emas do jovem José Fon­ti­nhas e in­cen­tiva-o a es­crever mais e a pu­blicar. É a partir deste in­cen­tivo que pu­bli­cará, em 1939, aos de­zas­seis anos, o seu pri­meiro poema, quase pu­eril, in­ti­tu­lado Nar­ciso, poema «sobre a be­leza que se con­templa e se com­praz em si mesma», con­fes­sará em Rosto Pre­cário, poema em que a in­fluência de Botto, as suas co­or­de­nadas es­té­ticas, está muito pre­sente.

Pas­sará, a partir da pu­bli­cação desse poema, a as­sinar os seus textos com o pseu­dó­nimo Eu­génio de An­drade, com o qual pas­sará a cu­nhar todos os tí­tulos da sua vasta e po­lié­drica obra. Em 1942 pu­bli­cará Ado­les­cente, o seu livro de es­treia. Mais tarde re­ti­rará este livro da sua bi­bli­o­grafia, con­si­de­rando que a sua ver­da­deira voz poé­tica ainda não es­tava nele pre­sente. A ver­dade é que a in­fluência de Botto, e de Pessoa, cuja po­esia co­nheceu através do poeta de Bai­o­netas da Morte, está, nesse livro ini­cial, muito vin­cada.

Uma voz pró­pria e in­con­fun­dível

Eu­génio pro­cu­rava a sua iden­ti­dade, uma voz que fosse sua e in­con­fun­dível, e essa voz co­meça a de­finir-se nos seus Pri­meiros Po­emas (1940), que ele, sim­bo­li­ca­mente, de­dica a Fer­nando Pessoa. Esses mag­ní­ficos versos trans­portam já os si­nais da sua voz plena e fu­tura, como em Canção, que se trans­for­mará num dos seus mais fa­mosos e an­to­lo­gi­ados po­emas: Tinha um cravo no meu balcão;/​veio um rapaz e pediu-mo/- ​mãe, dou-lho ou não?//​Sen­tada, bor­dava um lenço de mão;/​veio um rapaz e pediu-mo/- ​mãe, dou-lho ou não?//​Dei um cravo e dei um lenço,/​só não dei o co­ração;/​mas se o rapaz mo pedir/-​mãe, dou-lho ou não?

Essa voz ma­dura e res­so­nante, surge, já de­fi­nida e vi­go­rosa, no livro As Mãos e os Frutos, de 1948, livro que o tor­nará um poeta re­co­nhe­cido e sin­gular, aplau­dido pela crí­tica e pelos lei­tores que, a partir deste, o des­co­brem. As Mãos e os Frutos é ainda hoje um dos seus tí­tulos mais em­ble­má­ticos, ao qual se jun­tará, já nos anos 1960, essa obra-prima da nossa po­esia con­tem­po­rânea que é Os­ti­nato Ri­gore.

Os temas e o lé­xico que farão parte cons­tante do seu modo poé­tico, estão já ple­na­mente de­fi­nidos e pre­sentes em As Mãos e os Frutos, como o amor sem sombra de amar­gura, os ma­dri­gais, que ele vai buscar a Pêro Meogo, a na­tu­reza, as ár­vores, os pás­saros, a água, os barcos, a noite, o fas­cínio pelo corpo, pelos corpos, a que José Sa­ra­mago cha­mará «po­esia do corpo, a que chega me­di­ante uma de­pu­ração con­tínua», o amor pela mãe, o li­rismo pró­ximo da ma­téria dos so­nhos, como neste be­lís­simo poema de amor ao qual Luís Cília daria mú­sica e voz, trans­for­mando-o numa das nossas can­ções dos anos som­brios, onde a vida e a es­pe­rança se mis­turam e vi­bram: Fe­cundou-te a vida nos pi­nhais./​Fe­cundou-te de seiva e de calos. /alargou-te o corpo pelos areais/​onde o mar se es­praia sem con­torno e cor.//​Pôs-te sonho onde havia apenas/​si­lêncio de rosas por abrir,/​e um jeito nas mãos mo­renas/​de que sabe que o fruto há-de surgir.//​Brotou água onde tudo era se­cura./​Paz onde mo­rava a so­lidão/​E a cer­teza de que a se­pul­tura/​é uma cova onde não cabe o co­ração.

No seu livro se­guinte, Os Amantes Sem Di­nheiro (1949), Eu­génio es­creve num texto in­tro­du­tório, re­fe­rindo-se à sua terra de nas­ci­mento e aos anos que aí viveu, re­ve­lador de al­guns dos as­pectos, das me­mó­rias afec­tivas e das re­la­ções mais fe­cundas e pe­renes, a re­lação de amor/​li­ber­tação com a pro­ge­ni­tora é pa­ra­dig­má­tica, pre­sentes na sua obra poé­tica: Da casa da Eira só me lembro do quar­tito que se se­guia à co­zinha. Um ta­bique se­pa­rava-nos da casa da Ti Ana, uma ve­lhota a quem minha mãe às vezes me dei­xava a guardar. […] Uma manhã acordei so­zinho em casa. Acordei a chorar. – Ó mãe, mãe… - Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só a porta fe­chada. […] E nin­guém me abriu a porta para apa­nhar as es­trelas. Nem mesmo tu, mãe, que a essas horas an­davas a ga­nhar o pão para a boca da­quele que hoje te ofe­rece estes versos.

Em Os Amantes Sem Di­nheiro, Eu­génio ins­creve uma série de po­emas in­tem­po­rais, que são ainda hoje re­fe­ren­ciais do seu uni­verso poé­tico. Po­emas como Os Amantes Sem Di­nheiro, que dá tí­tulo ao livro, Poema à Mãe Adeus, cons­ti­tuem-se na sua vasta obra poé­tica mo­mentos raros e su­blimes, que le­varam Óscar Lopes a con­si­derá-lo o mais per­feito dos po­etas por­tu­gueses, sendo também o de maior pú­blico, e Edu­ardo Lou­renço a re­ferir a sua obra como A pri­meira e a mais pura ex­pressão da po­esia como ar­qui­tec­tura do real, a mais lím­pida ma­ni­fes­tação da en­trega sem re­servas aos sor­ti­lé­gios do “puro poé­tico”.

Co­or­de­nadas poé­ticas

A ne­gação do luxo, da su­per­fi­ci­a­li­dade, do egoísmo da vida con­tem­po­rânea, a de­núncia do aces­sório, da fu­ti­li­dade e dos hor­rores da guerra, são ou­tras das co­or­de­nadas que a sua po­esia também ma­ni­festa. No livro de 1951, As Pa­la­vras In­ter­ditas, es­creve no poema Não é Ver­dade, a sua in­dig­nação: Não é ver­dade tanta loja de per­fumes, não é ver­dade tanta rosa de­ce­pada,/​tanta ponte de fumo, tanta roupa es­cura,/​tanto re­lógio, tanta pomba as­sas­si­nada//​Não quero para mim tanto ve­neno,/​tanta ma­dru­gada var­rida pelo gelo,/​nem olhos pin­tados onde morre o dia,/​nem beijos de lá­grimas no meu ca­belo. No poema que dá tí­tulo ao livro, gri­tará a re­volta e a so­lidão do nosso flu­tu­ante e amargo modo de estar vivo, numa lin­guagem que vei­cula o que é hu­mano, como bem o en­tendeu Óscar Lopes: Dói-me esta água, este ar que se res­pira,/ dói-me esta so­lidão de pedra es­cura,/​estas mãos noc­turnas onde aperto/​os meus dias que­brados na cin­tura.//​E a noite cresce apai­xo­na­da­mente./​Nas suas mar­gens nuas, de­so­ladas,/​cada homem tem apenas para dar/​um ho­ri­zonte de ci­dades bom­bar­de­adas.

Já pro­fis­si­onal do Mi­nis­tério da Saúde, teve uma breve pas­sagem por Coimbra (1943/​1946), onde es­ta­be­lece ami­zade com Mi­guel Torga e con­vive com ou­tros po­etas e crí­ticos de ge­ra­ções e op­ções es­té­ticas di­versas, como Carlos de Oli­veira, Paulo Quin­tela, Afonso Du­arte e Edu­ardo Lou­renço. No en­tanto, a sua fi­li­ação li­te­rária, de­pois das in­fluên­cias ini­ciais de Botto, Pessoa e Ca­sais Mon­teiro, mais Rim­baud, Lorca, Walt Whitman, es­ta­be­lece-se com os po­etas do de­no­mi­nado grupo dos in­de­pen­dentes, ou seja, dos po­etas que não per­ten­ciam às duas cor­rentes li­te­rá­rias então do­mi­nantes: o ne­or­re­a­lismo e o pre­sen­cismo. Po­etas como Sophia de Mello Breyner An­dresen, Jorge de Sena, Na­tália Cor­reia e An­tónio Ramos Rosa, nas­cidos entre 1919 (Sena e Sophia), 1923 (Na­tália) e 1924 (Ramos Rosa), terão per­ten­cido a esse inor­gâ­nico grupo, tendo apenas em comum, com maior ou menor ex­pressão, a sua pre­clara opo­sição ao re­gime fas­cista. As pro­du­ções poé­ticas destes au­tores não dei­xaram, a es­paços, de re­flectir esse po­si­ci­o­na­mento cí­vico de um modo ge­né­rico, em­bora, e por vezes, ide­o­lo­gi­ca­mente con­fuso.

Co­lo­cado pro­fis­si­o­nal­mente no Porto, como ins­pector ad­mi­nis­tra­tivo do Mi­nis­tério da Saúde, será nessa ci­dade que pa­recia um sin­di­cato de viúvas, na ex­pressão de João Vil­laret, que irá es­ta­be­lecer-se a partir de 1950, aí vi­vendo até ao final dos seus dias, sendo con­si­de­rado um dos seus mais ilus­tres ha­bi­tantes. Aí co­nhe­cerá José da Cruz Santos, esse mestre das edi­ções exem­plares, seu editor e cúm­plice, tendo grande parte da sua obra sido pu­bli­cada pela mí­tica edi­tora Inova.

Poeta como pe­dreiro

Em vá­rias en­tre­vistas, Eu­génio fala-nos da re­vo­lução dos cravos e do País em que muita coisa mudou e as­sume no livro Epi­tá­fios, o seu po­si­ci­o­na­mento po­lí­tico, em belos e sim­bó­licos po­emas, como este O Comum da Terra, to­cante tri­buto a Vasco Gon­çalves, re­cor­dando também os dias altos e ful­gu­rantes de Abril, mas já a de­nun­ciar as mar­gens que o in­cen­di­avam: Nesses dias era sí­laba a sí­laba que che­gavas/​Quem co­nheça o sul e a sua trans­pa­rência/​também sabe que no verão pelas ve­redas/​da cal a cris­pação da sombra ca­minha de­vagar./​De tanta pa­lavra que dis­seste al­gumas/​se per­diam, ou­tras duram ainda, são lume/​breve arado ceia de pobre roupa re­men­dada./​Ha­bi­tavas a terra, o comum da terra, e a paixão/​era mo­rada e ins­tru­mento de ale­gria.//​Esse eras tu: in­cli­nação da água. Na margem/​vento areias mas­tros lá­bios, tudo ardia.

Neste mesmo livro, mais um dos seus po­emas an­to­ló­gicos, es­crito ainda nos dias som­brios do ca­e­ta­nismo, mas já inun­dado pelas águas in­qui­etas do porvir, anun­ci­ador das pa­la­vras que é ur­gente se­mear, pa­la­vras que aguardam na noite o sol e o vinho que ha­ve­ríamos de beber em redor do fogo: Elegia das Águas Ne­gras Para Che Gue­vara – Olhos aper­tados pelo medo/​aguardam na noite o sol onde cresces,/​onde te con­fundes com os ramos/​de sangue do verão ou o rumor/​dos pés brancos da chuva nas areias.//​A pa­lavra, como tu di­zias, chega/​hú­mida dos bos­ques: temos que semeá-la;/​chega hú­mida da terra: temos que de­fendê-la;/​chega com as an­do­ri­nhas/​que a be­beram sí­laba a sí­laba na tua boca.//​Cada pa­lavra tua é um homem de pé,/​cada pa­lavra tua faz do or­valho uma faca,/​faz do ódio um vinho ino­cente/​para be­bermos con­tigo/​no co­ração em redor do fogo.

Um outro poema ainda, in­tenso e ma­goado, que nos fala de José Dias Co­elho e de Ca­ta­rina, da morte de ambos às mãos do puro ódio fas­cista: […] di­zias: es­paço diurno onde o rumor/​do sangue é um rumor de ave -/​re­para como voa, e poisa nos om­bros/​da Ca­ta­rina que não cessam de matar.//​Sem vo­cação para a morte, di­zíamos. Também/​ela, também ela a não tinha. Na pla­nície/ branca era uma fonte: em si trazia/​um co­ração in­cli­nado para a se­mente do fogo.//​Ca­ta­rina ou José – o que é um nome?/​Que nome nos im­pede de morrer,/​quando se beija a terra de­vagar/​ou uma cri­ança tra­zida pela brisa?

Ao lermos estes po­emas de Eu­génio, e os sig­ni­fi­cantes que os es­tru­turam, ape­tece-nos dizer como Ramos Rosa: Rei Midas do verbo: pa­lavra que to­casse vi­rava ouro de lei.

Tra­dutor de Lorca, das Cartas Por­tu­guesa, atri­buídas a Ma­riana Al­co­fo­rado, dos po­emas de Safo; or­ga­ni­zador de di­versas an­to­lo­gias; Prémio Ca­mões, em 2001, Grande Ofi­cial da Ordem Mi­litar de San­tiago da Es­pada, pré­mios da Crí­tica e da APE; poeta da ple­ni­tude e da es­pe­rança, poeta maior de um fir­ma­mento de no­tá­veis, Eu­génio de An­drade con­si­de­rava que o seu tra­balho de poeta seria um ofício equi­pa­rado ao de um pe­dreiro, pro­fissão que fora a do seu avô: Ele usava o gra­nito como ma­te­rial, as suas casas estão ainda de pé; o neto tra­balha com po­eira, sem ne­nhuma pre­tensão de de­sa­fiar o tempo.

Quando as pa­la­vras de um poeta nos tocam, esse acto em cons­trução, pri­mor­dial do ser, o poema é subs­tância e ar­gila. Pode moldar a nossa forma de en­tender e de ha­bitar o mundo e dar-nos cons­ci­ência do modo como o po­demos trans­formar. Eu­génio de An­drade é um desses raros po­etas. Por isso, con­nosco ca­minha. Para sempre.

Bi­bli­o­grafiaObras de Eu­génio de An­drade; Pre­fácio de Óscar Lopes para An­to­logia Breve – Inova, 1972; A Po­esia Por­tu­guesa nos Me­ados do Sé­culo XX, de Maria de Fá­tima Ma­rinho, Ca­minho, 1987; In­ci­sões Oblí­quas, de An­tónio Ramos Rosa, Ca­minho, 1987; Ci­fras do Tempo, de Óscar Lopes, Ca­minho, 1990.


hcenten%C3%A1rio-do-seu-nascimento.htm

Sem comentários: